Crônicas de Nara

Novela em 19 capítulos, sobre a saga da pequena família Inoue, desde os seus ancestrais na antiga Vila de Totsukawa até a despedida em emigração ao Brasil.

Conteúdo

Fotos dos personagens

Foto 1: Casamento de Sakae Oka com Yoshitaka Kurisu.
              À esquerda, Matsu Oka. Á direita, seu filho, Michihiro Oka.
              Sentados, Yoshitaka e Sakae. 
Foto de álbum familiar.                                                                  

Foto 2: Isso Inoue, aos 91 anos, no Brasil.
Foto: M.T. Inoue, 1994.

Foto 3: Michihiro Oka em uniformes militar e de gala japones em 1933.
Foto de álbum familiar.

Foto 4: Yoshiomi Inoue no Brasil, aos 42 anos em 1947.
Foto de álbum familiar.

Foto 5: Sumie Inoue (Yoshimura) no Brasil, aos 66 anos.
Foto: M.T. Inoue, 1994.

Foto 6: Asano Oka, viúva de Michihiro Oka, em sua casa em Nara.
Foto: M.T. Inoue, 1994.

Foto 7: Shigueru Inoue, irmão de Yoshiomi.
Foto de álbum familiar.

Foto 8: A partir da esquerda, Yoshiko, filha de Sakae; Sueko, viúva de Shigueru; o autor no centro e Shigemi, filho de Shigeru Inoue.
Foto: M.T. Inoue, 1994.

Genealogia

Árvore genealógica de ascendentes mais próximos da família Inoue.

Glossário

Glossário complementar aos termos japoneses usados no texto

Pronúncia do japonês
Seguem algumas regras básicas da pronúncia de termos japoneses, quando romanizados.

Vogal sempre aberta: á.
Vogais sempre fechadas: ê; ô.
ch – como se tivesse um txi na frente: tiá , tiô , tiú.
g
– como se tivesse um u atrás: guê , gui.
h – como se fosse um r inicial gutural, como em rainha.
j –  como se tivesse um di na frente: diá , diê , di , diô , diú.
r – mesmo inicial, tem sempre o som de um r interior, como em arame.
s – inicial: ssá , ssê , xi , ssô , ssú.
sh – como o x em portugues:  hashira – rraxirá.
w – como se fosse u : , .

Age – (aguê)
         Diz-se do tofu frito. Não se trata de um prato em si, sendo mais um componente de receita. Pode ser usado picado no missoshiru; como recipiente de um tipo de sushi, o inarisushi, entre outras aplicações. Puro, é confeccionado na forma de agedofu, que é o tofu frito, adornado com algum complemento como cebolinha ou cogumelo e que é servido mergulhado num molho elaborado à base de shoyu.

Ainu
         Povo originário da região norte do Japão e sul da Rússia. Respectivamente, da ilha de Hokkaido e Sakhalin. Durante a Restauração Meiji, quando os japoneses de Honshu adentraram Hokkaido, os ainus já dominavam a ilha. A colonização pelos japoneses foi agressiva, dilapidando bens, costumes e toda uma cultura de milênios do povo ainu, que provavelmente havia ali chegado, vindo da Mongólia. Atualmente, reconhecidos como povo indígena, vivem em reservas, onde tentam manter um pouco do que restou de sua riqueza cultural.

Aji – (adi)
         Diz-se do peixe de água doce, conhecido no ocidente como “carapau”. Bem semelhante à sardinha marinha, possui carne saborosa, sendo consumida na forma grelhada ou como sashimi.

Anko
         Pasta adocicada elaborada com base no feijão vermelho azuki. É usada como preenchimento de mochi, assumindo a denominação de anmochi; no preenchimento de bolinho manju; no preenchimento do anpan, entre outros.

Azuki
        
Um tipo de feijão, de dimensões pequenas, arredondado, de coloração avermelhada, do vermelho escuro ao roxo. É originário da China, faz parte obrigatória da culinária japonesa, principalmente nos doces. A pasta bem doce elaborada com azuki é denominada de anko. Esta pasta é o preenchimento interior de diferentes tipos de bolinhos, com base em mochi e farinha. Os mais populares são os manju e os anpan.

Bakufu
         Literalmente, o mesmo que xogunato, ou seja, governo militar liderado pelo xogun. Surgiu no Período Edo (1603 a 1867), quando o primeiro xogun, Ieyasu Tokugawa, transferiu o xogunato para a cidade de Edo, antiga denominação de Tokyo. Embora constituída por herança familiar, esta forma de governo foi fundamental para a unificação do país durante o período feudal.

Bushido – (buxido)
         É o código de honra adotado pelos samurais, que tem o sentido de “caminho do guerreiro”. Justiça, coragem, benevolência, honra e lealdade, são alguns dos atributos de conduta, que eram seguidos à risca. A desonra aos princípios rígidos era paga com o suicídio. (Vide harakiri e seppuku).

Daimyo
         Literalmente, senhor feudal. A partir do Período Kamakura  (1195 a 1333), quando se implantou o xogunato, a classe dos samurais, antes meros soldados do império, ascenderam ao poder como vassalos dos proprietários dos feudos, os daimyos. Estes, por sua vez, estavam sob a regência do xogun, um tipo de ditador militar, que governava o país, tendo o Imperador como mera figura de estampa.

Fuji – (fudi)
         Nome dado a uma trepadeira originária do Japão, Wisteria floribunda, a glicínia japonesa. Produz cachos de flores de cor azuis, róseas, brancas ou roxas, que podem chegar a meio metro de comprimento. Geralmente, é usada em caramanchões. Suas flores são cultuadas em diferentes momentos da arte e cultura, como em danças, teatro, cinema, entre outros. O termo em kanji  assemelha-se ao nome dado ao Monte Fuji (Fuji-san, literalmente, Monte Fuji).

Futon
         É um tipo de colchão, que se estende no piso do aposento na hora de dormir. Com altura de aproximadamente 5 cm, é  preenchido geralmente com algodão. A parte do colchão é denominada shikibuton e para se cobrir, usa-se o kakebuton, conhecido no ocidente como edredom. (Vide tatami).

Genmai – (guên-mai)
         Diz-se do arroz integral. Pode ser tostado e misturado ao ocha, obtendo-se o conhecido genmaicha. (Vide ocha e genmaicha).

Genmaicha – (guên-mai-tiá)
         Variedade de chá japonês obtido da mistura de arroz integral, genmai, ao chá verde. De sabor marcante, pode ser ingerido após as refeições.

Gohan – (gôrran)
            
É o nome que se dá ao arroz cozido. Popularmente, é usado também o termo meshi como seu sinônimo. O arroz cru é denominado kome. Como o arroz está sempre presente nas refeições, adotou-se o termo gohan como sinônimo de “refeição”. Assim, hirugohan significa almoço e bangohan, jantar. Outro exemplo conhecido, é o yakimeshi, o arroz frito colorido com a mistura de legumes, como a cenoura, ervilha, omelete picado.

Gueixa – termo aportuguesado.
         Figura ícone do Japão, é a denominação geral para as as mulheres cortesãs. Possuem uma educação rigorosa sobre costumes, música, dança, etiqueta, assim como a arte da maquiagem e da vestimenta japonesa. Muitas vezes são confundidas com prostitutas, que não é o caso. Na realidade, são acompanhantes para servir e entreter os convidados masculinos, geralmente senhores abastados da elite. Até antes da Restauração Meiji, muitas meninas eram vendidas para as donas de casas de entretenimento, costume muito bem representado no filme “Memoirs of a Gueisha”, de Rob Marshall.

Hai – (rrai)
         Literalmente, sim, como afirmação. Na cultura japonesa, no entanto, tem um significado muito mais profundo do que simplesmente uma anuência. Quando um japonês pronuncia o monossílabo como resposta, significa a predisposição e convicção de que irá cumprir, a todo custo, o propósito afirmado.

Hakumai  – (rrakumai)
         Uma das variedades de arroz branco, a mais consumida. É pouco pegajoso e de sabor marcante, para ser consumido puro, sem nenhum tempero. (Vide mochi, mochigome e genmai).

Harakiri  – (rraraquirí)
         Literalmente, cortar o ventre. O mesmo que seppuku.   

Hashira  – (rraxirá)
         Literalmente, pilar ou mastro. No Japão, são usados como totem e nas decorações. Geralmente confeccionados em madeira nobre, estão presentes na forma de pilares que adornam o nicho sagrado dentro de uma casa. No exterior, aparecem na forma de simples postes de iluminação, como também em totens gigantescos, como nas reservas do povo ainu, em Hokkaido.

Hiragana  – (rriraganá)
        
Escrita silábica simplificada, inventada pelos japoneses, para a fonética de termos para os quais não existem o kanji, ou quando estes são pouco conhecidos e usados. (Vide kanji).

Honden  – (rronden)
        
Prédio principal de um santuário xintoísta. O acesso a ele é exclusivo aos sacerdotes. Nele, estão consagrados objetos que representam a entidade kami, divindade não personificada da crença. (Vide kami).

Inarisushi  – (inarizuxi)
         Um tipo de sushi, elaborado com arroz agridoce misturado a diversos legumes e omelete, que tem como receptáculo o tofu frito (age) em fatias quadradas e cortado na diagonal. Ao se abrir o age pelo lado cortado, forma-se um saquinho ou sapatinho, que abriga o arroz.

Jankempo  – (dianquempô)
         É o jogo de aposta ou escolha, usando as mãos, conhecido no Brasil como jokempô ou “pedra, tesoura, papel”. Pode ser jogado por duas ou mais pessoas.

Kabuki
         Arte teatral que surgiu no Período Edo. A apresentação é feita exclusivamente por homens, que se transvestem quando o papel é feminino. É composto por canto e dança, onde a música é presença constante durante todo o espetáculo. A beleza está no visual e na habilidade dos atores, pois o cenário é relativamente simples, em palcos baixos e amplos.

Kami
         No Xintoísmo, não se consideram entidades antropomórficas como divindades. Todas as coisas do Universo são manifestações de kami, espíritos da natureza dotados de poderes não encontrados no ser humano. Nuvens, montanhas, animais, plantas, por exemplo, são materializações de kami, o sobrenatural. Foneticamente, confunde-se com o termo usado para o “ papel”.

Kanji  – (candí)
         Ideograma oriundo da escrita chinesa. Geralmente, possui significado semelhante nos dois idiomas, embora com fonética diferente. No caso do japonês, a fonética pode ser representada pela escrita em hiragana. Em textos, o artifício de se escrever a fonética em hiragana menores ao lado do kanji, tem a denominação de furigana.

Katana
         Designação para a espada japonesa, usada pelos samurais. É de lâmina curva com fio único, protetor circular ou quadrado e empunhadura longa para conter as duas mãos. Havia espadas de três tamanhos, entre 30 cm e 90 cm. O katana era a alma do samurai, que servia mais para fazer justiça do que simplesmente matar.

Kibi
         Um tipo de cereal inferior ao arroz, conhecido como painço. É parecido ao sorgo, usado na alimentação animal. Antes da era moderna, o arroz branco era um artigo de luxo no Japão, reservado apenas à elite ou consumido em ocasiões muito especiais. (Vide kibidango).

Kibidango
         Originalmente, era o bolinho elaborado com kibi, uma espécie de painço, bem parecida com o sorgo. A sua história remete à região de Okayama, à leste de Kyoto, de onde surgiu a fábula de Momotaro, o menino-herói que apareceu dentro de um pêssego e foi adotado por um casal de idosos. Para enfrentar o demônio, o menino distribuía kibidango para os amigos animais, com o macaco, o cachorro e outros, que constituíram o grupo que mais tarde derrota o inimigo.

Misso
         Pasta elaborada com base em feijão de soja. A mistura pode conter arroz, cevada e outros cereais e bastante sal. Esta mistura é colocada a fermentar por alguns meses. É parte obrigatória da culinária asiática e é a base do caldo conhecido como missoshiru. É conhecido e comercializado no Brasil como missô. (Vide missoshiru).

Missoshiru  – (missoxiru)
         É um caldo elaborado à base de misso. Consumido quente, geralmente é acrescido com pedaços de tofu ou age e cebolinha. Em versões mais requintadas, o caldo é totalmente transparente, sem vestígios dos ingredientes utilizados. Sendo consumido no decorrer da refeição, não pode caracterizado como uma sopa. (Vide tofu e age).

Mochi  – (moti)
         Bolinho, geralmente adocicado, feito com arroz branco do tipo mochigome. Faz parte obrigatória da dieta japonesa, consumido em qualquer ocasião festiva, em especial na passagem do Ano Novo. Podem ser elaborados em diversos tamanhos, sempre achatados. Se preenchidos com pasta anko, passam a se chamar de anmochi. Delicioso é fritar rápido até formar crosta crocante e comer, mergulhando antes numa mistura de shoyu com açúcar.

Mochigome  – (motigomê)
          Arroz branco, especial para a confecção de bolinho mochi. Tem formato mais arredondado, pequeno e muito pegajoso, característica necessária ao preparo do mochi. Quando misturado ao hakumai, na proporção de 1:1, obtém-se um arroz branco delicioso.

Ocha  – (otiá)
         Chá verde japonês. Usado na cerimônia do chá, é uma das bebidas mais ingeridas no país. Toma-se quente. As folhas de Camellia sinensis podem ser colhidas em diferentes graus de maturação, assim como tostadas por diferentes tempos, originando variedades de chá.

Onsen
         Literalmente, águas termais naturais. Na prática, são casas de banho de imersão (ofuro), que podem ser urbanas, com água aquecida, ou naturais, com fontes termais. Atualmente, são estações de tratamento ou relaxamento, com infraestrutura de hotéis, restaurantes e spa.

Ronin
         Espadachim japonês sem patrão, diferindo dos samurais, os quais eram empregados do senhor feudal. Exímios no manejo das espadas, eram contratados temporariamente para executar algum inimigo. Se contratados, trocavam de nome e ganhavam a patente de samurai, obedecendo fielmente ao seu daimyo. Em levantes, como o do “incidente de Sakuradamon”, os samurais assumiam a identidade como ronin, para resguardar a figura do mandatário. (Vide samurai).

Sashimi  – (saximi)
         Fatias de peixe nobre cruas, que são saboreadas com wasabi e shoyu. São cortes da parte macia do peixe, de tamanho aproximado de 50 mm de comprimento por 30 mm de largura, tendo espessura entre 5 a 10 mm. Coloca-se uma camada fina de wasabi na carne, mergulha-se no shoyu e come-se imediatamente. Para aqueles que dispensam este ritual, podem misturar o wasabi no pote com shoyu e simplesmente, mergulha-se a carne na mistura e come-se imediatamente. Os peixes mais apreciados como sashimi são o atum, o salmão e o robalo, os quais dão um colorido especial à bandeja, geralmente em formato de um navio, ricamente decorado com vegetais, não podendo faltar o gengibre em conserva, digerido no final da refeição, para dirimir o gosto do peixe cru.

Sayonara
         Expressão verbal japonesa usada em despedidas de longo prazo. Tem o significado aproximado de “já que é assim…”. Pode ser usado também como adjetivo, p.e. em “festa de despedida” (sayonara paati), sendo paati, verbalização do inglês “party”. Não se deve usar o termo para as despedidas do dia a dia.

Samurai
         Era o espadachim contratado como empregado (vassalo) do senhor feudal, daimyo. Exímio no manejo das espadas, acompanhava o daimyo em suas campanhas de defesa de seu feudo ou tomada de feudos de outros. Como no sistema militar, existiam diferentes patentes de samurai. Seguiam uma filosofia de vida, o bushido, que preconizava uma conduta exemplar. Assim como as gueixas, o samurai é uma figura ícone do Japão.

Seppuku  – (sê-pucu)
         Conhecido comumente como harakiri (cortar o ventre), é um ritual cerimonioso de suicídio, que pode ser solitário ou acompanhado. Era praticado também como pena de morte para culpados de crime. Sentado na posição do lótus, o suicida golpeia o ventre esquerdo com uma espada curta, cortando a barriga no sentido para a direita. Se solitário, pode finalizar o ato, enfiando a ponta da espada de lamina longa no pescoço e deixando o corpo cair sobre a mesma, com o cabo apoiado no chão. Se condenado ou tendo a assistência de um amigo ou parente, após o corte na barriga, recebe o desfecho de misericórdia com a lâmina de uma espada longa, num só golpe no pescoço, decapitando o suicida.  

Shoyu – (xiô-iú)
         Chorume produzido pela fermentação mais demorada do misso. Este processo artesanal pode demorar meses a anos. O processo industrial não demanda tanto tempo, no entanto é mais prejudicial à saúde, pela adição de inúmeros produtos químicos. O shoyu faz parte obrigatória da culinária asiática e seu uso foi amplamente difundido no mundo inteiro.

Tatami
         É uma esteira de dimensões padronizadas, com 180 cm de comprimento, 90 cm de largura e 5 cm de altura, com a parte interna constituída por palha de arroz prensada. O revestimento é feito com tiras finas de junco e firmemente trançadas. As bordas são revestidas com tecido, com cerca de 5 cm de largura. Pode ser de cor uniforme, geralmente a preta. Em peças mais elaboradas, a bordadura é revestida com tecido decorado com incrustações douradas. As medidas de aposentos no Japão são contadas em quantos tatami cabem neles. Por exemplo, um quartinho de três tatami (os das prisões), tem a medida de 180 cm x 180 cm, ou seja, 3,24 metros quadrados. São tablados originais para prática de lutas marciais, como judô, karatê e outras.

Tofu
         Um tipo de queijo confeccionado com base no feijão de soja. Faz parte obrigatória da culinária japonesa, sendo consumido na forma original ou elaborada. É comercializado em formato de cubo ou paralelepípedo. Pode servir como salada ou antepasto; cortado em cubinhos e misturado ao missoshiru; frito em fatias quadradas, obtendo-se o age; este, quando recortado na sua diagonal, forma duas peças em formato de saquinho ou sapatinho, que serve de receptáculo para o inarisushi.

Tsukemono
         Diz-se dos diferentes tipos de picles, obtidos da fermentação rápida ou prolongada de quase toda variedade de vegetais, tubérculos e raízes. Os mais comumente usados são o nabo e pepino. O suporte para a fermentação pode ser farelo de arroz ou de milho. Os mais elaborados, são fermentados em pasta de misso. O tempero é conseguido com sal, açúcar e saquê.

Tsunami
         Fenômeno natural de tremor da terra originado no oceano e que pode atingir o litoral. São capazes de provocar grandes prejuízos, dada a violência e velocidade com que a água devasta a costa atingida.

Tsuyu
         Denominação atribuída ao período chuvoso, que antecede o verão da região asiática. A umidade dos oceanos são soprados em direção à terra, aumentando assim as precipitações. Esse tipo climático é conhecido como monção.

Unagi  – (unagui)
         É a enguia de água doce, comumente encontrada em rios da região de Kansai. Serve para fazer sashimi. De carne saborosa, é preferencialmente consumida grelhada, acompanhando o prato denominado unaju.

Unaju  – (unadiú)
         Prato da culinária japonesa. Trata-se do grelhado elaborado com a enguia unagi, apresentado sobre o arroz branco. É um prato caro, pois o preparo da enguia é bastante demorado, com lavagem em água corrente constante por horas, até que sua pele deixe de ser escorregadia.

Wasabi  – (uássabi)
         É uma pasta ardida elaborada com raízes de Wasabia japonica, um tipo de raiz forte. Utilizada como tempero, mais comumente para ser consumida em fina camada sobre o filé de peixe cru, sashimi, juntamente com shoyu.

Mapa parcial do Japão

Mapa parcial do Japão, mostrando as rotas percorridas pelos personagens.

Introdução

A história da imigração japonesa no Brasil ultrapassa os 110 anos. Certamente, incontáveis aventuras e desventuras existem para serem contadas. Cada família de imigrantes, numerosa, pequena ou individual, participou de circunstâncias aventurosas, desde a decisão de  emigrar, passando pelos preparativos para a viagem transatlântica, pela viagem em si, que durava cerca de dois meses e culminando com os percalços da adaptação no novo país.

Esta novela conta a trajetória da pequena família Inoue, originária da Província de Nara, que emigrou para o Brasil no início de 1934. Era constituída pelo pai, Yoshiomi, pela mãe, Isso e pela filha, Sumie, de cinco anos, personagens centrais da história.

 A narrativa remete ao tempo em que a mãe de Isso, de nome Matsu, estava com dez anos de idade. A saga da família é contada, entremeando-se os fatos, com a descrição das circunstâncias históricas e ambientais das épocas.

Muitas informações advêm das prolongadas horas de conversa que mantive com tias e primos, durante uma viagem de 93 dias ao Japão, que realizei em 1994. Conhecendo lugares e dialogando com pessoas em Hokkaido, Tokyo, Kyoto, Osaka, Nara e Kumamoto, anotei um volume razoável de dados em meu caderno de bordo. Outros, principalmente históricos e culturais, tem como origem, filmes e seriados japoneses, que aprecio e coleciono desde minha juventude. Tais relatos foram devidamente confirmados, consultando a pouca literatura disponível e a internet.

A descrição dos fatos é uma combinação da realidade com o imaginário, apresentado na forma de contos de ficção, inspirados nos fatos que efetivamente aconteceram. Por vezes, nomes de pessoas e locais são fictícios. Em outras, tiveram seus nomes mudados, para preservar a identidade e privacidade.

O leitor encontrará na obra uma fonte de leitura, por vezes lúdica, enriquecida com uma imersão na história e cultura japonesas.

O narrador é uma entidade fictícia e atemporal, viajando através do tempo e participando das ocorrências, sem contudo, interagir com os personagens reais. Assim, o texto foi escrito na primeira e terceira pessoas, de acordo com as circunstâncias.

Os termos japoneses, quando julgado necessário, têm o seu significado sucinto ou expandido descrito na medida que aparecem pela primeira vez no texto. No Glossário complementar, está a descrição detalhada dos termos usados.

1 - A Vila de Totsukawa e o Samurai de Tokugawa

Ninguém havia dormido tranquilo naquela noite. Talvez, devido aos inúmeros acontecimentos ocorridos na semana anterior. A chuva que caia há vários dias era um dos motivos mais preocupantes. O nível d’água do rio Totsukawa tinha subido quase um metro acima do seu normal. Devido ao seu leito relativamente raso e a presença de pedras de tamanho médio a grande, a torrente de água formava turbilhões que podiam ser ouvidos mesmo pelos habitantes da vila que estavam mais longe da margem.

Naquele ano de 1889, o calor que antecede o verão japonês estava quase insuportável. O efeito das monções (tsuyu) é responsável pela umidade e chuvas torrenciais nessa época. Tsuyu é também pronunciado bayu, advindo do amadurecimento do fruto da ameixeira.

A colheita do arroz já estava comprometida, assim como a das demais plantações. O cenário dos próximos meses para a vida no vilarejo não era muito promissor.

A Vila de Totsukawa (em japonês Totsukawa-mura), doravante simplesmente Totsukawa, situava-se a pouco mais de 100 km ao sul de Nara, atual capital da Prefeitura que leva o mesmo nome, vizinha da Prefeitura de Kyoto, todas situadas em Honshu, a ilha principal e maior do arquipélago. (vide Mapa do Japão).

Figura 1.1: Localização da Vila na curva do Rio Totsukawa.
Ilustração de M.T. Inoue, 2020.

Totsukawa surgiu numa situação inusitada, na planície em que o rio que leva o seu nome, serpenteia pela topografia acidentada, atravessando diversas cordilheiras. O povoado foi criado a margem esquerda onde o rio forma uma ferradura perfeita. Esta situação propiciava por um lado, abastecimento fácil de água potável, e por outro, proteção natural contra invasão de inimigos, em razão aos mais de 100 m de sua largura. Para se chegar ao lugarejo eram dias por caminhada a pé ou em lombo de cavalo, desde Nara, subindo e descendo por desfiladeiros desafiadores. O telefone, inventado por Graham Bell há 13 anos, ainda não havia chegado por ali. Assim, as comunicações eram feitas por mensageiros.

O Japão passava por transformações nunca antes vividas. Há poucos anos, precisamente em 24 de março de 1860, ocorrera o assassinato de Naosuke Ii, ministro do xogunato Tokugawa. Fora ele que havia assinado, à revelia do xogum e da corte imperial em Kyoto, o Tratado de Harris, documento que abria as portas do Japão ao ocidente, principalmente aos Estados Unidos da América.

A inquietação por parte dos conservadores, que temiam a perda da hegemonia japonesa no extremo asiático, culminou com o golpe conhecido como “incidente de Sakuradamon”, pois foi precisamente ali, quando Naosuke era transportado de seu gabinete para a sede do ministério, que um grupo de 18 ronin rebeldes abordaram o séquito e golpearam mortalmente o ministro. Sakuradamon é um dos portais do antigo castelo de Edo, atual Palácio Imperial, em Tokyo.

Figura 1.2: Portal de Sakuradamon no Palácio Imperial em Tokyo.
Foto: M.T. Inoue, 2014.

A liderança do Japão pelo xogum estava em declínio e aquele assassinato foi o estopim para a rápida mudança na política, dando início ao próximo período de governança. Denominado Período Meiji, que perdurou até 1912, foi um intervalo que vivenciou inúmeras transformações em toda a sociedade, conhecida como Restauração Meiji. Dentre elas, adotou-se o sistema de monarquia parlamentarista, tendo o Imperador como chefe do Estado e um Primeiro-Ministro escolhido como chefe do Governo.

A chuva caia ininterrupta e cada vez mais intensa. A cobertura das casas, feita com feixes de junco, era suficientemente eficaz para condições normais de precipitação. Mesmo no inverno, quando a neve se acumulava por mais de um metro de espessura, impedia qualquer tipo de gotejamento para dentro da habitação. Mas agora, o período chuvoso prolongado do tsuyu, propiciou um encharcamento tal do junco, que não mais era capaz de reter a água da chuva.

A situação dentro das casas era desesperadora. Não havia maneira como evitar as goteiras, nem de recolher eficazmente a água. Os poucos móveis que existiam, não eram suficientes para abrigar os materiais como papel, tecidos e alimentos, que podiam ser afetados pela umidade. Felizmente, a temperatura do ar naqueles dias já estava mais parecidas com o calor do verão próximo, o que aliviava o efeito da água fria da chuva. O jeito era todos se aconchegaram nos pequenos nichos onde ainda não gotejava.

A principal preocupação era a saúde de Mitsuhiro Oka, avô de Isso, que já estava com idade avançada. Mitsuhiro foi um vassalo samurai do clã de Mito, liderado pelo daimyo (senhor feudal) Nariaki Tokugawa. Alguns dissidentes deste clã havia planejado o assassinato de Naosuke, mas Mitsuhiro não participou do incidente de Sakuradamon, devido a sua idade. Sendo um samurai, fiel seguidor do código de honra conhecido como bushido, seu orgulho não permitia qualquer tipo de prostração, rejeitando ajuda de terceiros, mesmo em tarefas mais pesadas. Ainda que aposentado de seus deveres junto ao clã, cuidava em manter as suas habilidades de espadachim, exercitando-se diariamente.

Seu filho caçula Yasukichi (futuro pai de Isso) estava com 10 anos de idade. Era aprendiz de marceneiro, ofício muito valorizado na época. Diferentemente dos dias atuais, as crianças eram concebidas com o objetivo de se ter mais mão de obra para o trabalho que sustentava a família. Desde tenra idade eram ensinadas a executar tarefas domésticas e nos cuidados com as plantações. Para Yasukichi, sendo um descendente de bushido, pensava-se treiná-lo em habilidades mais dignas da patente.

Não muito longe dali, morava a família Tetsuoka, de agricultores. A filha caçula era Matsu (futura mãe de Isso), de 10 anos. As famílias Oka e Tetsuoka eram amigas de longo tempo. Assim sendo, Yasukichi e Matsu foram apegados um ao outro, tanto durante os folguedos como na escola da vila.

A menina Matsu recebera educação primorosa em prendas domésticas, notadamente a costura. Na época, as vestimentas eram cosidas a mão, o que dava um bom acabamento nos trajes. Se o tecido era de seda, melhor ficava o caimento. A confecção do edredom japonês (futon), usado tanto como colchão, estendido no tatami, como também para se cobrir, era um desafio para qualquer aprendiz de costura.

Ela aprendera também a preparar as refeições, ainda que considerada a simplicidade dos pratos. A alimentação dos japoneses, que não os da elite imperial e feudal, fora sempre frugal, com ingredientes simples como kibi (um tipo mais pegajoso de arroz), misso (uma pasta elaborada com feijão de soja), peixe seco e variados tipos de vegetais. Não se conhecia o leite bovino e seus inúmeros derivados, usados na alimentação moderna.

Quando não estavam na escola ou auxiliando em alguma tarefa na casa ou na roça, as crianças aproveitavam para brincar de acordo com o que se conhecia e se dispunha para os folguedos.

As meninas gostavam mais de pular corda, amarelinha ou brincar com bonecas e fazer comidinha. Para os meninos, a preferência era o beisebol, que havia sido introduzido há apenas 15 anos no Japão, mas já se tornara a grande paixão dos nipônicos.

Os garotos não dispunham de luvas, tacos, bolas e outros apetrechos do jogo. Assim, tinham que improvisar com ramos de árvore como tacos, bolas feitas com trapos de roupa velha, que também serviam para simular as luvas e assim por diante.

Brincadeiras como pedrinhas ou “cinco marias”, usando pedrinhas ou saquinhos de tecido preenchidos com feijão azuki, arroz ou soja, assim como o “passa-anel” e o jankempô (tesoura, pedra e papel), eram compartilhadas entre meninas e meninos, geralmente à noitinha.

2 - A inundação de Totsukawa

Os pensamentos foram interrompidos por um estrondo surdo vindo do noroeste da vila. Justamente naquela direção, a uns 500 metros, tinha sido construída uma barragem. Servia para armazenar água para suprir o período sem chuvas e, graças as características sui generis da topografia, fora instalado um pequeno gerador de energia elétrica. Era uma usina pequena, apenas para iluminação das pequenas choupanas.

A pequena barragem não suportou o volume acumulado de água e rompeu-se, inundando a usina e contribuindo para um volume do rio Totsukawa nunca antes visto. Todas as choupanas mais próximas da margem foram as primeiras a serem inundadas e arrastadas rio abaixo. Pedras e árvores não aguentaram a violência do turbilhão, sendo levadas como se fossem palha de junco na água.

A cena dramática dos camponeses assistindo impotentes a destruição de suas choupanas era chocante. Os gritos desesperados de socorro daquelas pessoas, que não tiveram tempo de correr para um local mais seguro, ecoaram por apenas alguns segundos, antes que tudo fosse levado pela correnteza. 

Figura 2.1: Casas arrastadas pelas águas.
Ilustração: M.T. Inoue, 2020.

Por um capricho da natureza, no final da ferradura formada pelo curso d’água, a topografia era mais acidentada, com morros íngremes bem próximos às margens. A chuva dos últimos dias já havia derrubado muitas árvores e, junto com a terra revolvida pelas raízes expostas, aliada às pedras que havia se soltado, tudo foi facilmente assoreado para o rio. Cada vez mais choupanas e outros materiais do vilarejo foram sendo arrastados para este local, que logo se transformou num dique “natural”. O represamento da água era inevitável e muito rapidamente a água tomou conta de quase todo o vilarejo, devido a sua localização na curva da ferradura.

– Vamos subir para um local mais elevado!
– Sim, lá no alto mora a família Nambe.
– É certo que eles nos ajudarão, disse Mitsuhiro. O Shirogoro Nambe também descende dos bushido.
– Vamos, venham que a água está subindo muito rápido!

Não havia tempo suficiente para salvar alguma coisa. As famílias Oka e Tetsuoka subiram o vilarejo levando apenas o que podiam carregar. Como Mitsuhiro predisse, a família Nambe recebeu as duas famílias com carinho.

Procedimento similar foi adotado por outras famílias da vila. Como todos se conheciam, o companheirismo era no que restava para se apegar.

Infelizmente, algumas famílias não tiveram a mesma sorte. Foram aquelas que moravam mais próximo do rio. A velocidade e a violência de uma correnteza d’água é inimaginável. Em questão se segundos pode causar danos irrecuperáveis. Estima-se que cerca de trinta pessoas, a maioria idosos e crianças, sucumbiram na tragédia.

 Para Yasukichi, mirar aonde antes estavam suas choupanas era muito desolador. A água havia tomado conta de todo o baixo vilarejo. O pouco que possuíam havia desaparecido como num passe de mágica. Mesmo as espadas de seu pai já não mais existiam. Tentava imaginar como ele estaria se sentindo naquele momento. Não fazia ideia, em sua jovem cabeça, que assim tinha sido melhor. Nem imaginava que dali a alguns poucos anos, a figura de um samurai seria apenas uma recordação saudosista.

Os dias que se seguiram até o nível do rio retornar ao normal foram, no mínimo, emocionantes e inesquecíveis. Shirogoro Nambe e Mitsuhiro Oka assumiram a liderança para organizar as estratégias de pós-tragédia, principalmente no que concerne à sobrevivência. A alimentação e o cuidado dos feridos e doentes eram os itens mais prementes. A choupana de Nambe tornara-se o quartel-general, onde foram acumuladas as provisões e medicamentos que se dispunham.

Felizmente, o estoque existente de arroz e sal era suficiente para algumas semanas. A fonte de vegetais comestíveis tinha que ser procurada, pois as roças da vila se situavam na parte baixa, agora totalmente inundada. Frutas silvestres, todo tipo de castanha ou semente comestível e raízes e tubérculos, eram alvos da procura, tanto para a alimentação imediata, como também para prover os próximos plantios nas roças. Algumas galinhas e cabras foram resgatadas, o que supriria um pouco a necessidade de proteína animal. A caça aos animais silvestres foi a alternativa emergencial para o suprimento de carne. Coelhos e cervos eram os principais alvos das caçadas.

A primeira providência foi nomear um grupo de jovens para levar as notícias para Nara. Três rapazes voluntariaram-se para tal tarefa, a ser vencida a pé.  Foram adequadamente provisionados para os três dias de viagem, considerando ida e volta. Levavam também espadas curtas e lanças de bambu, para se defenderem de possível abordagem por assaltantes, muito comum naquela época. Felizmente, não houve incidentes preocupantes e retornaram carregados de alimentos, medicamentos e roupas, acondicionados em sacolas distribuídas em dois burros de carga. A chegada deles foi muito comemorada, como verdadeiros heróis.

Em relação aos alimentos trazidos da cidade, a distribuição tinha que ser muito bem administrada, pois eram as únicas fontes de sobrevivência. Dentre os desabrigados, os agricultores foram os que de imediato assumiram a tarefa de plantar alguma coisa que fosse possível servir para o preparo de comida. A necessidade apontou para a criatividade e curiosidade em se descobrir novas fontes alternativas de alimento. Mesmo algumas raízes de plantas, até então consideradas inócuas, foram experimentadas no preparo das refeições.

3 - Reconstrução ou Êxodo?

A medida que a água do rio baixava, a ocupação do terreno era imediata, com o preparo dos canteiros para implantação da nova roça. As culturas de médio prazo, como os cereais, foram as primeiras a serem implantadas. Aos poucos, outras culturas de colheita rápida como os tubérculos e verduras foram sendo cultivadas, tudo dentro de um cronograma de produção calibrado para uma sobrevivência a curto e médio prazo.

A construção de novas moradias teve que ser iniciada logo após a tragédia, para aliviar o desconforto da superpopulação nas pequenas choupanas. Independente da habilidade, todos os que podiam empenharam-se ao máximo em solidariedade. A matéria prima como madeira e junco tinha que ser transportada de grande distância, muitas vezes, morro abaixo.

Embora a topografia não fosse adequada para a construção de urbes, as montanhas ao redor de Totsukawa eram cobertas por florestas perenes, com árvores maduras e propícias para a extração de madeira nobre para construções. A dificuldade era o transporte. As toras eram carregadas amarradas a armações simples de madeira e puxadas por cavalos. Graças ao peso da carga, o deslizamento para morro abaixo era conseguido sem maiores dificuldades. O desdobro para tábuas e vigas era feito num pátio improvisado na periferia superior da vila.

Os mensageiros que tinham ido à Nara trouxeram notícias alvissareiras. Com a modernização que tomava conta do país, a expansão de novas fronteiras era ambição governamental, no caso, promover o desenvolvimento do longínquo norte do país. A proposta trazida foi a migração das famílias desabrigadas para Hokkaido, onde seria construída uma cidade especificamente para alojá-las.

A ilha ao norte de Honshu é Hokkaido, que foi o lar do primitivo povo ainu. Desde o Período Nara até a restauração Meiji (710 a 1868) houve inúmeras interações entre os ainu e os japoneses de Honshu, culminando com a quase extinção daquele povo. Atualmente, os poucos que restam, vivem em reservas comunais. Diferentemente de Kansai, região de Nara, Hokkaido tem um clima mais severo, com invernos mais longos e rigorosos e verões muito quentes. A paisagem também é diferente, predominando imensas planícies, com alguns poucos vulcões.

A decisão para migrar não era apenas levar em conta ser salvo de uma tragédia, mas participar de toda uma mudança de condições ambientais e sociais. Entretanto, participar de mudanças numa época de transformações gigantescas na economia, política e modus vivendi de todo um país era, ao mesmo tempo, um alento mitigador. Assim, a família de Shirogoro Nambe decidiu migrar para Hokkaido, juntamente com a maioria de outras famílias. Mitsuhiro Oka optou por migrar para Nara, onde tinha alguns parentes.

Assim, juntamente com sua esposa Kiki e seu filho Yasukichi enfrentou montanhas e desfiladeiros entre Totsukawa e Nara. A mesma aventura do trajeto teve que ser vivenciada pelos demais migrantes, pois para se chegar à Hokkaido teriam que passar por Nara.

O ano era 1890. 

4 - A despedida de Totsukawa

O caminho previsto para se chegar à Nara seria através de montanhas e vales, contornando a topografia acidentada da região. Naquele início de primavera, o esverdeado claro da nova folhagem das árvores decíduas, que permite a passagem tênue da luz solar, entremeando-se com o verde escuro das espécies perenes, principalmente o cedro-japonês sugi (Cryptomeria japônica), a árvore nacional do Japão, servia perfeitamente como cenário e pano de fundo para um observador e admirador da natureza.

Em cada residência nipônica, existe um espaço considerado sagrado. Geralmente, é o lugar onde se realiza a cerimônia do chá, ou numa sala, ocupando um lugar de destaque. Nesse ambiente, a madeira do sugi assume capital importância, representado por dois pilares (hashira) paralelos, uns 150 cm distantes um do outro, dependendo do espaço disponível. Os pilares servem como portal ao espaço sagrado do aposento.

Via de regra, há um pergaminho afixado na parede, com escrita em kanji, a escrita em ideogramas derivada do chinês, ilustrando um pensamento ou  frase de impacto significativo à família. Abaixo do pergaminho, pode haver um apoiador em madeira, com objeto decorativo ou um apoio para katana, a espada japonesa.

Em casas ricas, os pilares são o próprio tronco de sugi, ricamente torneado com reentrâncias naturais da madeira. Existem reflorestamentos com manejo específico para produzir os hashira decorativos. As árvores são plantadas juntas uma das outras, em torno de 4.500 a 6.000 plantas por hectare. Até a idade de 30 anos, não se faz intervenção, exceto a poda de ramos na parte baixa da árvore, a partir do quinto ano após o plantio. Esta desrama é feita de tempos em tempos desde a base até a altura de mais de 20 metros, quando alí é alcançado o diâmetro mínimo almejado.

Dois anos antes da colheita, quando as árvores atingem o diâmetro desejado para a produção dos hashira, todo o tronco livre de ramos é coberto por inúmeras peças de plásticos de tamanho adequado e de formato retorcido, distribuídas em posições estratégicas e amarradas fortemente à casca com fio de aço. Periodicamente é feito um reaperto dos fios. Tal procedimento é responsável pela formação das reentrâncias naturais da madeira do tronco. Os pilares, assim produzidos, são esmeradamente polidos e podem atingir preços de até 20 milhões de ienes por metro cúbico.

De longe, esse não era o caso das choupanas típicas de Totsukawa. Após a enchente, apenas umas poucas delas sobraram na parte mais elevada da vila. Os preparativos para a migração à Nara e à Hokkaido eram a única preocupação de todos os sobreviventes. O acondicionamento adequado das provisões, a lavagem das poucas vestimentas, a escolha do que levar e do que deixar, ocuparam as atenções nas últimas semanas que antecederam ao início da viagem.

As famílias Oka, Tetsuoka, Nambe e mais 16 outras formavam o contingente com destino à Nara, onde seria decidido quem ficava por ali e quem continuava a migração para Hokkaido. Mitsuhiro Oka, sua esposa Kiki e seu filho Yasukichi havia decidido por permanecer em Nara, onde seriam recebidos por familiares que ali residiam. Por sua vez, Shirogoro Nambe e a família de Matsu, seu pai Terumi e sua mãe Nanako, planejavam migrar para Hokkaido. Cinco famílias, a maioria de agricultores, decidiram ficar para a reconstrução da vila.

A despedida em Totsukawa foi inequivocamente dramática, pois significava uma separação permanente entre os migrantes e os que ali ficavam. Na cultura nipônica, o contato físico não é uma prática comum. Entretanto, os nossos protagonistas não se fizeram de rogado e os abraços e beijos aconteceram naturalmente. Além de muitas lágrimas, é claro.

– Tomem cuidado e façam uma boa viagem!

– Não se preocupem, estaremos sempre juntos!

– Cuidem bem da saúde e da alimentação, disse Mitsuhiro.

– Pode deixar. Vamos nos cuidar. Cuidem da saúde, vocês também.

– Quando chegarmos à Nara, enviaremos notícias.

– Certo. Sayonara!

Sayonara!

Os acenos de despedidas e os gritos de “Sayonara!” foram compartilhados por todos, pelos que iam e pelos que ficavam, até onde não se podia mais enxergar e ouvir uns aos outros. Esta cena, ao mesmo tempo melancólica e esperançosa, marcou por muito tempo as duas populações. Tanto que, o intercâmbio entre Totsukawa e Nara permanece até os dias atuais.

5 -A aventurosa travessia para Nara

O cortejo migratório era formado por 19 famílias, totalizando 98 pessoas, entre idosos, jovens e crianças. Para cada família foi destinada uma carroça, com rodas de madeira, tracionada por um equino. Nela, havia objetos pessoais, roupa e mantimentos. Dependendo da composição familiar, havia que se espremer espaço para idosos e crianças. Alguma coisa ainda era possível de se levar em sacolas penduradas no lombo de cavalos acompanhantes.

Animais domésticos faziam parte da comitiva. Os cães exerciam a sua tarefa natural de vigia e defesa. As cabras, que conseguiam bravamente acompanhar o séquito, serviam para fornecer o leite, um dos principais alimentos de crianças e idosos. As galinhas e frangos, que viajavam em gaiolas de madeira, cumpriam a finalidade de produzir ovos, iguaria da dieta diária dos camponeses, assim como dispor a sua carne muito apreciada no mazegohan, uma espécie de risoto. Os gatos, faziam companhia às crianças e idosos e viajavam indolentemente nas carroças.

Figura 5.1: Travessia para Nara, passando por desfiladeiros.
Ilustração: M.T. Inoue, 2020.

A previsão era vencer o trecho de Totsukawa à Nara em uma semana. Felizmente, a primavera em 1890 estava seca e a temperatura bem agradável.

O único caminho existente era o que acompanhava o rio acima, significando paradas constantes para descanso, mesmo durante o dia. No trajeto, havia choupanas para descanso e em algumas delas, ofereciam-se chá e comida, o que seriam as atuais lanchonetes. Não existiam hotéis. O descanso noturno podia ser feito em abrigos naturais na floresta, na forma de cavernas ou formações rochosas sob as quais era possível tirar um desconfortável cochilo.

A proximidade do rio sempre significou um alento, inclusive à segurança. Um peixe grelhado ou cru (sashimi – fatias nobres que são comidas com shoyu e wasabi) era conseguido com certa facilidade devido a ser um rio piscoso.

Nas paradas durante o dia, os homens aproveitavam para pescar e caçar. Os peixes que habitam as águas do Totsukawa são a enguia (unagi) e o carapau (aji), ambos com carne muito saborosa. O carapau lembra a sardinha marinha e pode ser preparada também como sashimi. Alvos da caça eram coelhos e cervos, abatidos com espingarda. Quando o volume da caça e pesca era grande, as carnes eram salgadas e postas a secar ao sol. Assim, a caravana garantia o suprimento proteico para a alimentação futura.

Para as crianças, o período durante a travessia foram verdadeiras férias escolares extraordinárias. Para passar o tempo, entre os bate-papos e brincadeiras que podiam ser jogadas a bordo das carroças, conversavam com os idosos, enriquecendo assim, os seus conhecimentos gerais. A animação da caravana era conduzida por meio das canções infantis que conheciam. As mais cantadas eram “Usagi to Kame” – O coelho e a tartaruga; “Yuyake Koyake” – A cor púrpura do entardecer e “Momotaro-san” – A canção de Momotaro, o garoto-herói que surgiu do pêssego. Geralmente, as músicas infantis são baseadas em contos folclóricos.

Naquela noite, o sono não foi tranquilo. Ruídos estranhos tinham acompanhado a caravana. Certamente, provocados por algum animal silvestre da rica fauna de Kansai.

No dia seguinte, quando Yasukichi e Matsu foram até a beira do rio para ajudar as mães na lavagem de roupa, avistaram alguns macacos que remexiam um pé de ameixeira.

O macaco japonês, Macaca fuscata, é parente próximo do conhecido macaco rhesus (Macaca mulatta), originário das florestas da China e India. Eles vivem em bandos organizados, onde a obediência ao chefe é estritamente rigorosa. No inverno procuram águas termais onde passam toda a estação deleitando-se como num spa. Atualmente, andam soltos nos parques da cidade de Nara. A ousadia e descaramento parece ser uma característica dos símios, que abordam e roubam alimento ou qualquer coisa parecida, das mãos do transeunte. Comportamento similar é visto também nos cervos sika (Cervus nippon) que dominam o espaço não só dos parques, mas chegam a transitar livremente pelas ruas mais tranquilas de Nara.

Absorto nos pensamentos, não percebi que a noite já estava se aproximando. Mas faltava pouco para chegarmos à nossa primeira parada, lugar onde havia um santuário xintoísta, onde certamente poderíamos encontrar abrigo seguro. O santuário, denominado Kotai, era bem conhecido pelos peregrinos que ali buscavam paz de espírito e incentivo para seus assuntos seculares. Havia cabanas ao redor do prédio principal, onde os transeuntes podiam se alojar. Não havia luxo nem mordomias, coisas ainda desconhecidas dos nossos viajantes.

Embora cortês, o único sacerdote do local não estava para conversa e relações públicas. Indicou-nos a cabana em que poderíamos passar a noite e recolheu-se no honden, o prédio principal. No Xintoísmo, não se consideram entidades antropomórficas como divindades. Todas as coisas do Universo são manifestações de kami, espíritos da natureza dotados de poderes não encontrados no ser humano. Nuvens, montanhas, animais, plantas, por exemplo, são materializações de kami, o sobrenatural.

A dieta do japonês sempre foi frugal e controlada: comer pouco em cada vez, várias vezes ao dia. Naquela noite, a nossa janta foi missoshiru, um caldo preparado com misso, acrescido, quando for o caso, de cebolinha e cubinhos de tofu, espécie de queijo de soja.

A pasta misso, quando deixada curtir e prensada, produz um chorume preto e salgado, o já bastante conhecido shoyu. Já dá para perceber que, na culinária japonesa, os inúmeros derivados de soja são constância obrigatória, seja na forma de produto, como também de tempero. Geralmente, o missoshiru é bebido em meio a refeição, e assim, não podemos caracterizar como sendo uma sopa.

A janta teve como base o arroz kibi, raiz de bardana, tsukenomo (um tipo de picles de nabo) e peixe grelhado pescado no rio Totsukawa.

O arroz sempre foi a principal fonte de alimento do povo japonês. Representa não somente um cultivo, mas toda uma cultura social e econômica. Existem algumas poucas espécies, todas pertencentes ao gênero Oryza. No Japão, são cultivados principalmente o arroz branco, conhecido como hakumai e o mochigome, nobre e mais pegajoso, arredondado, que é usado para a produção do famoso bolinho de arroz, o mochi (pronuncia-se moti). Comer mochi na passagem do ano é uma tradição milenar, com o significado de isso trazer sorte. Diz-se que, no dia do nascimento de um herdeiro do Imperador, planta-se um lote de arroz nobre. No primeiro aniversário do herdeiro, o arroz é colhido e é usado para confeitar os mochis do festejo.

A retomada da viagem ao nosso destino continuou em direção norte, pernoitando em outro santuário. O caminho seguiu, sempre acompanhando o Totsukawa, até a região do monte Nagatono, onde estão as suas cabeceiras. Ali, o pernoite foi em abrigos cobertos com junco, existentes para uso de peregrinos.

Um terço do trajeto já fora vencido. Felizmente, ninguém adoeceu e nenhum acidente tinha ocorrido até então. Dalí para frente, o caminho seguiu as margens do rio Amano até onde ele toma a direção nordeste.

Nesta região ocorrem inúmeras fontes de águas termais. Foi num destes paraísos, que resolvemos acampar para um longo e revigorante banho quente. Claro que não existiam os banhos termais (onsen) como os de hoje, com estrutura de hotéis de luxo, restaurantes e tudo o mais para atrair turistas. Mas, para a época, era um luxo poder banhar-se numa fonte de água quente natural, em plena floresta. Neste local aprazível, tiramos férias de dois dias para descanso e deleite. Os adultos pescaram, lavaram roupa, caçaram, enquanto as crianças se divertiram à beça.

De repente, em meio aos pensamentos, veio-me a lembrança dos que tinham ficado em Totsukawa. Como eles estariam agora? Será que todos estão bem? Conseguiram se recuperar do susto e levam a vida cotidiana de reconstrução?

Numa aventura de tal dimensão, sair incólume seria uma utopia. Em vários trechos, o caminho cortava algum afluente do rio Amano. Sendo de pequena largura e raso, a maioria dos riachos podia ser atravessada a pé. Aí é que residia o ponto fraco da viagem.

Como os rios tinham o seu leito coberto por pedras de variados tamanhos, isso contribuía para que as rodas das carroças ficassem presas nelas. Inúmeras vezes, tivemos o trabalho de desencalhar alguma carroça enroscada, quando não interrompíamos a caravana, para o conserto de uma roda quebrada. Isso contribuiu para atrasos na viagem.

Em casos extremos, o tropeço dos equinos nas pedras poderia causar a sua queda e quebra de um de seus membros, tendo que ser sacrificados. Sabendo disso, a travessia nessas condições fora realizada com todo cuidado. Felizmente, passamos todos incólumes. 

6 - A chegada em Nara

Apesar dos pequenos incidentes, uma semana depois de ter deixado Totsukawa, a caravana atingiu os limites urbanos da antiga Nara. Diferente da vila, a cidade já exibia um formato de urbe, com traçado de vias, casas, jardins e praças, assim como incontáveis santuários xintoístas e templos budistas.

O maior e mais conhecido dos templos, fica no complexo denominado Todai-ji, que abriga a maior estátua do Buda do mundo, com 16 metros de altura. A estátua está alojada dentro do templo e levou sete anos para ser construída, consumindo um volume de bronze que afetou a economia japonesa do período Nara. Foi inaugurada no ano de 752, com a presença do Imperador Shomu. A cerimônia, denominada “Abertura dos Olhos”, foi celebrada pelo monge indiano Bodhisena perante um público de 10 mil pessoas.

Figura 6.1: Tempo Todai-ji, em Nara.
Foto: M.T. Inoue, 2014

Figura 6.2: Estátua do Buda no interior do Templo Todai-ji.
Foto: M.T. Inoue, 2014.

Diferentemente do de Nara, a estátua do Buda de Kamakura encontra-se ao ar livre. Esta tem aproximadamente 13 metros de altura e foi inaugurada bem mais tarde, no período Kamakura, em torno de 1252.

Figura 6.4: Estátua do Buda, ao ar livre, em Kamakura.
Foto: M.T. Inoue, 2014.

Não foi muito difícil encontrar a casa de um tio de Mitsuhiro Oka. Ele era carpinteiro de profissão, e morava num casarão nos arredores da cidade. Além da oficina, havia estábulo para animais e muitos quartos para descanso de peregrinos que lá passavam, quando participavam de cerimônias da seita Tenrikyo, realizadas num grande espaço do prédio principal. O tio de Mitsuhiro era um adepto da seita e oferecia o local para uso dos crentes.

Esta religião foi fundada por Miki Nakayama em 1838, quando tinha 41 anos de idade. Floresceu em 1866, na convulsão sócio-política pela qual passava o Japão. Tem característica monoteísta, com traços xintoístas, impostos aos seguidores pelas perseguições durante a restauração Meiji. Nara é o berço do Tenrikyo, que tem atualmente cerca de 4 milhões de adeptos em todo o mundo.

Todos da caravana foram bem recebidos e alojados no casarão do tio. Os quartos para dormir eram confortáveis e bem cuidados, com o mínimo de mobiliário, apenas o suficiente para guardar os edredons e alguma roupa dos hóspedes. Os demais utensílios e materiais da caravana foram depositados num quarto específico.

Foram alguns dias de muito conforto e confraternização, após a longa jornada vencida desde Totsukawa. Agora, era chegada a hora da separação entre aqueles que permaneceriam em Nara e os que continuariam a migração para a distante Hokkaido.

A amizade entre Yasukichi e Matsu tornara-se mais consistente durante a viagem. Uma aventura enfrentada juntos difere da convivência do dia a dia numa comunidade fixa. Para a menina Matsu, teria que ser uma decisão vital entre ficar ou prosseguir. Os laços com seus pais eram bastante fortes e amistosos. De forma igual era o vínculo com a família Oka, o que incluía, certamente, a incipiente chama de amor por Yasukichi.

Sensibilizados com o dilema dos filhos, Mitsuhiro e Terumi dedicaram algum tempo para conversar sobre os dois. Finalmente, com a anuência da menina Matsu, optaram por deixá-la sob a custódia dos Oka, em Nara.

Assim, a família de Shirogoro Nambe, os pais de Matsu e acompanhados de mais 13 famílias, iniciaram os preparativos da viagem para Hokkaido.

7 - O piquenique inaugural em Nara

O dia estava propício para uma atividade ao ar livre com a família. O efeito do clima de monção já estava acabando, anunciando a próxima estação. O verão no arquipélago é relativamente estável, com elevadas temperaturas e pouca precipitação. Nas grandes cidades, a sensação térmica não é agradável devido à alta umidade do ar. Estávamos preparando-nos para um passeio com toda a família, inclusive a do tio de Mitsuhiro e alguns peregrinos convidados. Perdido nesses pensamentos, lembrei-me dos primeiros dias que passamos em Nara.

Quatro dias após a chegada, a caravana com destino à Hokkaido já estava preparada, com Shirogoro Nambe liderando a comitiva, juntamente com os pais de Matsu. Esta caravana, composta por 15 famílias, tinha o objetivo de se agregar a outros moradores do local onde seria, futuramente, construída a Shin-Totsukawa – a nova Totsukawa, projeto prometido pelo governo.

A despedida aqui em Nara foi também muito emocionante, principalmente para Matsu, que se separava de seus pais.

– Seja uma boa menina, disse Nanako à sua filha.

– Obedeça sempre ao Sr. Mitsuhiro, completou Terumi. Ele descende de bushido e defende que tudo tem um significado para existir, seguindo os preceitos de honra e bons costumes.

Hai!

A pronta resposta de Matsu não significava apenas um mero sim. Para o japonês, a afirmação usando este monossílabo tem o sentido de dedicar a vida para cumprir o propósito em pauta.

– Agora você é parte da nossa família, afirmou Mitsuhiro, anuído por Kiki com um aceno de cabeça.

– Sim, Matsu-chan. Vamos juntos colaborar para constituir uma grande família unida e feliz, completou Yasukichi.

O aceno de um próximo período de emoções tomava conta dos corações pré-adolescentes de Yasukichi e Matsu. Aquela semana, durante a travessia para Nara, tinha sido premiada de sensações até então não experimentadas. Tantos nos momentos mais difíceis, como em ocasiões de aconchego e tranquilidade, os dois sempre estavam presentes e juntos, para compartilhar suas apreensões e alegrias. Essa atitude viria, num futuro próximo, balancear o equilíbrio familiar necessário para a educação de seus futuros filhos Isso, Michihiro e Sakae. 

O passeio familiar teve como destino um dos parques mais próximos do centro da cidade. A caminhada tinha sido longa e um pouco cansativa. Mas, divertida e com um bom bate-papo relembrando as aventuras da recente viagem. Para o almoço, tínhamos levado bento, o item mais típico da cultura japonesa: um conjunto bem variado de comida, que pode ser preparado na noite anterior ou na manhã do dia. Pode ser dito também obento, em que a partícula “o” designa algo superior, digno, honorário, grande, usado em muitos termos japoneses, quando se quer elevar e reverenciar o significado.

Até os dias atuais, grande parte dos trabalhadores comem bento no almoço, trazidos de casa ou oferecidos pela empresa onde trabalham. Considerando isso, o japonês é o autêntico “boia-fria”. Os estudantes, via de regra, levam bento para o seu lanche na escola, colégio ou universidade. Se não os levam, compram nas inúmeras lojas que vendem bento prontos para o consumo no dia. Geralmente, os kits vêm com um ou dois pares de hashi (também ohashi), os palitos usados em vez da faca e garfo. Por isso mesmo, a comida é preparada em porções pequenas e, quando é o caso, cortada em fatias passíveis de serem abocanhadas de uma vez.

Nos kits comuns vêm: oniguiri – eis aqui de novo o “o” no início do termo –  (arroz branco prensado com as mãos ou com auxílio de formas de plástico, no formato triangular, podendo ser puro e pouco salgado ou preenchido com algum tipo de picles e sementes tostadas de gergelim salpicado por fora); tamagoyaki, uma omelete misturada com vegetais, no formato original de um paralelepípedo, cortada em porções pequenas; carne, de boi ou frango, empanada; diversos tipos de picles (tsukemono); makisushi, preparado com arroz agridoce, omelete e alguns legumes como cenoura, pepino, raiz de bardana, espalhados numa fina folha de nori (algas marinhas) como base, tudo enrolado à guisa de rocambole, formando um pequeno cilindro; corta-se o cilindro transversalmente, produzindo os “pneuzinhos” coloridos e gostosos de comer; inarisuhi, feito com um risoto de arroz agridoce e legumes, prensado dentro de um saquinho ou barquinho constituído por age, que são fatias quadradas e fritas de tofu cortadas na diagonal.

Em kits mais elaborados, adicionalmente, vem peixe no formato de sashimi. O arroz vem no formato de niguirisushi, nome genérico de arroz agridoce coberto com uma fatia fina de peixe nobre.

Figura 7.1: Kit de bento mais elaborado.
Foto: M.T. Inoue, 2014.

O nosso bento era bem simples, o frugal. Como bebida, havia ochá, o típico chá verde, também o genmaichá, chá verde acrescido com grãos de arroz tostado. Na época não se conhecia o refrigerante, nem suco de fruta. De qualquer forma, o piquenique foi um momento inesquecível para as crianças e os adultos.

Naqueles tempos, os animais selvagens como os macacos e os cervos não eram habitantes comuns dos parques. Alguns poucos animais estavam em áreas reservadas, cercadas, aonde se podia aproximar, tocar, alimentar e conversar com eles. Os cervos sempre foram animais tranquilos, que vinham sem cerimônia lamber as mãos dos observadores.

Figura 7.2: Parque em Nara, com animais silvestres livres.
Foto: M.T. Inoue, 2014.

À época, a quantidade de pessoas em passeio não era significativa. A maioria dos grupos tinha a composição parecida com a nossa: crianças pequenas, jovens e alguns poucos adultos acompanhantes. O objetivo, via de regra, era para desfrutar da comida num ambiente fora da casa, em meio à natureza. Por isso, os parques eram e continuam sendo planejados, como se fossem uma extensão da floresta no meio urbano.

O parque que visitamos, de grandes dimensões, ainda estava por ser completado. Algumas partes estavam pavimentadas com pedras no formato de paralelepípedo. As árvores que tinham sido plantadas ainda estavam em crescimento, principalmente as espécies de Pinus. O plano do parque era ambicioso, com espelhos d’água, cascatas e caramanchões com cobertura da trepadeira fuji, uma espécie de glicínia, de longos cachos com flores azuis.

O estabelecimento de parques faz parte da cultura japonesa. Conhecidos e famosos no mundo inteiro, os parques japoneses são destinados ao lazer e descanso físico e mental.

A distribuição dos elementos dentro deles obedece ao princípio do feng shui, arte milenar de harmonização energética do ambiente. Literalmente, significa “vento-água”, ou seja, ar e água, elementos que predominam no corpo humano e presentes em abundância nos parques assim projetados, com muitos espelhos d’água. A interação com tais elementos propicia, portanto, a paz, tranquilidade e relaxamento aos frequentadores.

Figura 7.3: Jardim do Palácio Imperial, em Kyoto.
Foto: M.T. Inoue, 2014.

No fim da tarde, todos contentes e satisfeitos com o passeio inaugural, retornaram tranquilamente para casa.

O bairro onde moravam era bem típico, com ruelas muito estreitas, com largura, no máximo para uma carriola puxada por humano; casas pequenas, alinhadas ao longo das ruelas, sem espaço entre elas, ou seja, a parede limite de uma casa estava rente à parede limite da próxima.

Figura 7.4: Ruela típica de Nara.
Foto: M.T. Inoue, 2014.

Estas casas viriam, num futuro próximo, a serem reconstruídas no formato de nikaya, ou seja, casa de dois andares, ou sobrado, como nos dias atuais. Desconsiderando as mansões, a maioria das casas japonesas são do tipo sobrado. Isso se deve às dimensões reduzidas das propriedades, o que levou ao planejamento esmerado do espaço residencial, utilizando-se portas de correr e amplas janelas envidraçadas para arejamento e iluminação natural. Os aposentos são, via de regra, multiuso: de dia, servindo como sala de estar, de trabalho e de estudo e a noite, como quarto de dormir, com os edredons estendidos no tatami.

Figura 7.5: O mesmo aposento, de dia e depois, à noite.
Foto: M.T. Inoue, 2014

Naquele fim de semana tinha sido programada uma peregrinação ao casarão do tio de Mitsuhiro, de adeptos vindos de outras localidades ao redor de Nara. A cerimônia de treinamento dos peregrinos, celebrada por um sacerdote da cidade, ocorrera à noite. Os peregrinos teriam o dia seguinte mais flexível e assim, alguns jovens tinham ido passear conosco, o que tornara a confraternização ainda mais amistosa.

Ainda não se podia imaginar que, para Yasukichi e Matsu, a interação estabelecida com os convidados durante aquele final de semana, incluindo o passeio em Nara, seria o embrião de uma futura e longa jornada como líderes religiosos da Tenrikyo.

8 - O beijo sob o luar de Nara

O colégio que Yasukichi e Matsu frequentavam não ficava muito distante da casa. Já estavam com 16 anos de idade e moravam em outra casa, própria e próxima do casarão. Noboru Honda, assim era o nome do tio de Mitsuhiro, portanto, tio-avô de Yasukichi, pacientemente havia adestrado o aprendiz de carpinteiro, que se tornara um exímio na profissão. Foram os três, Yasukichi, seu pai e o tio-avô Noboru que tinham construído a nova casa dos Oka, assim como todo o seu mobiliário.

A jovem Matsu já se acostumara a dormir em aposento próprio, enquanto que Yasukichi ocupava a sala para dormir. Seus pais, mais idosos do que ao tempo de Totsukawa, tinham também seu aposento próprio.

Os dois jovens de nossa história, embora criados como irmãos, sentiam um pelo outro uma atração além da forte amizade desde a infância. A expressão mais concreta e física de tal sentimento ocorreu durante um acampamento que a escola promovera naquele verão.

A saída dos escolares em excursão pelas florestas de Kansai, completando seus estudos em biologia e ciências, era uma atividade bastante comum.  O acampamento em plena floresta tinha sido uma experiência única. Mesmo sob a vigilância dos professores, os dois jovens não tinham como aplacar o efeito dos hormônios da juventude.

O primeiro beijo aconteceu sob o luar de Nara.

Yasukichi adiantara-se em terminar o jantar naquela noite e com a desculpa de ir procurar um canivete que havia perdido no bosque, saiu na frente para aguardar a chegada de Matsu. Esta também, com alguma desculpa qualquer para sair, apressou os passos ao encontro do jovem mancebo. No início, trêmulos de emoção pelo desconhecido nunca antes experimentado, ficaram entreolhando-se por longos minutos, ora fixando o olhar nos olhos do outro, ora tentando delinear com o olhar o contorno do nariz e lábios do companheiro. Daí, para se abraçarem e aproximarem seus lábios foi um lapso de tempo imensurável. Infinitamente curto para se juntarem e infinitamente longo para se separarem.

Estavam comprovando o que haviam aprendido nas aulas de biologia. Era o marco zero da trajetória que a futura família Yasuhiro e Matsu Oka, de Nara, iria viver.

Quatro anos mais tarde, com sua educação em nível médio concluída, os jovens decidem casar-se. Foram alguns meses de preparativos para o matrimônio que, para os pais de Yasukichi, seria a concretização de um longínquo sonho que nos remete a época, mesmo antes da inundação de Totsukawa.

Entrementes, os Oka tinham-se tornado adeptos do Tenrikyo, recebendo treinamento para futura liderança da religião. A cerimônia de casamento foi realizada no casarão dos Honda. Cerca de 80 convidados participaram do evento, com muita comida e saquê. Os pais de Matsu vieram de Hokkaido para prestigiar, juntamente com o casal Nambe. A festa durou três dias, como de costume. Não se conhecia a “lua de mel”. Portanto, nossos nubentes desfrutaram as núpcias em “Lua de Nara”.

9 - O nascimento de Isso

Pouco anos depois, primeiro Mitsuhiro e em seguida Kiki, vieram a falecer de tuberculose, doença ainda não dominada e principal causa de morte naqueles tempos.

 Yasukichi e Matsu continuaram a morar na casa herdada, onde iniciaram a constituição da nova família Oka, de Nara.

Os primeiros tempos na nova situação de chefe de família foi, para Yasukichi, um grande desafio, visto que o costume patriarcal da casa Oka consistia numa liderança preponderante do seu pai, Mitsuhiro. Por isso mesmo, crescera num ambiente de submissão.

Por outro lado, a educação infantil de sua esposa Matsu fora o inverso, num costume matriarcal, onde sua mãe Nanako sempre liderou as decisões dentro do lar. Seu pai, Terumi, era um homem de caráter firme, porém não dominador. Suas preocupações estavam voltadas para a melhor produção de alimentos na roça.

Assim, Matsu exerceu forte influência na constituição familiar, procurando dividir harmoniosamente a liderança com Yasukichi. Esta união equilibrada vinha sendo cultivada desde quando ainda eram pré-adolescentes. Esta base foi usada para a educação dos seus descendentes.

 A primeira filha, nascida em 01 de maio de 1903, recebeu o nome de Isso. Dois anos depois veio Michihiro e a terceira foi Sakae, a caçula de uma prole de três filhos.

O Japão, no auge da restauração Meiji, demandava uma participação bastante ativa da população para a construção do novo país, agora unificado e adentrando à era moderna, após séculos de sistema feudal dominado por xoguns. Algumas modernidades já estavam em funcionamento, mesmo antes do acidente de Totsukawa. A ligação entre Shinagawa e Yokohama pela primeira ferrovia japonesa, tinha sido inaugurada em 1872. Yokohama continua sendo, até os dias atuais, um dos mais importantes portos marítimos do Japão. As comunicações, ainda que incipientes, como o telégrafo e telefone, funcionavam nessa época, assim como a iluminação elétrica e os primeiros automóveis que circulavam pela nova capital.

A preocupação do novo governo era a demanda de trabalho para a mão de obra advinda das áreas rurais. As sucessivas guerras internas deixaram as propriedades arrasadas, cuja recuperação era impensável a curto e médio prazo. Além disso, a escassez de alimento ainda assombrava a sobrevivência de muitas famílias.

As transformações sociais, políticas e econômicas afetavam não somente o Japão. Em muitas partes do mundo, a demanda por mão de obra para fazer frente a tais transformações, era a pauta da meta dos governos. Foi sob estas circunstâncias, que aconteceram as grandes correntes imigratórias.

No Japão, a propaganda incentivando a população a aderir aos movimentos de emigração, principalmente para o Brasil, era agressiva. A garantia de que, no Brasil estava o pote de ouro no final do arco-íris, era a tônica que deslumbrava àqueles que não tinham esperança de progresso na terra natal. A maioria vislumbrava uma aventura além-mar, sob condições satisfatórias de trabalho e ganhos vultuosos, que culminaria com um retorno vitorioso para casa, num lapso de tempo bem curto. Esta ilusão acalentava não somente os jovens, mas famílias inteiras, incluindo ancestrais de idade avançada.

Assim, em 28 de abril de 1908, partiu do Porto de Kobe, o navio “Kasato Maru” para a sua viagem inaugural emigratória, transportando 165 famílias, constituídas por 781 pessoas, com destino ao porto de Santos.

Não se podia prever que a menina Isso, naquele dia com apenas cinco anos de idade, iria participar, num futuro próximo, de uma aventura transatlântica como esta.

10 - A viagem de Kyoto à Tokyo

A travessia do Mar do Norte era um grande desafio para a época. Os barcos disponíveis eram verdadeiras casquinhas de madeira boiando sobre as águas turbulentas. Não unicamente por isso, mas certamente, a dificuldade da travessia entre as ilhas, era um dos motivos da ilha maior ao norte do Japão ainda ser pouco habitada. Mesmo a chegada até o litoral limítrofe foi, para os nossos migrantes, uma aventura que merece destaque.

Após a despedida dramática em Nara, a caravana liderada por Nambe iniciou a jornada de um mês para o seu destino. A distância de pouco mais de 1000 km teria que ser vencida a pé, pois não havia ferrovias nem estradas ligando o trajeto, diretamente. A cidade de Kyoto tinha sido capital do país até a pouco tempo e alguns trechos de estrada e ferrovia circunvizinhas estavam em uso, principalmente para o comércio.

Ao longo do governo do xogunato Tokugawa (1603 a 1868), foram construídas estradas para transporte de bens e pessoas, um complexo que ia de Kyoto à Edo, conhecido como “Tokaido”, cujo significado era, aproximadamente, “caminho entre as capitais”. Por este caminho, o transporte era feito a pé, a cavalo e por kago, uma espécie de palanquim para apenas uma pessoa (não podia ser samurai!), carregado por dois homens. Naquela época, as mulheres não eram permitidas viajar sozinhas, sendo obrigatória a companhia de homens.

No início do Período Meiji, surgiu o rikixá, uma espécie de charrete para uma ou duas pessoas, puxada por um homem. O termo tem o significado de “veículo puxado por força”, onde a força é a do ser humano. Desde 1997, o riquixá foi reinventado, inicialmente em Berlin, depois tomando conta no mundo inteiro, como veículo para anúncios, tracionado por humano. Atualmente, eles existem no mundo inteiro, tracionado por bicicleta, motinhas e motos, à guisa de taxi para duas pessoas, muito versátil, conhecidas como “Tuk-Tuk”.

Figura 10.1: Antiga estrada Tokaido, que ligava Kyoto à Tokyo.
Ilustração: M.T. Inoue, 2020.

A caravana de Nambe seguiu, inicialmente, em direção à Kyoto, de onde havia alternativa de se viajar em carro sobre trilhos de ferrovia, puxado por homens ou cavalo. Eram veículos abertos, grotescos, com rodas de ferro que se encaixavam nos trilhos. A velocidade de transporte era ridiculamente baixa, mas bem menos cansativa para os passageiros. Além do mais, os trajetos nestas condições eram curtos, tendo que se alternar com peregrinação a pé, principalmente nos trechos acidentados. Mas, para isso, a nossa comitiva já estava acostumada como mestres.

A distância de quase 500 km de Kyoto até Tokyo foi vencida em dez dias, graças aos trechos em que havia, mesmo que incipiente, transporte por trem com locomotiva a carvão, a conhecida ‘Maria Fumaça’, nas proximidades da capital. A nossa caravana percorreu a “Tokaido”, refazendo o caminho por onde inúmeros personagens históricos tinham percorrido. Dentre eles, os daimyo, o senhor feudal, chamado por seus vassalos de oyakatassama, aproximadamente, “honorável senhor protetor”; os vassalos, que exibiam a patente de samurais; os ronin, que eram espadachins sem patrão e perambulavam por todo o território e, até pelo xogum, que exercia grande influência nos feudos sob a proteção do mikado, denominação mais antiga referente ao Imperador do Japão.       

A chegada à recente capital foi festejada de acordo. Para os caipiras de Totsukawa, tudo era novidade, desde as edificações, as ruas largas e pavimentadas, o tráfego de automóveis e ônibus, até o vestuário das pessoas, trajando vestidos e fraques ocidentais, com direito a chapéu, bengala e cartola. Era o Japão ocidentalizando-se.

Figura 10.2: Tokyo no final do século 19.
Ilustração: M.T. Inoue, 2020.

O deslumbre pelas modernidades, que incluía a degustação de comida, ainda que simples, mas nunca antes experimentadas, como bife, maionese, pão, macarronada, queijo, até a assitir a uma sessão de cinema em seus primórdios, com películas curtíssimas, sem som nem enredo, fora motivo para prolongar o “pit-stop” em Tokyo por mais uma semana, que serviu igualmente a um merecido descanso para os migrantes.

11 - A travessia de Tokyo à Hokkaido

O pico do verão havia passado e a amenização do clima conforme nos dirigíamos na direção norte, já dava indícios do próximo outono. Especialmente na região de Tohoku, a província setentrional da ilha de Honshu, a estação outonal é privilegiada sob o ponto de vista paisagístico. A floresta temperada mista, onde convivem latifoliadas e coníferas, exibe um mosaico colorido ímpar na paisagem. As cores vão, de um predominante amarelo avermelhado, desde o tom mais claro até o vermelho carmim, passando pelos diversos tons do verde. A região é destino obrigatório para aqueles que desejam visualizar uma paisagem, que mais parece uma obra-prima de pintura na natureza. 

A antiga estrada “Tokaido” havia se expandido, avançando, ainda que modestamente, para outras regiões ao redor de Tokyo. O reinício da viagem de nossa caravana tomou rumo por um desses caminhos da nova fronteira. Seguindo sinuosamente pelos desfiladeiros, o cortejo foi ganhando terreno a noroeste e depois ao norte, passando por algumas localidades já bem estabelecidas desde o início do Período Edo.

Nikko foi uma dessas localidades, onde está o complexo xintoísta Toshogu, mandado construir pelo primeiro xogum, Ieyasu Tokugawa, como sua derradeira morada. Seus restos mortais estão guardados num dos santuários do complexo. É também destino obrigatório de peregrinos e turistas do mundo inteiro, a procura das famosas figuras dos três macacos sábios, esculpidas em madeira. Realizado por um artista coreano, as figuras mostram um macaco tapando os ouvidos com as mãos – significando a sabedoria de não ouvir coisas más; um outro tapando os olhos – significando a sabedoria de não ver coisas más e um terceiro macaco tapando a boca – significando a sabedoria de não falar coisas más.

Figura 11.1: Escultura dos Três Macacos Sábios, do complexo Toshogu, em Nikko.
Foto: M.T. Inoue, 2014.

Aproveitando o passeio pelo complexo Toshogu, fizemos novamente um piquenique, agora grelhando batata-doce e peixe salgado. A bebida, como na maioria das vezes, foi água. O Japão é notadamente privilegiado em relação a água potável. A topografia acidentada da ilha principal Honshu, propicia acúmulo permanente de água das precipitações, seja em lagos, seja em nascentes que ocorrem em abundância, como nos inúmeros rios. Mesmo adentrando na era industrial, estas fontes de água foram consideradas como que sagradas e sua proteção contra qualquer tipo de contaminação esteve sempre na pauta de prioridades do governo.      

Esta segunda metade do caminho, foi também acompanhada de circunstâncias favoráveis de saúde, alimentos e condições meteorológicas. Conforme avançávamos, a estrada ficava cada vez mais estreita, até ao ponto de se tornar uma trilha dentro da floresta. Mesmo aquelas condições eram percebidas com entusiasmo e um alento, ao mesmo tempo excitante e temeroso, pela nova morada que estava por ser alcançada.

O item mais importante para a sobrevivência é, sem dúvida, a alimentação. Felizmente, o ambiente do trajeto era o supermercado da caravana. Vários tipos de cogumelos comestíveis, raízes e tubérculos de plantas conhecidas, frutas silvestres, todo tipo de castanha, perfaziam a cesta de acompanhamentos, enquanto que o básico arroz fazia parte da provisão desde o início. A proteína animal era provida pelo peixe salgado e seco, peixe fresco dos rios e lagos, assim como pela carne de algum animal como o cervo e coelho que podiam ser caçados.

Na terceira semana de viagem desde Nara, alcançamos o Mar do Norte. A visão do mar aberto deixaram os caipiras de Totsukawa boquiabertos. Pode-se pensar até que a frase – eita marzão besta! – estava na mente de todos os migrantes. A travessia era feita em pequenos barcos com remos de popa, com capacidade de até 10 pessoas, além da bagagem. A distribuição dos passageiros nos barcos disponíveis, a acomodação das bagagens e outros itens como provisão e bens que, rotineiramente eram transportados de Honshu para Hokkaido, e o próprio estresse provocado pela ansiedade, tomaram conta da movimentação no pequeno Porto de Aomori, à época, o mais avançado ponto setentrional.

O destino mais próximo era o Porto de Hakodate, o mais importante da ilha e província de Hokkaido. Mesmo assim, seriam mais de 100 km a serem vencidos em mar aberto, sujeito a tempestades. Felizmente, a travessia ocorreu tranquila, embora muita gente tenha sofrido os enjoos típicos de viagem marítima. Em pouco mais de cinco horas já estávamos desembarcando no Porto de Hakodate. Daí para frente, a viagem seria em estradas de carroças pelas planícies que toma conta de quase toda a ilha. Diferentemente de Honshu, Hokkaido tem características geológicas que formaram imensas planícies, com despontamento de alguns vulcões, todos ainda ativos. O maior na região é o Monte Yotei, com quase 1900 m de altura, que teve a sua última erupção há mais de 3.000 anos. A sua forma lembra bastante o Monte Fuji. Por isso mesmo, é também conhecido como Ezo Fuji, sendo Ezo a antiga denominação da ilha.

A viagem de Hakodate até Sapporo, capital da província e nosso destino final provisório, foi outra aventura de deslumbre pelas novas paisagens da ilha. Como o projeto governamental era a tomada da ilha como um todo, a preocupação pela logística tivera sido maior, se comparada a região norte de Honshu.

Desde o final do século 18, ainda sob a tutela do xogunato Tokugawa, a proximidade da ilha com o território russo e uma possível invasão, fez com que a ocupação se tornasse prioritária. Até ajuda dos Estados Unidos da América foi uma providência de estratégia para garantir a hegemonia. Em 1876, William S. Clark chega em Sapporo, para ficar apenas um ano. Nesse período, no entanto, fundou a faculdade de agricultura na capital, hoje a famosa Universidade de Hokkaido. Sua atuação afetou muitos aspectos sociais, deixando um legado muito admirado pelos japoneses. Inúmeros monumentos erigidos em sua homenagem podem ser vistos em Sapporo.

Figura 11.2: Hokkaido, com seus vulcões e lagos.
Foto: M.T. Inoue, 1994.

Figura 11.3: Típico representante da etnia original do Japão, os ainu.
Foto: M.T. Inoue, 1994.

No trajeto, pudemos apreciar paisagens bem diferentes que não conhecíamos. Imensas planícies, com muitos lagos, alguns de dimensões gigantescas, como os lagos Toya e Shikotsu. A visão panorâmica de praticamente 360 graus, com a protuberância dos poucos morros e vulcões rasgando a planície, era algo definitivamente inédita. Tivemos a experiência de contato com a população ainu. Pudemos conhecer um pouco de suas tradições culturais como dança, música, vestimenta, comida, ainda muito bem conservadas e cultuadas. Sobretudo o som das músicas, ainda hoje o tenho na memória. Eram acompanhadas por um instrumento bucal, em que o artista golpeia um arame de aço produzindo um estridente som metálico.

A chegada em Sapporo foi também muito comemorada, com a recepção preparada, incluindo a presença das autoridades locais. Fomos indicados a ocupar uma vila nos arredores da capital, especialmente estabelecida como abrigo provisório dos migrantes. A nossa caravana era apenas uma leva de tais peregrinos. Com a promessa de, num futuro próximo, sermos transferidos para uma localidade maior, projetada ao norte, acalentamos a esperança de lá podermos constituir um novo lar definitivo. A pensada denominação de “Shin-Totsukawa” para a nova cidade foi uma estratégia psicológica de impacto positivo no coração de todos os migrantes da inundada Totsukawa.

12 - Sobre um casamento em Nara

         O cenário é a cidade de Nara. 

         O ano é 1903, o mesmo em que nasceu Isso.

         O acontecimento é o casamento de Eza Inoue com Tiko Sanada.

         A tragédia de Totsukawa havia repercutido pelo país, assim como o plano migratório dos sobreviventes para Nara e Hokkaido.

Entrementes, a família Oka ambientara-se na nova morada construída próximo ao casarão dos Honda. Igualmente, o relacionamento entre os Oka e os Honda tornara-se cada vez mais amistoso e profundo. A frequência com que os Oka participavam das cerimônias no casarão do tio de Mitsujhiro, propiciaram a conversão da família ao Tenrikyo. Matsu, sendo mulher, recebeu treinamento na doutrina para se tornar uma sacerdotisa da religião.

Em razão de sua profissão como carpinteiro, Noboru Honda conhecia uma família, que morava no bairro, cujo patriarca era um exímio marceneiro. O filho caçula tinha o nome de Eza Inoue. Treinado pelo pai, Eza mostrava também uma notável habilidade de lidar com o formão e outras ferramentas de marcenaria. Ele havia auxiliado na construção do mobiliário instalado na nova casa dos Oka.

A família Inoue era praticante do Budismo. Com o Xintoísmo, formam as duas maiores correntes religiosas no Japão. Seu florescimento maior deu-se no Período Kamakura (1195-1333), quando surgiu o bakufu, o xogunato estabelecido em Kamakura pela primeira vez. Surgiu também nesta época, a figura do samurai, vassalo oficial submetido ao senhor feudal, daymio.

Foi em 1253, que o monge budista Nichiren fundou a doutrina do Nam-myoho-rengue-kyo, que preconiza ser possível o alívio e transformação do carma negativo acumulado nesta e em vidas passadas, revertendo o sofrimento em felicidade. Sua doutrina remete à linha do Budismo Mahayana e atualmente, liderada mundialmente pela Soka Gakkai Internacional, possui adeptos que ultrapassam os 12 milhões, em mais de 192 países e territórios.

Eza e Tiko conheciam-se há vários anos e a decisão em formar uma família ocorrera recentemente. As famílias Inoue e Sanada já se relacionavam pelo fato de ambas professarem o Budismo. Os preparativos para o casamento colocavam os envolvidos em polvorosa, como sempre. A maior preocupação era para com a festa, que geralmente se prolongava por três dias. Outro item importante era a recepção e hospedagem dos parentes e convidados vindos de outras partes do país.

A cerimônia de casamento no Budismo é bem simples, geralmente realizada nos próprios da família praticante, que já há o altar e os acessórios que são utilizados na prática individual ou familiar, diariamente. O ritual pode ser conduzido por um monge ou líder não clérigo, responsável pelas orações litúrgicas. O enlace entre os nubentes acontece por meio da cerimônia denominada san-san-ku-do, em que cada um, noivo e noiva, alternadamente, se servem de saquê por três sequências em três recipientes de tamanhos diferentes, totalizando, portanto, nove tragos. Tudo muito lentamente, em silêncio, cerimoniosamente como o ato demanda. Daí em diante, é só festa. Comida e bebida durante três dias. Os discursos, claro, alguns acatados outros, excitantes, são proferidos durante os festejos. Parentes e amigos enaltecem as qualidades dos nubentes professando, às vezes, o porvir da vida conjugal que se inaugura. 

Na família Inoue, todos moravam na mesma casa, de dimensões grandes para o padrão japonês. O local de trabalho do pai de Eza ficava no mesmo terreno, que também continha o cemitério familiar. Na época, isso era permitido para quem tinha grandes propriedades. O patriarca, de postura correta, era um homem de pouca fala e rigoroso. Conseguira manter a família de oito pessoas com sua habilidade de marceneiro. Eza teve treinamento profissional inicial com seu pai, para depois especializar-se também em carpintaria, transmitido por Noboru Honda. Isso também propiciou para que o relacionamento entre os Oka e os Inoue se tornasse mais íntimo.

13 - O nascimento de Yoshiomi

Dois anos depois do casamento de Eza com Tiko, nascia o primogênito Yoshiomi. Três anos mais tarde, veio o caçula Shigueru. Para o padrão japonês, a nova família Inoue era considerada pequena.

Pouco tempo depois, os pais de Eza vieram a falecer, de doença que na época não fora possível diagnosticar. Entrementes, os demais irmãos de Eza, todos casados e com filhos, foram aos poucos seguindo caminhos próprios, mudando-se para suas casas em Nara e em outras localidades. Assim, o casarão ficou bem grande para uma pequena família como a que estava sendo formada. O casal permaneceu lá, com Eza trabalhando na marcenaria e Tiko nos afazeres domésticos.

Yoshiomi cresceu num ambiente terno e acolhedor. Mas seu gênio não se combinava muito bem com o do seu pai. Aprender forçadamente o ofício de marceneiro não estava em seus planos. Ia bem nos estudos, destacando-se dos demais colegas. Mas, sua inteligência não combinava com uma certa aversão ao trabalho. Certamente, talvez este fosse o ponto de discórdia mais expressivo entre os dois. Não se podia prever que isto levaria, futuramente, a uma separação inevitável na família.

14 - A doação de Isso à família Inoue

Enquanto isso, a menina Isso crescia vigorosamente. No costume japonês de até então, as mulheres eram educadas para servir ao marido. O treinamento de Isso nas prendas domésticas tinha sido primoroso. Além disso, aprendera a arte de confeccionar guarda-chuvas, com um dos peregrinos que frequentava o casarão. A conhecida “sombrinha japonesa” é uma deriva do wagasa, introduzido da China no Japão durante o Período Heian (794-1185). Este guarda-chuva teve o seu florescimento justamente na região de Kansai e seus fabricantes eram considerados artesões. Faz parte da cultura japonesa e é usado em diferentes momentos, da música, da dança, do teatro, em casamentos, etc. É parte obrigatória da indumentária das gueixas.

Estamos no Período Taisho (1912-1926), com o Japão participando dos acontecimentos em nível mundial. Foi precisamente em 23 de agosto de 1914 que o Japão declarou guerra à Alemanha, adentrando assim, na Primeira Guerra Mundial, que perdurou até 11 de novembro de 1918. O conflito afetara o império em todos os aspectos sociais, econômicos e ambientais. Os produtos oriundos das famílias eram destinados a manutenção da guerra. A família Oka, que tinha o sacerdócio como profissão, não se podia classificar como abastada, além de constantes ameaças de perseguição oficial pelo governo xintoísta.

Foi nas circunstâncias deste contexto que ocorreu um fato, o qual foi um marco na vida da futura família Inoue-Oka.

Para aliviar o custo de sobrevivência familiar, Yasukichi e Matsu Oka decidem doar a filha Isso, que estava com 13 anos de idade, para adoção pela família de Eza e Tiko Inoue. Esta providência foi fundamental para os Inoue, que necessitavam de uma pessoa para auxiliar no cuidado dos dois meninos, Yoshiomi e Shigueru, assim como nos afazeres da casa. Desse modo, é que a menina Isso foi recebida pelos Inoue, num primeiro momento.

No Japão Imperial, era bem comum algumas práticas, no mínimo, estranhas para um ocidental. A troca de nomes, por exemplo. Principalmente, em nível de samurai ou ronin, o indivíduo podia trocar de nome conforme a sua conveniência ou querer, claro, se adulto. Ao sair de casa, por conta ou por deserção, o afetado mudava o seu sobrenome e até o nome, se quisesse. Isso o tornava um novo indivíduo na sociedade e reconhecido por ela. Outro costume, era o de doar alguém, um filho, neto ou similar, para adoção por outra família ou indivíduo.

Na nossa história, o primeiro aconteceu com a menina Matsu Tetsuoka, que fora adotada pela família Oka por doação, quando tinha 11 anos, logo após a tragédia de Totsukawa. Agora, a própria Matsu entrega a sua filha Isso para a família Inoue, devido a circunstâncias prementes.

A chegada de Isso à família Inoue foi comemorada de acordo. Nas circunstâncias em que o país se encontrava, receber uma adolescente prendada como ela era uma benção. Sendo a casa grande o suficiente, fora lhe reservado um aposento de boas dimensões, no primeiro piso. Aliás, todo o casarão era de um só piso. Sendo um edifício construído por carpinteiros, com habilidade em marcenaria, o mobiliário da casa toda era esmeradamente dimensionado, com acabamento artesanal. Alguns detalhes, tinham incrustações de madrepérola minúsculas, o que dava um brilho especial ao móvel.

Acostumar-se ao novo ambiente, foi para Isso, um desafio que sua vivência anterior teria que confrontar e se adaptar. Graças a sua índole tranquila e submissa, o convívio inaugural com os Inoue foi bem equilibrado. Difícil, foi acostumar-se, mais tarde, com os embates entre Yoshiomi e seu pai Eza.

15 - O cozinheiro de Nobunaga

Aos homens da família Inoue não lhe eram atribuídas apenas características machistas como rigorosidade, ferocidade e impertinência, mas eles podiam exibir habilidades culinárias inesperadas. Sobretudo Eza, tinha uma facilidade inata no preparo de pratos novos, mesmo usando ingredientes comuns, o que surpreendia a todos, principalmente na recepção de convidados em ocasiões. A história conta que, no Período Sengoku (1467-1573) das guerras internas, dentre os súditos de Nobunaga Oda havia um cozinheiro-chefe de nome Kenichi Inoue.

O ano é 1580. Nobunaga está no auge de sua carreira como daymio, sendo bem-sucedido em sua campanha de unificação dos grandes feudos que dominavam o Japão. O feroz e implacável guerreiro, conhecido por sua frase “Se o pássaro não canta, eu o mato”, era também um apreciador de arte, comida e bebida. A cerimônia do chá foi amplamente divulgada por ele, criada por um dos seus súditos cozinheiros. Investiu também no desenvolvimento do teatro Nô, que mais tarde constituiu o atual kabuki. Mas, o seu maior deleite era para com a culinária. Mantinha uma cozinha com cozinheiro-chefe e inúmeros cozinheiros, a qual levava nas viagens de sua campanha por todo o território.

Foi numa dessas incursões das guerras que Kenichi teve a oportunidade de conhecer um dos generais de Nobunaga, de nome Tadaoki Hosokawa. Foi um dos generais mais jovens do clã de Nobunaga Oda, que acabou entrelaçando-se parentescamente com Mitsujide Akechi. Akechi foi quem, mais tarde, incitou Nobunaga ao suicídio no histórico incidente de Honno-ji.

Coincidência ou não, quase 400 anos depois, os descendentes dos dois personagens, Inoue e Hosokawa conhecem-se como colegas de faculdade, no outro lado do mundo, o Brasil.

Uma das qualidades de Kenichi era o da inovação. A sua criatividade em desenvolver pratos diferentes, mesmo usando ingredientes simples, era surpreendente. Ele tivera oportunidade de contato com cozinheiros estrangeiros, que as vezes encontrava nas viagens. Num desses encontros, certamente manteve troca de informações com cozinheiros portugueses, que haviam aportado no Japão em 1543. Foi deles que aprendeu a arte da panificação.

Numa ocasião, Nobunaga, que já conhecia e apreciava o pão introduzido no país por padres jesuítas, se surpreendeu quando Kenichi lhe apresentou uma inovação desta iguaria. Ele havia desenvolvido uma receita de massa diferente e preenchido o pão com uma massa adocicada de feijão-vermelho japonês (azuki) conhecida como anko. Ele apresentou como sendo anpan.

         – O que é isso, Ken?

         – Isso é anpan.

         – O que? An pan?

         – Sim, anpan. É um pão especial, preenchido com ankô.

         – Humm. Gostoso! Mais macio que o pão e também adocicado. Pode fazer para a próxima reunião que terei com os ministros do feudo.

         – Sim, Senhor!

O pan, derivado do termo português pão, faz parte hoje, da dieta e da culinária japonesa. Depois de Nobunaga, leia-se Kenichi Inoue, inúmeras variações do anpan podem ser encontradas não só no Japão, mas também nos países onde a etnia exerce forte influência, como é o caso do Brasil.

         Outra passagem, que ilustra igualmente a destreza culinária de Kenichi, foi quando inovou o componente mais comum da alimentação japonesa: o missoshiru. Para substituir o age, que tinha acabado naquele dia, ele teve a intuição de torrar pedaços de pão em forma de cubinhos e adicioná-los no missoshiru, imediatamente antes de servir.

         – Eis o seu kit de jantar.

         – O que é isso, sobrenadando no missoshiru, Ken?

         – São cubinhos torrados de pão.

         – Será que são bons, ao ponto de substituir o age?

         – Tenha certeza que sim, Senhor.

         – Humm. Saboroso! Suave e não gorduroso. Parabéns!

         – Obrigado, Senhor.

         Estava criado o primórdio do ‘crouton’.

A jovem Isso cuidava para se esmerar no preparo da comida ao ajudar Tiko, pois já conhecia a exigência de Eza quanto à qualidade do sabor, mesmo que os itens servidos nas refeições fossem simples. Até os dias atuais, a composição das refeições em família é um kit de inúmeros pratos, servidos em porções pequenas, a exceção do gohan e do prato principal, que pode ser um peixe, preferencialmente, ou carne empanada.

         Da mesma forma, esforçava-se para manter a casa sempre limpa e arrumada. Certa dificuldade logo de início, tivera em cuidar dos meninos Inoue, embora tivesse tido experiência ao ajudar Matsu nos cuidados de seus irmãos menores Michihiro e Sakae. Os garotos Yoshiomi, já com 10 anos e Shigueru com 7, não eram fáceis. Quantas vezes Isso passava susto ao deparar com sapinhos, lagartixas e outros animais do tipo, colocados juntos com algum pertence seu. O acompanhamento nos deveres escolares, por outro lado, era bem tranquilo, pois os meninos eram espertos, embora safados.

Foi nesse ambiente, ao mesmo tempo amistoso e excitante, que a jovem Isso chegou finalmente à sua exuberante juventude. Agora, o jovem Yoshiomi já não a olhava como uma irmã mais velha. Algo diferente e ao mesmo tempo, intrigante e excitante vinha tomando conta do coração daquele que, provavelmente, descendia do cozinheiro de Nobunaga Oda.

16 - O excitante banho de imersão

             [Se você for menor de 14 anos, recomenda-se não prosseguir a leitura.]

O dia a dia na casa dos Inoue seguia uma rotina sem grandes novidades. A dona da casa Tiko cuidava dos afazeres domésticos como cozinhar, limpar, lavar roupa, tudo executado manualmente, pois ainda não existiam as facilidades modernas. A jovem Isso acostumara-se a auxiliar a mãe adotiva, para a qual o seu coração nutria um amor verdadeiramente maternal. O trabalho mais pesado, sem dúvida, era a limpeza do chão dos corredores e dos aposentos, que precisava ser feita diariamente com água e pano. Esse expediente impedia o acúmulo de poeira no piso, presença impensável quando o costume é o de andar descalço dentro da casa.

Na marcenaria carpintaria, o trabalho sempre foi afetado pela sazonalidade. As encomendas para construção de casas e móveis se acumulavam da primavera até o outono. Os jovens Yoshiomi e Shigueru auxiliavam o pai Eza sempre que podiam, pois, o velho exigia bom desempenho escolar, no que os meninos se esforçavam com afinco. Devido ao caráter um pouco lascivo de Yoshiomi, não eram raros os embates entre pai e filho, ocasionando discussões, por vezes, bastante calorosas. Isso afetava o convívio familiar do dia a dia, pois, era costumeiro todos se reunirem para a janta. Muitas vezes, este momento se desenrolava tenso, quando o normal seria uma atmosfera de alegria e satisfação ao comer, estados de vida que sempre acompanharam o humano desde os tempos pré-históricos.

Com a explosão dos hormônios à flor da pele, Isso não podia esconder a atração que sentia por Yoshiomi. Até parece que estamos revendo o filme em que os atores eram Matsu e Yasukichi, mãe e pai de Isso. Jovens estranhos entre si, que cresceram sob o mesmo teto e que experimentam sensações típicas da adolescência. As trocas de olhares furtivos entre os dois, entremeados na passagem pelos corredores, estavam tornando-se mais frequentes a medida do tempo.

Isso estava com 18 anos e Yoshiomi com 15 quando aconteceu o esperado.

O jovem Yoshiomi tinha se habituado a espiar Isso quando ela tomava banho. A inspiração ao admirar o corpo feminino que se desenvolvia com o passar do tempo, era o pano de fundo nos momentos que se seguiam mais tarde, no alívio solitário da excitação em seu quarto. O vice-versa não havia ocorrido até então.

Naquela noite, após o seu banho de ofuro, banho de imersão típico entre os japoneses, Isso seguia lentamente para o seu aposento, que convenientemente ficava no caminho de passagem pelo aposento de Yoshiomi. Ela percebeu que porta de correr do quarto estava entreaberta, no que a jovem instintivamente diminuiu os passos, agora mais cuidadosos.

Levou quase um susto ao deparar com uma cena, que até então não tinha presenciado. Ele masturbava-se lascivamente, com os olhos fechados, deitado no tatami. A respiração até ofegante do rapaz despertou nela uma sensação nova, ainda não experimentada. O calor que começou a tomar conta de seu corpo, ainda quente daquele tépido banho de imersão, chegava a sufocar a sua própria respiração, agora mais acelerada e impossível de conter.

O corpo do rapaz que admirava naquele momento, em nada se comparava ao corpo do menino que se acostumara ver durante o banho que lhe dava até há poucos anos. No auge do ato solitário do rapaz, quando o seu líquido jorrou copiosamente, lambuzando aquele corpo e escorrendo até o tatami, um grito, misto de surpresa e de excitação, quase não pode ser contido, não fosse a jovem levar ambas as mãos à boca.

Ato contínuo, o longo e estonteante orgasmo que a jovem sentiu em seguida, ao masturbar-se voluptuosamente no silêncio do seu quarto, fora algo que lhe marcaria para sempre a experiência daquela noite de verão.

Se existe algo diferente e conduzido de maneira lasciva e esmerada, é o banho de ofuro. Provavelmente, inventado pelos japoneses, trata-se de uma banheira larga e profunda o suficiente para abrigar um adulto sentado na posição fetal. Isso vale para os banheiros domésticos.

A água pode ser aquecida por serpentina elétrica ou, num modo mais antigo, por fogo direto sob o contêiner. Nesse caso, existe uma plataforma de madeira com ripas trançadas que é empurrada para o fundo ao se adentrar no tanque. O ritual correto é lavar-se esmeradamente, da cabeça aos pés, enxaguando-se à vontade. Só depois do corpo assim limpo, pode-se entrar no contêiner para um longo, quente e lascivo mergulho estático, ficando apenas a cabeça acima do nível d’água. A temperatura deve ser pouco mais elevada do que a do corpo, em torno dos 40 graus Celsius.

A imersão nessas condições, propicia um relaxamento ímpar que, conforme os entendidos, prepara o corpo para um deleite e descanso noturno sem precedentes, inclusive para atos sexuais. As estações termais, onsen, são mais que ofuro em escala maior, onde o contêiner é uma piscina, natural ou artificial, onde várias pessoas podem, simultaneamente, se deliciar deste relaxamento, adultos e crianças. Existem estações públicas nas cidades, separadas para homens e mulheres. Muitas vezes, esta separação ocorre por horários. Nesse caso, podem ocorrer enganos constrangedores, mas este é um assunto para outra estória.

17 - Isso e Yoshiomi

 Pouco tempo depois daquele episódio do banho de ofuro, Isso e Yoshiomi começaram a se encontrar, no início furtiva e ocasionalmente. Mais tarde, já com suspeita dos pais dele, os encontros tornaram-se mais frequentes. Shigueru tornara-se um confidente desde há muito tempo, pois ele se encontrava, também às escondidas, com uma garota da mesma escola, amiga em comum com Yoshiomi.

Esta situação perdurou pouco. Com a idade de Isso aproximando-se dos 20 anos, o relacionamento dos jovens foi dado a conhecer a Eza e Tiko, que não se opuseram ao noivado. Daí para o casamento, foi um tempo apenas o suficiente para os preparativos do enlace. Se existe cerimônia pomposa, é o casamento japonês. E no caso dos nossos heróis, seriam duas, uma cerimônia no Tenrikyo e outra no Budismo. Via de regra, durante a cerimônia, a noiva troca de vestimenta por três vezes. O ritual segue, sem grandes mudanças, o mesmo já descrito nesta novela.

Para a festa do matrimônio, vieram muitos parentes e amigos vindos de Hokkaido, Kyoto e Nara. Durou, como de praxe, três dias com muita comida e bebida. Foi para Eza uma oportunidade ímpar para demonstrar suas habilidades culinárias, mesmo sendo um enorme desafio preparar comida para tanta gente. Acho que o espírito do cozinheiro de Nobunaga Oda esteve presente naquele casamento para ajudá-lo.

Preocupado em servir a todos adequadamente, tratou de resolver o problema da falta de tigelas, pratos e similares para tanta gente se servir, simultaneamente. Assim, bolou um sistema, inédito para a época, de deixar a comida separada por item em vasilhames sobre a mesa. Nesse sistema, cada pessoa precisava apenas de um pequeno prato e se servia por si mesmo, escolhendo e pegando uma pequena porção ou unidade daquilo que gostava, retornando à mesa quantas vezes fosse necessário.

         Estava criado o buffet self service!

         Estamos em 1928, um ano depois do casamento de Yoshiomi com Isso. O período de adaptação à condição de casados foi entre altos e baixos, com momentos de tranquilidade e outros de discussão acalorada entre Eza e Yoshiomi. Sob esse ambiente foi a gestação da primeira filha do casal, Sumie, nascida em 22 de agosto de 1928.

         Com a chegada da neta, o comportamento de Eza passou por transformação, trazendo finalmente a harmonia desejada para a família. Foram poucos meses na nova situação, que logo foi incomodada com uma outra gestação. O bebê não durou muito tempo. Houve mais duas gestações, igualmente malogradas, com falecimento precoce. Seriam três meninos.

18 - A aventura biciclética de Sumie

Nesse ínterim, Sumie crescia vigorosa e sapeca. Volta e meia, estava passeando com o seu tio Michihiro, irmão de Isso.

         – Ei tio, me leva hoje para passear.

         – Sim. A pé ou de bicicleta?

         – De bicicleta, é claro.

         – Então vamos explorar um novo caminho.

Michihiro dedicava uma atenção muito especial à pequena Sumie, trazendo mimos sempre que vinha visitar a família. Nessa época, já era um rapaz bonito e saudável, que fazia os corações das moças da cidade baterem de paixão. Uma dessas garotas, a Asano, que também frequentava o casarão dos Oka, viria mais tarde, tornar-se sua esposa. Ela descendia de uma das famílias que permanecera em Totsukawa após a inundação. Mudara-se recente e temporariamente para Nara a fim estudar e morava com uma tia, mais no centro de Nara.

         – Hoje iremos até o centro, disse Michihiro.

         – Legal, tio. Vai ser uma boa pedalada.

         – Então, suba aqui na cadeirinha da frente.

         – Iuuhhuu, vamos lá!

         Nesse dia, um sábado, Michihiro pretendia aproveitar o passeio e visitar a tia de Asano, com um objetivo mais romântico, que era paquerar aquela jovem interessante. No caminho, passava-se por uma ponte sobre o rio Yamato. Na época, era apenas uma estreita ponte de pau a pique. Era o ponto alto da nova aventura para a pequena Sumie.

Figura 18.1: A travessia da ponte com bicicleta.
Ilustração: M.T. Inoue, 2020

         – Segure-se bem que agora vamos atravessar a ponte.

         – Ui, será que você vai conseguir, tio? Tenho medo.

         – Não se preocupe. Irei com cuidado.

         – Então, está bem. Vamos.

Figura 18.2: Kit com unaju.
Foto: M.T. Inoue, 2014

Chegando ao destino previsto, ambos foram bem recebidos pela tia de Asano, com um farto almoço. A grande novidade para as visitas era o unaju, um prato elaborado com a enguia japonesa e arroz. A enguia japonesa (unagi – Anguilla japônica) é de água doce, encontrada em grandes rios. Faz parte da culinária japonesa, constituindo variados tipos de pratos salgados e doces. Tem uma carne muito saborosa e nutritiva. Diz-se que ao degustar um unagi num local, um dia a pessoa retornará. Será que essa era a intenção da tia, ao servir enguia para o rapaz?

19 - Prelúdio da emigração ao Brasil

Estamos em 1933, um ano depois daquela aventura biciclética em Nara.

Já se passara 25 anos desde que o navio, “Kasato Maru”, partira de Kobe com destino ao Brasil, transportando a primeira leva de emigrantes. A propaganda para a emigração continuava no seu auge.

Entrementes, o carma da família Inoue voltara a se manifestar, com as discussões acirradas entre Yoshiomi e seu pai. Aos poucos, a perspectiva de que a mudança de ambiente poderia ser uma solução, tomou conta dos pensamentos de Yoshiomi e Isso. O pai dela, Yasukichi, preocupado com a felicidade da pequena e nova família Inoue, foi um grande incentivador de sua emigração para o Brasil. 

Para a tomada de uma decisão a respeito, haveria de ter razões o suficiente que sustentassem o empreendimento. A propaganda governamental de incentivo à emigração, trazia atrativos bem convincentes, com a promessa de que os imigrados retornariam à terra natal, após um tempo de trabalho, com os bolsos cheios de dinheiro. Para Yoshiomi e Isso, certamente fora o mal relacionamento com o patriarca Eza, o principal motivo para aderir à emigração.

Os preparativos para a viagem começaram quando o outono já dava sinais da próxima estação. Como o interesse era maior por parte do governo, os trâmites burocráticos relativos à documentação necessária, foram rapidamente vencidos.

Algumas aulas de português foram providenciadas, tendo o casarão da família Oka por local e um dos peregrinos, que vinha uma vez por semana, como professor. Era o senhor Takeshi Kanno, que havia morado no Brasil por seis meses durante a implantação do Tenrikyo por lá. Mesmo que macarronicamente, Takeshi se esforçava em ensinar o básico para a sobrevivência no novo país.

Esta mesma pessoa, Takeshi Kanno, irá ao Brasil em 1990, como missionário da Tenrikyo a busca de contatos perdidos com a sede japonesa da religião. Nessa ocasião, ao publicar anúncio num jornal de São Paulo, à procura de professantes ou familiares de imigrantes oriundos da região de Nara, descobre o paradeiro de Isso Inoue.

Embora fosse uma viagem muito longa, para o outro lado do mundo, não havia porque levar muita bagagem. Algumas poucas vestimentas, medicamentos, papéis e objetos pessoais estritamente necessários, perfazia o conteúdo da bagagem dos Inoue. Além de muita coragem e esperança.

         – Será que devemos levar este álbum de fotos, querido?

         – Absolutamente não! Estamos indo para uma viagem só de ida.

         – Mas…

         – Não tem porque levarmos lembranças daqui. Vamos mudar para o Brasil.

         – Será que existem fotógrafos por lá?

         – Por que esta preocupação?

         – É que…

         – Não interessa. Reiniciaremos uma nova vida.

         – E estes brinquedos da Sumie?

         – Pode levar. Nos próximos dois meses dentro do navio, ela terá com que brincar.

O caráter de brabeza e machismo havia sido bem transmitido de Eza para Yoshiomi. Graças à submissão de Isso, a família conseguia se manter equilibrada, aos menos, aparentemente. Houve oportunidades em que ele batia nela, como se fosse uma subalterna. Mesmo assim, Isso soube absorver com paciência e benevolência, para não afetar a menina Sumie. Por vezes, tamanha era a ferocidade de Yoshiomi a ponto de querer espancar a inocente. Nesse caso, a mãe intervia rigorosamente, protegendo a criança.

Agora que Sumie já atingia os seus cinco anos de idade e também o alento e esperança de uma nova vida no Brasil, afetaram as atitudes de Yoshiomi, que se tornara mais paciente e carinhoso para com a família.

Finalmente, os documentos e os demais preparativos estavam definidos e organizados. O agendamento para a viagem emigratória preconizava saída pelo Porto de Kobe, que distava aproximadamente 60 km de Nara.

Os principais parentes das famílias Oka, Tetsuoka e Inoue haviam decidido viajar para Kobe acompanhando a despedida dos três que emigrariam em breve para o Brasil.

Um evento como emigrar para um país longínquo, certamente demanda um ato de despedida no sentido de um adeus para sempre. O Porto de Kobe já se acostumara com tal expediente. Bandeirolas, serpentinas, muitos sorrisos e choros em convulsão, ao som da música de despedida Hotaru no Hikari, tocada em todas as viagens, desde a inaugural empreendida pelo “Kasato Maru”, tomaram conta daquele ambiente.

Esta melodia da cultura japonesa é presença obrigatória em todos os atos de despedida, não só para viagens, mas em formaturas de escola e faculdades (nas quais a música se inspirou), a partida para a guerra e no encerramento de qualquer coisa, inclusive em funerais. A letra, significando “O brilho dos vaga-lumes”, revela o triste momento da separação, sem deixar de enaltecer a coragem e a esperança do porvir. Clique aqui para ouvir o clipe no YouTube.

Estudando sob a luz de vaga-lumes

Ou da Lua refletida na janela

Na solidão, por muitos sóis e luas

Passamos estudando

 

E sem novidades

Os anos passaram lentamente

Hoje abriremos a porta do passado

E muitos partirão

 

Ficando ou partindo

Hoje tudo termina

Sem tempo para compartilhar

Milhares de sentimentos

 

Agora cantemos

Do fundo de nossos corações

A canção com apenas uma frase:

“Boa Sorte”

Figura 19.1: A emocionante despedida em Kobe.
Ilustração: M.T. Inoue, 2020.

O dia era 11 de novembro de 1933.

O local, Porto de Kobe, Província de Hyogo, na grande Osaka.

A estação era final de outono.

Com o coração apertado, Isso respirou fundo, pegou a mão de Sumie e acompanhou o marido, subindo a plataforma de acesso ao navio “Buenos Aires Maru”, que os levaria até o Porto de Santos, Estado de São Paulo. O navio tinha 140,5 metros de comprimento e podia transportar até 1140 passageiros. O tempo estimado de viagem até o destino era de dois meses.

O convés do navio estava abarrotado de passageiros, todos tentando visualizar seus parentes e amigos que tinham vindo para a despedida. Para a pequena Sumie, lá do alto, as pessoas no cais lhe pareciam como que formigas se apertando umas às outras. Com a cabeça enfiada entre as pernas dos adultos, conseguiu visualizar as avós Matsu e Tiko. Acenando para elas, não podia imaginar que esta seria a última vez que as via.

Assim foi a rápida e derradeira despedida da pequena família Inoue.

Epílogo

Dentre os nossos protagonistas, somente a pequena família Inoue, respectivamente, Yoshiomi, Isso e Sumie, é que participou da emigração para o Brasil. Os demais familiares permaneceram no Japão, cada família retornando às suas localidades.

As famílias Oka e Inoue ficaram em Nara. A família Tetsuoka retornou para Hokkaido, pois já estavam residindo em Shin-Totsukawa, onde tinham recebido uma casa com terreno, dentro do programa de assistência aos desabrigados.

Michihiro Oka e Asano assumiram namoro, que culminou em casamento em 1938.

Nessa época, o mundo estava em constante alerta, com Hitler dominando grande parte da Europa e querendo expandir para outros domínios. Simultaneamente, o Japão vinha empreendendo campanha de expansão territorial em vários pontos da Ásia. O principal objetivo era expulsar os Estados Unidos da América das Filipinas, que lá mantinham uma base militar.

Em 1941, Asano tinha se engravidado e Michihiro fora convocado para lutar na guerra das Filipinas. Nesse confronto, foi morto em combate. Não veio a conhecer a sua única filha Hiroko, nascida em 1942. Atualmente mora com a mãe Asano em Totsukawa, reconstruída após a inundação.

A filha caçula de Matsu, Sakae, crescera no mesmo ambiente que Michihiro e tornara-se uma moça de belas feições e dotada de inúmeras qualidades domésticas. Tinha conhecido um rapaz que frequentava o casarão como peregrino, com o qual casou-se em 1940. Ambos, Sakae e Yoshitaka Kurisu, logo se mudaram para Hokkaido, com a missão de expandir o Tenrikyo no extremo Norte.

O casal Kurisu teve oito filhos. Yoshikazu Kurisu e Yoshiko, ele, Engenheiro-Elétrico em Tokyo; Mitsue, casada com Masaharu Matsumi, peixeiro em Akan, Hokkaido; Eiko, casada com Kyosaku Yagi, tocam restaurante de comida chinesa em Tokyo; Fumio Kurisu e Noriko, professores de dança de salão e líderes religiosos em Kawakita, Hokkaido; Michio Kurisu e Kayoko, ele, cabeleireiro em Kushiro, Hokkaido; Kazuko, casada com Akinori Okoshi, ele é da banda da Polícia de Sapporo, Hokkaido; Sadao Kurisu e Kiyuki, bombeiro em Azashibetsu, Hokkaido; e Yoshiko, casada com Yoshifumi Okuda, operador de máquina em Nara.             

O único irmão de Yoshiomi Inoue, Shigueru, casou-se com Sueko e tiveram um filho, Shigemi. Shigueru Inoue morreu em 1989. Shigemi casou-se com uma sobrinha de Asano Oka. Todos moram em Nara.

Linha do tempo dos fatos narrados

Períodos da história do Japão

Período Nara – (710 a 794)
Período Kamakura  – (1195 a 1333)
Período Sengoku,  de guerras internas  – (1467 a 1573)
Período Edo – (1603 a 1867)
Período Meiji – (1868 a 1912)
Período Taisho – (1912-1926)

Anos e datas de referência

1534 a 1582 – Nobunaga Oda, senhor feudal que atuou para a unificação do Japão.
1543 – Chegada dos primeiros portugueses ao Japão
1844 – Invenção do telégrafo por Samuel Morse
24 de março 1860 – Assassinato do ministro Ii Naosuke
1866 – Invenção gerador elétrico – Werner von Siemens
1872 – Primeira locomotiva no Japão, entre Shinagawa e Yokohama
1876 – Invenção do telefone por Graham Bell
1879 – Invenção da lâmpada elétrica – Thomas Edson
1886 – Invenção do motor a explosão e construção do primeiro automóvel – Karl Benz
1889 – Inundação de Totsukawa-mura
1890 – Famílias desabrigadas foram transferidas para Nara e Hokkaido
1903 – Nascimento de Isso (Oka) Inoue
1905 – Nascimento de Yoshiomi Inoue
18 de junho de 1908 – Chegada do “Kasato Maru” ao porto de Santos, Durou 52 dias.
1914 – 1918 – Primeira Guerra Mundial
1927 – Casamento de Isso e Yoshiomi Inoue
1928 – Nascimento de Sumie Inoue
21 de novembro de 1933 – Partida do Navio “Buenos Aires Maru” com destino ao Brasil
07 de janeiro de 1934 – Chegada da Família Inoue ao Brasil

Referências

INOUE, M.T.  Technical Report to JICA.  Forestry and Forest Products Research Institute of Hokkaido, Tsukuba, Kyushu and Kansai. June to September, 1994

INOUE, M.T. Anotações pessoais de viagem.

SASAKI, E.M. Estudos de japanologia no Período Meiji. Estudos Japoneses, n. 37, p. 19-32, 2017

SATO, T.  Trees and Srubs of Hokkaido. 1990

 

CONSULTA a INTERNET

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https://pt.wikipedia.org/wiki/Monte_Fuji. Acesso em 09/02/2020

FIM DESTE VOLUME

Leia a sequência da saga no próximo volume "De Nara ao Brasil: ida sem volta"