De Nara ao Brasil

Novela prevista para ter 16 capítulos, narrando a saga da pequena família Inoue, desde a aventurosa viagem de Nara ao Brasil, a dificultosa adaptação e fugas dos cafezais, até o falecimento precoce do patriarca.

Conteúdo

Introdução

O primeiro volume da coleção “Crônicas Memoráveis”, que recebeu o título de  “Crônicas de Nara”, foi dedicado a descrição histórica e geográfica dos ancestrais da família Inoue, desde a trágica inundação da Vila de Totsukawa em 1889, até a saída emigratória para o Brasil em 1933.

Neste segundo volume da coleção, intitulado “De Nara ao Brasil: ida sem volta”, será narrada a saga da primeira geração da pequena família Inoue, originária da Província de Nara, Japão, desde a sua chegada em Santos, SP, em 1934, até o falecimento em idade jovem do patriarca Yoshiomi, em 1949.

Os percalços iniciais como imigrantes não diferem muito das vividas pela maioria dos aventureiros, que ao Brasil vieram pela ilusão de fazer fortuna de maneira rápida e retornar à sua terra natal.

Como sempre, as narrativas seguem o escopo dos contos de ficção inspirados em ocorrências reais, num misto de realidade e imaginário. A inspiração advém de narrativas ouvidas dos familiares, em diversas ocasiões, desde o meu nascimento até os dias atuais. As conversas, mesmo que ocasionais, com minha mãe Isso e minhas irmãs Sumie, Hiroko e Toshiko, já falecidas, formam o arcabouço inspirador para a novela. O mesmo é válido para as poucas e recentes oportunidades que tive de conversar com minha única irmã viva, Mitiko, para reconfirmar minhas lembranças e adicionar outras advindas de sua memória ainda ativa.

Quando considerado pertinente, nomes de pessoas, instituições e locais são trocados, visando à privacidade. Em outras vezes, são meramente fictícios.

Termos japoneses e outros menos conhecidos são explicados sucintamente quando aparecem pela primeira vez no texto. Quando for o caso, os termos têm sua explanação mais detalhada em glossário disponibilizado no volume.

Gratidão é devida aos meus ancestrais, em especial aos meus pais, Yoshiomi e Isso, assim como às minhas irmãs, de cujas lembranças formam o núcleo das narrativas.

Mario Takao Inoue
Autor

O contexto mundial no início do século 20

Para a pequena família Inoue, a despedida no porto de Kobe naquele 11 de novembro de 1933 foi, sem dúvida, algo inesquecível. Para o chefe da família, Yoshiomi, foi o dia da libertação das brigas com seu pai. Aquelas frequentes e muitas vezes, acirradas discussões, afetava o convívio harmonioso naquele lar. Para ele, aquele tinha sido o motivo determinante para empreender a aventura de uma emigração. Para a mãe, Isso, o motivo que contribuiu para a sua decisão foi a perspectiva de criar uma família em um novo ambiente, pois estava desiludida com as malogradas três gestações perdidas, em meio a circunstâncias não muito adequadas de relacionamento na família. Para a pequena Sumie, com apenas cinco anos de idade, tudo era novidade e a euforia tomava conta de sua pequenina cabeça.

Para entender melhor o contexto dos fatos que serão narrados, é mister que se faça uma rápida abordagem da situação mundial no final do século 19, época em que se iniciou um grande movimento migratório. Isso se deveu as consequências de inúmeras guerras e revoluções em quase todos os recantos do mundo, que assolaram economias, produção de alimentos, devastação ambiental, entre outras catástrofes.

Foi nesse período que o Império Brasil se envolveu em grandes batalhas ocorridas na América do Sul, entre elas a Guerra do Paraguai, a maior da história sul-americana, ocorrida entre 1864 e 1870. Outros embates foram a Guerra dos Farrapos, em 1835; a Guerra do Prata, em 1851 e a Guerra do Uruguai, em 1864. A recuperação das perdas sociais, econômicas e ambientais foi lenta. Na agricultura em expansão pelo cultivo intensificado no sul, principalmente em São Paulo, incitou a procura por mão de obra que fizesse frente a enorme demanda.

No Japão, ocorreu a queda do xogunato Tokugawa em 1868, após dois séculos de domínio feudal, passando à restauração do poder ao Imperador. Teve início o assim denominado período Meiji. O período feudal foi marcado pelas guerras entre as famílias (clãs) que governavam os feudos, deixando um rastro de destruição em todos os sentidos, econômico, social e ambiental. Com suas terras devastadas, os agricultores não tinham como cultivá-las e o êxodo rural era perigo iminente.

Neste cenário, a balança da procura e oferta propiciou condições políticas para que o Brasil, já então como República, deixasse de lado a xenofobia por qualquer outro estrangeiro, mas em especial aos africanos e asiáticos, e abrisse protocolos para receber imigrantes japoneses. Isso veio a ocorrer depois da assinatura do tratado de relações diplomáticas entre o Brasil e o Japão, ocorrido em 1895. Mas a chegada dos primeiros imigrantes ocorreu somente em 1908.

Por seu lado, o Japão passava por transformações em todos os aspectos, nunca antes experimentadas. A restauração teria que passar obrigatoriamente por profundas mudanças políticas e econômicas, em que as aristocracias e os empresários foram os mais beneficiados. Com a abertura de seus portos ao mundo, o Japão preocupou-se em primeira instância, em constituir estruturas bélicas que fizesse frente as grandes potências ocidentais. Desta forma, as classes trabalhadoras, principalmente as da zona rural, foram as menos aquinhoadas no processo de transformação. Sendo um arquipélago de reduzido tamanho e uma população crescente, a preocupação em alimentar tanta gente era a principal preocupação do novo governo. Foi neste cenário, que ocorreram as correntes emigratórias, dentre elas, para o Brasil.

A propaganda para arregimentar os interessados na emigração era bastante acirrada, utilizando-se de todos os meios possíveis de comunicação. O mote era que no Brasil tudo seria maravilhoso, com ganhos vultuosos no trabalho agrícola, pois o dinheiro “era como se desse em árvores”. A referência era devida a expansão da cafeicultura no sul do Brasil, que requeria mão de obra para substituir a força perdida pela abolição da escravatura ocorrida em 1888. O cartaz mais conhecido, usado desde a chamada de emigrantes para o Peru, mostrava um forte trabalhador indicando o “Burajiru” (pronúncia japonesa da palavra “Brasil”) como o país da redenção financeira.

Figura 1.1: Cartaz usado para a chamada de candidatos à emigração ao Brasil

A primeira leva de emigrantes ocorreu com a saída do navio “Kasato Maru” do porto de Kobe em 28 de abril de 1908, com 781 passageiros a bordo. Após uma viagem de 52 dias, aportou em Santos no dia 18 de junho de 1908. Esse dia é comemorado como o “Dia da Imigração Japonesa”. Depois dessa, houve várias outras viagens com imigrantes, neste e em outros navios.

A viagem de meia volta ao mundo em 57 dias - primeira parte

O título do capítulo não é sem propósito.

O porto de Kobe situa-se aproximadamente a 135° a leste de Greenwich. Diminuindo-se este valor de 180°, obtém-se 45° a oeste de Greenwich, o que corresponde aproximadamente a longitude geográfica da cidade de Ubatuba, no litoral paulista, que dista apenas 140 km da cidade de Santos em linha reta. Em outras palavras, cada cidade fica, geograficamente, uma, do outro lado do mundo, da outra.

A cidade de Kobe era meramente um movimentado porto situado na Baía de Osaka, embora pertencesse a Província de Hyogo. Com a abertura do comércio para o exterior depois de 1886, assumiu importante papel como polo de exportação e importação, sendo o seu porto considerado, atualmente, um dos maiores do Japão e do mundo. 

A região foi abalada por terremoto no início de 1995, que provocou a morte de 6.500 pessoas e deixando 300 mil desaparecidos. 

O famoso “bife de Kobe” é originário daqui. Trata-se de uma carne bovina com um marmorizado de gordura, o que lhe proporciona uma maciez incomparável. É conseguido graças a dieta dos bois a base de cerveja e muita massagem manual.

Figura 2.1: O que restou do “filé de Kobe” que experimentei em Curitiba, a convite do sobrinho Ednaldo Sasaki.
Foto: M.T. Inoue, 2018.

A pequena família Inoue estava predestinada a viajar no navio “Buenos Aires Maru”, que tinha como destino final a capital argentina. Após a despedida rápida e dramática no porto de Kobe, o navio partiu no dia 11 de novembro de 1933. A rota da viagem percorrida, a de N° 211, foi pelo Oceano Índico e Atlântico, passando pelo Cabo da Boa Esperança, na África do Sul.

A rota completa foi KOBE > Hong Kong > Singapura > Colombo > Durban > Cape Town > Rio de Janeiro > SANTOS > Montevideo > Buenos Aires > Santos > Rio de Janeiro > Belém > Cristobal > Balboa > Los Angeles > Yokohama > KOBE.

Figura 2.2: Rota percorrida pelo navio “Buenos Aires Maru” em sua viagem N° 211.

O “Buenos Aires Maru” pertencia a armadora japonesa OSK Line – Osaka Shosen Line, lançado ao mar em 11 de maio de 1929. Tinha 140,5 m de comprimento e 18,9 m de largura, podendo transportar até 1.140 passageiros. Foi usado para o transporte migratório para diversas regiões do mundo e teve papel importante na emigração japonesa ao Brasil. Foi bombardeado por aviões norte-americanos em Papua-Nova Guiné durante a Segunda Guerra Mundial, em 27 de novembro de 1943 e afundou em 40 minutos. Os sobreviventes, que estavam em 18 botes salva-vidas, soldados feridos, médicos e enfermeiros, não obstante hastearem as bandeiras da Cruz Vermelha, foram impiedosamente metralhados.


A lista de passageiros daquela viagem N° 211 foi resgatada pelo Museu da Imigração do Estado de São Paulo e do seu acervo digital, obteve-se que os nossos passageiros tiveram suas identificações de números 843, 844 e 845, para Yoshiomi, Isso e Sumie, respectivamente. Do manifesto, foi possível resgatar as respectivas idades como 28, 30 e 5 anos. Conforme a lista, naquela viagem participou um total de 979 passageiros, a maioria desembarcada no porto de Santos. Havia mais quatro famílias de sobrenome Inoue, mas nenhuma de relação familiar com a da nossa história.

Figura 2.3: Parte do manifesto do navio “Buenos Aires Maru”, viagem 211, aportado em Santos no dia 7 de janeiro de 1934.
Fonte: Museu da Imigração do Estado de São Paulo.

A viagem de Kobe até o porto de Hong Kong transcorreu tranquila, sem contratempos em relação as intempéries. A euforia inicial da viagem ainda perdurou por muito tempo na mente e no coração dos passageiros. A tristeza da despedida dos familiares e amigos acabou sendo substituída pela esperança e o alento de uma vida melhor no Brasil. Durante a primeira semana da viagem, este foi o tema abordado na maioria das conversas, entre amigos e conhecidos que foram aos poucos sendo agrupados em turmas com interesses comuns e compatibilidade de índole, característica inerente ao humano e a outros animais superiores.

 

 

A parada em Hong Kong foi bastante festejada, pois era a primeira após a saída do Japão. Na época, a cidade era possessão do Reino Unido desde a guerra do ópio, em 1842. O deslumbre pelas coisas estrangeiras tomou conta dos passageiros, mesmo para as coisas mais simples, até a compra de objetos nunca dantes vistos, como canetas-tinteiro. Estas, os japoneses denominavam mannenhitsu, que significa aproximadamente “a pena de escrever que dura dez mil anos”. Até então, os asiáticos conheciam e utilizavam a pena de escrever sem abastecimento ou então, os pincéis para caligrafia chamados fude. Após o deleite das compras e degustação de comida internacional que a cidade oferecia, era hora de reembarque para prosseguir viagem.

 

 

A viagem continuou tranquila até a próxima parada prevista, que foi em Singapura. Se em Hong Kong as novidades eram cativantes, nesta cidade-estado tudo era diferente de qualquer coisa vista até então. A cidade, que é a capital e é o país ao mesmo tempo, localiza-se numa das ilhas do arquipélago da Malásia. Foi colonizado pelos ingleses desde 1819, passando por outros dominadores, inclusive o Japão durante a II Guerra Mundial, tornando-se finalmente estado autônomo em 1965. A partir de então, a ilha considerada miserável e pobre, cresceu em poder econômico e social, ostentando-se atualmente como líder mundial em diversos aspectos, a quarta maior economia asiática e o quarto maior centro financeiro do mundo. 

 

O Índice de Desenvolvimento Humano tem o valor 0,935, o nono maior do mundo. Para se ter uma referência, o IDH brasileiro tem o valor 0,699, o 73° do mundo.

 

 

Mas na época em que os nossos viajantes por lá aportaram, ainda era uma ilha miserável e pobre. A melhor característica do país sempre foi a sua localização estratégica: é a principal passagem que permite a transação do Ocidente e Oriente Médio com a Ásia. Como um território insular de pequeníssimas dimensões, a agricultura sempre foi rudimentar, dependendo da importação de insumos em todos os setores. A fonte principal da alimentação vinha da enorme área marítima. A passagem por Singapura não teve maiores boas surpresas. Se a viagem tivesse sido uns 60 anos depois, certamente que a estada teria sido num outro nível.

 

 

Depois de Singapura, a rota mudou para a direção Norte e Noroeste, rumo à Sri Lanka.

Também um país insular, conhecido pela denominação portuguesa como Ceilão até 1972. Na época da passagem do nosso navio, a capital era denominada Colombo, que mais tarde foi renomeada para Cota. Foi colonizado por portugueses e ingleses, tornando-se independente em 1948. O ponto forte de Ceilão era e continua sendo a produção de chá, principal produto de exportação. Café e borracha também estão na lista de seus produtos.

 

 

Após uma rápida parada, o navio iniciou a navegar o trecho mais emocionante e longo da viagem. A direção foi à Sudoeste, passando pela Linha do Equador, rumo à África do Sul.

 

 

Entrementes, o júbilo inicial da viagem já se havia desvanecido, com o domínio da sensação da rotina iniciando a tomar conta dos nossos passageiros. Este psicológico começava a influenciar o bem-estar geral e aqueles mais propensos, apresentavam os sintomas típicos de uma estada de longa duração num espaço restrito. É o principal castigo a que condenados encarcerados estão sujeitos.

 

 

No momento em escrevo estas linhas, o mundo inteiro está passando pela dificuldade advinda com o surto provocado pelo vírus conhecido como Covid-19. Sendo um participante do principal grupo de risco, os idosos, estou confinado em meu apartamento e, seguindo orientação oficial, não me expondo ao ambiente. Embora o mundo moderno propicie alternativas que tentam simular uma vida “normal”, com internet, celular, computador, televisão, entregas domiciliares, etc., com programas de entretenimento e exercícios físicos, tudo on-line, nada se compara a uma vida livre, ao ar livre. Por isso, acho o momento inimaginavelmente oportuno para descrever esta parte da novela. É a sensação que vivo agora e assim, posso retratar mais fielmente as sensações que começavam a tomar conta dos nossos passageiros do “Buenos Aires Maru”, em sua viagem 211.

 

 

Já se havia passado duas semanas desde a saída de Kobe. Todas as novidades e troca de informações entre os companheiros de viagem já tinham sido passadas e repassadas. As opções de entretenimento no navio, embora este de grandes dimensões, não eram como as oferecidas nas viagens modernas de cruzeiro, com jantares fabulosos, todo tipo de diversão a bordo, enormes áreas do convés livres para atividades ao ar livre, etc. Naquela época, para os mais abastados, havia as mordomias da primeira classe, jantar com o capitão, cassino e assim por diante. Mas, para a grande maioria, que era constituída pela segunda e terceira classes, estes tinham que usar da criatividade para enganar o tempo ocioso.

Figura 2.4: Cabine para fumantes e dormitório, da primeira classe do “Buenos Aires Maru”.

Dentre os passatempos que movimentavam grande número de pessoas eram:


primeiro, o undokai, uma espécie de gincana muito comum em comunidades japonesas como clubes e escolas, onde o objetivo principal é o exercício físico e mental. O termo undo significa exercício e kai tem diversos significados, como reunião, agremiação, evento, entre outros;


segundo, o sekido matsuri, um evento para comemorar a travessia da Linha do Equador. Nos tempos idos, a travessia para o outro hemisfério, norte ou sul, era um evento marcante, inclusive com diplomação e tudo o mais.


Lembro-me de uma visita, no tempo da faculdade, que fiz ao professor de Desenho Técnico, o Engenheiro Civil Elato Silva, que me mostrou orgulhosamente o diploma que havia recebido quando de sua primeira viagem internacional de avião, a um país do hemisfério norte, o qual consagrava a sua ultrapassagem pela linha equatorial.


O nosso navio adentrou para o hemisfério sul poucos dias depois de zarpar de Colombo.

A viagem de meia volta ao mundo em 57 dias - conclusão

RESTROSPECTIVA
A viagem iniciada em  Kobe seguiu pelo Pacífico, fazendo paradas em Hong Kong, Singapura e Sri Lanka, cruzando a linha do Equador até chegar à África do Sul.

Inúmeros outros eventos ocorriam nessas viagens, incluindo casamentos, nascimentos e funerais. No site “Descubra Nikkei” estes e outros eventos estão descritos em maiores detalhes.

Figura 2.5: Imagem do cotidiano do convés num navio de imigrantes.
Foto: V. Fukuda, de álbum familiar.

O trecho até atingir a África do Sul foi demorado, quase três semanas. A passagem pelo paralelo zero quase sempre é acompanhado de turbulência, tanto em viagem aérea, como no mar. Assim, os distúrbios típicos de mal-estar era algo generalizado, mesmo sendo um navio transatlântico, com mecanismos automáticos de estabilidade.


A parada no porto de Durban foi curta. A África do Sul tem um significado importante nas viagens marítimas, pois é o ponto meridional do continente, que estabelece a divisão entre o Oceano Atlântico e o Oceano Pacífico. Foi colonizada por diferentes povos em diferentes épocas, entre portugueses, holandeses e ingleses.


Mesmo independente do Reino Unido em 1931 e com uma constituição democrática, o país sofreu forte segregação racial em relação a população negra e asiática, até o fim do apartheid, partido de maioria branca, em 1990. O país possui três capitais: Cape Town (Cidade do Cabo), a maior delas e sede do poder legislativo; Pretoria, a sede do poder executivo e Bloemfontein, sede do poder judiciário.


Depois de Durban, o próximo destino foi a Cidade do Cabo, após o contorno do Cabo da Boa Esperança, descoberto pelo português Bartolomeu Dias em 1488, marcando a descoberta do caminho marítimo para a Índia. No local, existe um obelisco demarcando a honrosa descoberta do lusitano.

Figura 2.6: Cabo da Boa Esperança e Obelisco em homenagem a Bartolomeu Dias, África do Sul.
Foto: M.T. Inoue, 1980.

Figura 2.7: Marcação de território coletiva, no Cabo da Boa Esperança, África do Sul.
Foto: M.T. Inoue, 1980.

Na Cidade do Cabo, a estada foi também prolongada para reabastecimento e preparativos para atravessar o Oceano Atlântico. Foi outra oportunidade para os passageiros se recuperarem do longo trecho anterior. Compras, passeios, divertimentos e muita comida diferente eram os principais desejos. Um ponto que caracteriza esta capital é a sua localização entre o mar e as escarpas de um planalto que constitui a famoso Morro da Mesa (Tafelberg), que distam uns poucos quilômetros um do outro.

Figura 2.8: Navio “Buenos Aires Maru” atracado na Cidade do Cabo, onde se vê ao fundo o Morro da Mesa.
Imagem obtida da internet.

Figura 2.9: Cidade do Cabo, onde se vê o Morro da Mesa, a direita.
Foto: M.T. Inoue, 1980.

Figura 2.10: Posando para foto no Morro da Mesa, tendo ao fundo a Cidade do Cabo.
Foto: M.T. Inoue, 1980.

Após o merecido descanso e satisfeitos com a parada, os passageiros retornaram ao navio para a última etapa da viagem: atravessar o Atlântico rumo ao Brasil!

 

Foi outro trecho longo, com undokais e outros tipos de passatempo, enjoos de viagem, namoros, noivados e casamentos a bordo. 

 

Nesse trecho ocorreu a passagem de Ano Novo, com comemoração prolongada por três dias, com muita festa, comida, música e dança. 

 

O céu noturno em pleno oceano, distante de qualquer luz de cidade, é algo impressionante. Se o céu estiver limpo, é possível enxergar todas as luzes de estrelas e planetas da Via Láctea.

Figura 2.11: Céu estrelado em noite aberta.
Foto: M. Camicé, por Pixabay.

Para a pequena família dos Inoue, tudo ocorrera tranquilamente, com a mãe Isso tentando controlar a brabeza do marido e a menina Sumie, que pesquisou cada canto do navio e fez amizades com muitos passageiros. 

 

Diferentemente da mãe, que tinha índole calma e comportamento passivo, Sumie mostrava uma vivacidade que comprovava a herança dos samurais. Tinha feito amizade e cultivava um amplo círculo de amigas e amigos. Essa facilidade de relacionamento proporcionou-lhe oportunidade para a continuidade de sua educação, não somente pelas aulas que recebia a bordo, como também no desenvolvimento de outras habilidades, como cuidar de crianças menores, artesanato, artes e afazeres domésticos, mesmo que limitados ao ambiente de uma embarcação. Esta preparação foi fundamental para o seu futuro papel em terras brasileiras, como a mão direita de Isso na administração do lar, em meio ao trabalho na lavoura.

 

Assim, depois de uma rápida parada no Rio de Janeiro, que era capital do Brasil, o navio finalmente atracou no Porto de Santos, destino final dos imigrantes. Isso aconteceu no dia 7 de janeiro de 1934, após uma viagem de 57 dias de duração, desde a cidade de Kobe, no Japão.

Figura 2.12: Desembarque dos imigrantes sob os olhares desconfiados dos nativos.
Imagem obtida da internet.

Passados os nervosos e demorados trâmites típicos de um desembarque em país estrangeiro, ainda mais em se tratando de um contingente enorme de imigrantes permanentes, os nossos protagonistas foram recebidos por um agenciador. 

 

Junto com outras poucas famílias previamente designadas, encaminharam-se para o veículo que os transportaria para o destino de trabalho. O grupo estava formado para atuarem na Fazenda Santa Lina, Estação Quatá, São Paulo.

O transporte de Santos à Estação Quatá

A primeira impressão que os imigrantes tiveram ao desembarcar no Porto de Santos, foi que realmente tinham chegado a um país tropical. Saindo do Japão de uma temperatura que antecipa o inverno, o contraste com a temperatura de pleno verão do litoral paulista, foi um choque térmico que abalou o psicológico dos nossos imigrantes.

O agenciador providenciou a ida da comitiva para um restaurante não muito distante do cais de desembarque. Era um estabelecimento bem simples e alternativa única que se apresentava no momento. Naquela época, não se exigia e nem existiam alternativas para requintes. Combinando com o local, a comida oferecida era igualmente bem simples: arroz, feijão, bife frito, batatas cozidas e salada de alface. Tudo servido num prato feito. Não se conhecia o bufê de comida por quilo. Para os japoneses, aquela comida totalmente estranha, a exceção da batata e do arroz, e ainda assim, temperada com sal e gordura, foi meio difícil de engolir. Mas, com a perspectiva de que aquela seria talvez a única refeição do dia, esforçaram-se para deglutir.

Outra novidade que tiveram como surpresa, foram as condições dos sanitários. No Japão daquela época, não era comum o vaso sanitário usado no ocidente. O que se conhecia era o sanitário para se agachar, conhecido como “bacia turca”. As trocas de olhares e comentários a respeito tomaram conta da conversa durante o almoço. O que mais gostaram, talvez a única coisa, foi o cafezinho servido como sobremesa. No Japão, o café era e ainda é uma bebida consumida em ocasiões especiais, não diariamente, durante o dia todo, como no Brasil.

Ato contínuo, todos foram encaminhados para os caminhões “pau de arara”, que já se encontravam estacionados perto do restaurante. Na época, não era preocupação a segurança das pessoas viajando em veículos. Em todo caso, os caminhões estavam adaptados para o transporte de trabalhadores, com bancos e cobertura de lona na carroceria, o que oferecia um mínimo de conforto. Acostumados de casa com a cortesia e fala baixa, a gritaria e comandos em voz alta dos caminhoneiros e ajudantes agrediam os ouvidos e o psicológico dos imigrantes, que certamente pensaram:

– Bom, já que estamos aqui, é melhor a gente ir se acostumando com isso tudo.

Figura 4.1: Caminhão “pau de arara” para transporte de viajantes até São Paulo.
Ilustração: M.T. Inoue, 2020.

O destino inicial da comitiva era a cidade de São Paulo, de onde partiam os trens da antiga Estrada de Ferro Sorocabana. Depois de três horas de subida da serra nos caminhões, os viajantes chegaram à estação central. Não sem antes se divertirem à beça com o festival de peidos. O efeito certamente foi causado pelo feijão do almoço. É um ingrediente desconhecido dos japoneses e introduzido na dieta assim tão de repente, provocou efeito imediato. Felizmente havia boa ventilação na carroceria do caminhão.

Pouco tempo depois, já estavam embarcados no trem que os conduziria à Estação Quatá, situada a 674 km da capital, em direção ao oeste, cujo destino final era a cidade de Presidente Epitácio, na divisa com o estado de Mato Grosso, as margens do rio Paraná. Atualmente, a antiga estação serve como um centro cultural. 

Nos vagões de passageiros, o conforto era mínimo, com bancos de madeira, fixos e ocupando o vagão todo, sem divisórias privativas. O corredor era na parte central do vagão, com as fileiras de bancos dos dois lados. A proteção contra a entrada de vento e água de chuva tinha que ser administrada pelos passageiros. A longa viagem de mais de 12 horas foi extenuante para todos.

Já era de manhã, quando a locomotiva parou na Estação Quatá. O desembarque desta vez foi mais tranquilo, em terra firme e ambiente com pouquíssimas pessoas na estação. O encaminhamento foi feito para os caminhões já preparados para transportar os passageiros e suas bagagens ao destino final: a Fazenda Santa Lina.

A chegada à Fazenda Santa Lina

O trecho entre Quatá e a fazenda era curto e em menos de uma hora de viagem a comitiva de imigrantes já adentrava o complexo administrativo, onde havia a sede, a casa do capataz e as destinadas aos trabalhadores. Além disso, existiam construções para facilitar as atividades cafeeiras, como terraço para secagem e ensacamento do café, silos para armazenamento, garagens para veículos, tratores e implementos, depósito para sementes, produtos químicos e ferramentas, assim como o armazém de secos e molhados.

A fazenda era o ponto central da cultura do café, na época. A cafeicultura estava em plena expansão, o que colocava o Brasil como um dos fornecedores principais ao mercado internacional. A abolição dos escravos, ocorrida no final dos anos 80, tinha provocado um êxodo quase total da população africana das zonas rurais. A vinda dos imigrantes japoneses era justamente para substituir a mão de obra carente.

O país, que ainda experimentava a recente vida política republicana, trazia em todos os níveis, administrativos e sociedade em geral, resquícios da era do império, onde o que predominava era a hegemonia dominadora e arrogante dos brancos em relação as outras etnias, principalmente a africana. Era comum a expressão, em relação aos imigrantes japoneses:

– Quer dizer que agora temos que aturar a troca dos negros pelos amarelos.

O número de asiáticos anterior à imigração era insignificante e eles atuavam em outros setores da economia, principalmente o comércio. Portanto, o sentimento discriminatório em relação aos imigrantes que chegavam não tinha sentido direto, pois nada se conhecia a respeito deles. A discriminação era de origem meramente xenofóbica.

As famílias recém-chegadas foram distribuídas nas casas disponíveis. As que eram compostas por mais pessoas, ou se espremiam dentro do espaço existente ou ocupavam mais de uma casa. Felizmente, a quantidade de casas de trabalhadores era em número suficiente para abrigar todo o contingente.

Já havia outros empregados na fazenda, de diferentes etnias, entre negros e brancos. Este fato foi importante nos primeiros tempos, pois os japoneses, embora tivessem vindo para trabalhar na agricultura, a maioria não conhecia nada a respeito. O alistamento para a emigração preconizava que, no país de entrada, o candidato teria que trabalhar na agricultura, não exigindo que tivesse qualquer habilidade para tal. Assim, dentre os imigrantes, havia professores, advogados, contabilistas entre outras profissões.

As tarefas relativas à cafeicultura, agricultura e atividades gerais da fazenda em si, dava-se um jeito de aprender. A maior dificuldade, comum a todos os novatos da fazenda, era a comunicação. Na prática, tudo o que haviam aprendido nas poucas aulas de português antes de saírem do Japão, não estava servindo nem para entender, muito menos para se fazer entender. Para auxiliar o capataz, havia um empregado que sabia um pouco de japonês, quem se esforçava bastante para estabelecer os diálogos, servindo como intérprete. Foi por meio deste expediente que os japoneses tomaram conhecimento do que estava por acontecer em suas vidas nos próximos dias, meses e anos.

Foi realizado um filme sobre a imigração japonesa no Brasil, sob a direção da cineasta brasileira Tizuka Yamasaki. É do ano de 1980, com o título “Gaijin” e tem como artistas principais Antônio Fagundes, Kyoko Tsukamoto, José Dumont e Sadi Cabral. É um drama que retrata fielmente a saga dos imigrantes japoneses, seus problemas de comunicação, relacionamento, costumes e principalmente, de se acostumar aos padrões do novo mundo e seu povo. Foi laureado com oito premiações, incluindo o do Festival de Cannes e o de melhor filme no Festival de Gramado.

Recomendo que, aqueles que se interessam pela história em questão, assistam à película antes de prosseguir com a leitura dos próximos capítulos desta novela. Isso poderá ajudar num melhor entendimento das colocações que serão feitas aqui.

O trabalho no cafezal

As primeiras semanas após a chegada à fazenda foram dedicadas a adaptação ao novo ambiente: a temperatura de verão, as estruturas de moradia e trabalho e aos novos costumes. Aqueles dias eram bem quentes, com temperaturas sempre acima de 32ºC e muito abafado, o que dava uma sensação desagradável. Embora no Japão as temperaturas de verão sejam igualmente elevadas, os recém-chegados tinham deixado a terra natal no início do inverno, com temperaturas bem baixas. Claro que durante a viagem de dois meses, atravessando do hemisfério norte ao sul, foi um tempo razoável para o corpo se adaptar às mudanças de clima.

Foi realizado um treinamento relâmpago acerca do trabalho em geral na fazenda e, especificamente, no cafezal. Em relação à vestimenta, para se proteger do sol e da poeira, o uso de chapéu era obrigatório. As mulheres usavam um lenço na cabeça e por cima o chapéu, geralmente confeccionado em palha. Assim, protegiam o pescoço e colo. Aos poucos, os homens também acabaram aderindo ao protocolo. O lidar com as ferramentas de trabalho é que afetava mais o físico e o psicológico dos novatos.

Figura 6.1: Imagens que ilustram cafezal e trabalhadores.
Fotos obtidas da internet, de autores desconhecidos.

Pesadas enxadas para capinação, pás e rastelos de tamanhos avantajados para a tarefa de secagem dos grãos no pátio, causavam ferimentos nas mãos que incomodavam bastante até se tornarem calos. Daí pra frente, o manejar das ferramentas era tranquilo, como tocar violão. Quem já experimentou tocar, sabe que as primeiras semanas de ensaio são muto doloridas. Mas, depois que os calinhos iniciais dos dedos se cicatrizam e secam, a nova pele vem acostumada com o deslizar nas cordas e não incomodam mais.

Figura 6.2: Pátio e detalhe de secagem dos grãos de café em terreiro.
Foto: Da esquerda, obtida na internet, de autor desconhecido. Da direita, Shulawaining por Pixabay

Dentre as tarefas mais difíceis, o peneiramento do café era, sem dúvida, o primeiro da lista. De cara, o tamanho da peneira era algo que os japoneses nunca tinham visto, com mais de um metro de diâmetro. Imaginem, se formos considerar o perfil morfológico do nipônico, com aqueles braços curtinhos. A força desprendida para o manuseio da peneira é inversamente proporcional ao tamanho do braço. Simples lei da Física. A execução correta do peneiramento, deixando todos os grãos de café permanecerem na peneira e apenas a terra, galhos e as folhas saírem fora, é verdadeiramente uma arte, que se aprende ao longo do tempo. À noite, os músculos distendidos no esforço durante o dia requisitavam por massagem com bálsamo canforado, que até hoje a memória olfativa não deixa esquecer o trauma. Quem não se lembra do “gelol”?

A rotina do trabalho no cafezal iniciava com a saída de madrugada, ainda sem a luz do dia, nos caminhões pau-de-arara que transportava os trabalhadores. Se alguma criança não pudesse ajudar no serviço, era deixada em casa. Os bebês eram carregados para o local de trabalho e permaneciam amarrados as costas de suas mães. Água e comida eram levadas para serem consumidas durante o dia. Para os japoneses, almoçar comida fria não era problema, já que estavam acostumados a comerem bento no Japão. O difícil era deglutir o feijão com arroz ou farinha das marmitas. Em alguns casos, havia estrutura improvisada para aquecer, à guisa de uma chapa de aço sustentada do chão com pedras e fogo por baixo. Com o tempo e acostumando-se as condições, os japoneses acabavam levando o seu bento, preparado durante a noite anterior. O retorno do serviço para casa seguia a rotina inversa do da manhã, após não ser mais possível enxergar os grãos de café ou as ervas daninhas, conforme a época e o tipo de trabalho.

Há um vídeo que ilustra muito bem a história dos imigrantes pioneiros japoneses, principalmente para a região de Registro, São Paulo, com depoimentos muito ricos, boas ilustrações originais, desde a chegada até o fenômeno inverso da imigração, representado pelos dekassegui. A apresentação é um pouco longa, cerca de 27 minutos, mas vale a pena conferir a saga e epopeia vivida. Para assistir, clique aqui.

Os croquetes e o sabão que não espumava

Com o passar do tempo, as atividades na fazenda tornaram-se rotina, entre acordar cedo, ser transportado até o local do trabalho, executar as tarefas de limpeza, colheita e controle de pragas, comer a boia fria e retornar à casa. 

Dependendo da época do ano e do cronograma da produção, as tarefas podiam ser feitas na própria sede da fazenda. Ali, os serviços eram de revolver os grão de café no terreiro de secagem, limpeza de impurezas como pedras, galhos e folhas e, no período de escoamento, a seleção, pesagem e ensacamento do café para o transporte à sede da cooperativa ou diretamente à estação de trem que transportaria a produção até São Paulo e daí, para Santos.

Havia uma escala, dentre as famílias de trabalhadores, para a folga semanal. Esta podia ser durante um dia de semana ou no sábado, dependendo das necessidades e escolha individual. Muitas vezes, a ida até a cidade mais próxima era um expediente obrigatório, para assuntos específicos, como compra de remédios, vestuário, consulta a dentista e médico, entre outros. A saída para a cidade era sempre um motivo de alegria, principalmente para tomar sorvete.

Suprimentos comuns como secos e molhados de consumo diário podiam ser comprados na mercearia da fazenda, especialmente montada e abastecida para atendimento aos trabalhadores. Os itens e variedades eram em número bem reduzido, mas atendiam as necessidades básicas dos trabalhadores. Mesmo porque, naquela época não se exigia tanto, nem havia a extravagante oferta de produtos multifacetados como nos dias atuais.

Figura 7.1: Exemplo de armazém de secos e molhados da época, pertencente a família Tsubaki.
Foto de álbum familiar. (A criança ao centro virá a ser esposa do autor).

 Num dos primeiros dias após a chegada, os imigrantes tiveram que se abastecer na própria fazenda. Como a venda era feita por vales, não havia grandes transtornos para as transações. A maior dificuldade era a identificação dos produtos pela sua denominação, algo que os neófitos não haviam ainda se acostumado. O sistema de venda era feito por pedido no balcão, diferentemente dos atuais supermercados, que surgiram no Brasil e no mundo durante os anos 50 do século passado, ou seja, 20 anos adiante da época dos nossos protagonistas. 

No diálogo meia-boca, entre balbuciar uma palavra e o indicar por meio de gestos o item desejado, muitas vezes a cena da transação comercial era um verdadeiro ato teatral. Por exemplo, agachava-se e com os braços balançando como asas, cacarejava-se até o vendedor entender que o pedido era de ovos. Com o tempo, os trabalhadores conseguiam obter ovos e frangos de sua própria produção no quintal.

O episódio mais marcante foi, sem dúvida, o do sabão que não espumava. Entre gestos, monossílabos e indicação com o dedo, alguém conseguiu comprar um determinado montante de sabão. Não era de um formato muito bem definido, meio arredondado, mas o aspecto era típico de sabão. E assim foi usado para a lavação de roupa e pratos.

O diálogo entre as senhoras que se ocupavam com a roupa, via de regra era assim:

A – Este sabão do Brasil é bastante estranho, né?

B – É… o formato é um pouco diferente.

A – Acontece que, por mais que eu esfregue e bata, ele não faz espuma.

B – Estou notando que também não está limpando a roupa.

Até que o caso do sabão não espumante fosse esclarecido, foram algumas lavações de roupa! Acho que a marca do sabão não era “Espumante”!

Mais tarde, foram descobrir que o sabão comprado não era sabão e sim, QUEIJO PARMESÃO!!!!

Quando a necessidade aperta e a criatividade funciona, o ser humano é dotado de uma fantástica capacidade adaptativa. Isso acontece desde a era do homem das cavernas, em todos os campos de atividade, do ambiente até o enfrentamento de situações inesperadas. No momento que escrevo esta estória, o mundo passa por uma transformação de hábitos ainda não largamente experimentados, embora já há muito conhecidos. O trabalho remoto ou home-office, é o exemplo mais marcante. Algo que se pensava que poderia ser eficiente, mas que só agora é comprovada a viabilidade de sua prática rotineira. O mundo do trabalho que não o braçal e presencial será conhecido como antes e depois do Covid-19.

 Para compensar a estranheza da comida brasileira, principalmente o feijão e a farinha de mandioca, os imigrantes usaram da criatividade para suprir seus desejos gastronômicos. E assim, o croquete foi resgatado dos costumes da terra natal e adaptado com os ingredientes da nova terra. Provavelmente inventado no início do século 20 na Holanda, propagou-se rapidamente pelo mundo inteiro. No Japão, conhecido como korokke, é confeccionado com batata, verdura e carne, suína ou bovina, como também pescados. O croquete reinventado pelos nossos amigos imigrantes era feito com o que se tinha: farinha de mandioca e carne-seca, também conhecido como jabá.

Preparado junto com os demais itens da marmita do dia seguinte, o croquete era motivo de alegria e satisfação dos nossos trabalhadores. Até uma canção haviam composto para enaltecer o papel deste componente do elenco da boia fria.

Oh! Korokke! Oh! Korokke!

Que saudade eu tinha de você.

Que delícia, que saudade de você de lá.

Quando te conheci, eras de batata e carne.

Agora aqui, tu és de mandioca e de jabá.

Oh! Korokke! Oh! Korokke!

Que saudade eu tinha de você.

A japonesa da tesoura

A vida na fazenda seguia relativamente tranquila, mesmo com as dificuldades de comunicação iniciais. O sossego foi quebrado por um acontecimento que abalou o psicológico dos moradores da propriedade, tanto o dos administradores como o dos demais trabalhadores.

A questão de segurança naqueles tempos era bem diferente da intranquilidade dos dias atuais, que afetam o comportamento das pessoas não só do ambiente urbano, mas também da zona rural. Naquela época, mesmo nas cidades, eram raros os casos de roubo, assalto ou invasão das propriedades. Em sítios e fazendas, então não se conhecia acontecimento que pudesse ser classificado como delito.

Casos policiais comuns da época, via de regra, eram de origem passional. Menos de uma década antes, precisamente em 1928, ocorrera um dos crimes mais violentos e conhecidos do Brasil: o crime da mala. O desfecho da vida de um casal de imigrantes italianos, Giuseppe e Maria Féa, culminou com o assassinato da esposa pelo marido, que a esquartejou e guardou os pedaços do corpo numa mala que seria despachada por navio para a França. O delito acabou sendo desvendado e o marido condenado. O assunto foi tema de um filme de 1928 e de especial de TV. Há um filme de 1993, The Innocent,  com Isabella Rossellini e Anthony Hopkins, que retrata um crime semelhante, com uso de mala para esconder os pedaços do cadáver.

Delitos de pequena monta, sem maiores consequências, como pequenos roubos, tomar algo emprestado e não devolver, acontecia de vez em quando. Mas o que aconteceu naquela noite quente de verão fora uma sequência de fatos até então inédita e inesperada.

O dia tinha sido estafante, com o trabalho de limpeza do cafezal usando ferramentas manuais sob um sol escaldante. Não chovia há algum tempo e assim, a poeira provocada pela capina era um atrapalho adicional ao labor, de maneira a obrigar o uso de um lenço à guisa de máscara para proteger as narinas do pó de terra. Isso aumentava o estresse, advindo da respiração dificultosa, contribuindo para maior cansaço e prejudicando, consequentemente, o rendimento da tarefa. Para os trabalhos mais leves, no perímetro da sede da fazenda, existia um micro trator. Mas, no campo, o trabalho tinha que ser feito manualmente, mesmo.

Para a manutenção da limpeza e pequenos serviços de transporte na sede, recentemente havia sido comprado um micro trator de origem japonesa, da marca “Tobatta”. Originalmente, o nome era “Kubotta”. Mas, devido a que, em português a pronúncia do nome provocava certo constrangimento, os importadores decidiram rebatizar a marca. Aliás, parece que apenas no Brasil existe tal tipo de constrangimento. Outro exemplo, enquanto no resto do mundo, a modalidade de poesia originária do Japão é conhecida como “haiku” mantendo grafia e pronúncia do h gutural originais, no país das maravilhas é adotada a denominação bacana de “haicai”. Como em português o “h” não é pronunciado, poderia ficar um pouco estranho chamar a poesia de “ai-cu”. De maneira análoga, existe um ditado que “cu que é cu, é somente em português”. Em alemão é vaca (“Kuh” – pronunciado “cu”), em francês é pescoço (“cou” – pronunciado “cu”) e em japonês é comer (ku – flexão do verbo comer em linguagem coloquial).

Todos os trabalhadores já haviam retornado às suas casas, preparando-se para jantar e descansar. Na casa dos Fujiwara só estavam as mulheres, pois o pai tinha sido hospitalizado na cidade, com suspeita de tuberculose. Assim, a esposa Mariko, ainda jovem e de traços bonitos, preparava a comida para as filhas Fujiko e Fumiko, moças de 18 e 16 anos respectivamente. Estando somente em mulheres, haviam combinado um plano de emergência para quaisquer circunstâncias, mesmo sob a tranquilidade que reinava na fazenda.

Um meliante, certamente advindo da cidade, espreitava já há tempo a rotina das casas para colocar seu plano de assalto em execução. Sabendo da ausência masculina na residência dos Fujiwara, pensou em agir naquela noite quente de verão. Antes do término do expediente, colocou-se à espreita ao redor da casa, aguardando a oportunidade certa para o seu intento. Deleitou-se com a visão do banho das mulheres, uma após a outra, pelas frestas da parede do banheiro que ficava anexo a casa. Foi um ensaio longo e excitante, preparativo para o ato contínuo que era adentrar a casa pouco tempo depois, para efetivação de seu intento lascivo e criminoso de estupro. Aguardou até que as mulheres terminassem a sua janta.

Sem se deixar anunciar, adentrou pela porta da frente que, como de costume, não estava trancada, pois travar janelas e portas até então era um expediente não praticado na fazenda. O susto foi grande e a surpresa tomou conta das mulheres, que foram acuadas para um dos cantos da sala.

– Fiquem quietas, se não vou cortar o pescoço de cada uma.

– Por favor, não nos machuquem. Pode levar o que quiser da casa, disse Mariko.

– Não estou aqui pra roubar nada. O que eu quero é te comer, mamãe gostosa.

– Não isso não, nunca conheci nenhum homem além do meu marido.

– Ah! Então vai experimentar hoje, japa gostosa! Eu nunca comi uma japa.

– Deixe a nossa mãe em paz, interveio Fujiko, a filha primogênita. Pode fazer comigo.

Essa estratégia fazia parte do plano de segurança combinado entre elas.

Ato contínuo, a moça dirigiu-se ao quarto e ficou apenas com a roupa de baixo e deitou-se na cama. O assaltante adentrou o quarto e foi despindo-se, sem se dar conta que as outras duas ficaram na sala, tamanho era o seu estado de excitação.

Já completamente nu, estava sobre a moça tentando desnudá-la para completar o ato, quando, inesperadamente adentra o quarto a mãe, que era toda adrenalina, portando uma tesoura na mão direita. Sem que o meliante pudesse perceber, golpeou a sua bunda exposta, enfiando por completo a tesoura no ânus do estuprador.

Entre gritos, sangue, choro e grunhidos de dor, os momentos seguintes foram eternos até que um dos vizinhos viesse ver o que estava acontecendo. Polícia, ambulância e repórteres eram os novos personagens daquela longa noite de verão. O meliante, após ser medicado, foi devidamente julgado e preso.

O sossego da fazenda foi quebrado naquela noite. Com o aprendizado, a questão de segurança individual, familiar e comunitária passou a ser observada com a devida atenção.

A consequência positiva do acontecimento foi a elevação do moral dos imigrantes perante a comunidade, não somente da fazenda, mas de toda a região, ultrapassando, quiçá, até os limites do estado e do país.

A partir de então, a dona Mariko transformou-se num ícone de coragem, bravura e determinação, sendo respeitada como a “japonesa da tesoura”.  

A fuga do cafezal

A rotina na fazenda foi, aos poucos, afetando os ânimos dos trabalhadores imigrantes, principalmente, os dos mais jovens. Os que se diferenciavam da característica introvertida dos nipônicos, buscavam na paquera, inocente ou atrevida, dar vazão aos seus sentimentos contidos pelo trabalho árduo e certa reclusão no sítio.

Assim, de forma natural e humana, os relacionamentos no âmbito da fazenda foram tornando-se mais comuns, a ponto de acontecer casamentos ou ajuntamento entre jovens, formando novas famílias de trabalhadores.

Os japoneses mais ortodoxos, xenofóbicos por origem, de terem vindo de um país insular, não se permitiam a qualquer tipo de miscigenação racial. Entre os mais liberais, os relacionamentos com outras etnias da fazenda aconteciam de forma espontânea e livre. A mistura da etnia japonesa com etnia branca mostrou-se atraente pela descendência de filhos com traços muito bonitos, cabelos crespos ou lisos, nariz aquilino e olhos amendoados. E assim, a comunidade da fazenda foi crescendo, enquanto a animosidade inicial da população foi diminuindo, mostrando ares de boa prosperidade. Certamente que esta naturalidade dos relacionamentos foi fundamental para a perfeita adaptação da etnia japonesa no Brasil. Desde meados do século 20, os descendentes daqueles imigrantes pioneiros estão perfeitamente integrados à sociedade, desenvolvendo atividades e ocupando posições de destaque.

Apenas para citar uns poucos nomes de descendentes de japoneses mais conhecidos no país, nos esportes, Hugo Hoyama, tenista e Paulo Nagamura, no futebol; na área da saúde, o médico e escritor Roberto Shinyashiki; nas artes plásticas, o pintor e roteirista Fernando Ikoma; no cinema e televisão, a cineasta Tizuka Yamasaki e as apresentadoras Daniele Suzuki e Sabrina Sato; na música, as cantoras e compositoras Fernanda Takai e Lisa Ono e na Engenharia Florestal, os professores com reconhecida experiência internacional Roberto Tuyoshi Hosokawa, Niro Higuchi e, por que não,  este que vos escreve.

Dentre os trabalhadores no cafezal, aqueles que imigraram já adultos e com formação em curso superior na terra natal, como advogados, professores, contabilistas, artistas, entre outras profissões, foram os primeiros a manifestarem o desejo de procurar outros meios de sobrevivência, assim que alcançassem uma base financeira para tal.

Outro grupo, que perfazia a maioria, manifestava o desejo de procurar novos horizontes de trabalho, que não o meramente braçal da fazenda. A procura por outras oportunidades de trabalho não era fácil, visto que no regime praticado pelas empresas cafeeiras, mesmo não sendo de cativeiro, a vigilância sobre o comportamento dos trabalhadores era bem severa.

Foi assim que aconteceram as inúmeras fugas noturnas da fazenda. Aqueles que não tinham parentes que se casaram ou amigaram, a saída era mais rápida, sem os atrapalhos de despedida. Via de regra, a família inteira compunha o grupo de fugitivos, agregado com outros aventureiros. Claro que estas fugas aconteciam já bem tarde da noite, quando a maioria da população fazendeira estava dormindo. Sorrateiramente e de forma ordenada, os grupos formavam-se no pomar do sítio, próximo ao terreiro de secagem do café.

Sempre havia alguém que tomava a liderança da fuga, escolhido dentre aqueles que se reuniam clandestinamente durante as semanas que antecediam a noite fugitiva. Naquelas reuniões de planejamento, eram apresentadas as alternativas de prováveis tipos de trabalho e respectivos locais, geralmente bem distantes da fazenda. As informações eram conseguidas durante as idas para compras na cidade, como também nas conversas confidenciais com outros trabalhadores mais experientes, da própria fazenda ou de outros contatos externos.

Como as fugas eram feitas a pé, somente o estritamente necessário perfazia a bagagem, geralmente emboladas dentro de um saco de algodão ou de aniagem. Naquela época ainda não existiam as atuais mochilas. Também não havia as malas com rodinhas e puxador. Quando necessário, os pertences eram acondicionados numa maleta pequena, fácil de carregar. Os sacos eram carregados sobre as costas ou amarrados numa ripa de madeira, geralmente cabo de enxada ou machado.

Figura 9.1: Ilustração que mostra uma família em êxodo rural.
Imagem obtida da internet, de autor desconhecido.

A família dos Inoue fazia parte desta última fuga planejada. O objetivo era mudar para uma outra fazenda, mais próxima de Presidente Prudente, no estado de São Paulo. Tratava-se de uma fazenda de produção de algodão, outro produto de vasto mercado na época. 

A cultura do algodão

Após a dramática aventura da fuga do cafezal, a família dos Inoue e outras quatro famílias de fugitivos chegaram aos arredores de Pirapozinho, município da região de Presidente Prudente. A região era um pouco mais árida do que a do cafezal, sendo mais propicia à cultura do algodão.

Esta cultura teve o seu auge entre meados do século 18 até o início do século 19, ainda impulsionada pelas mãos dos escravos para atender a um mercado crescente após a era industrial, tanto no Brasil como nos Estados Unidos da América. Juntamente com o café, o algodão esteve na pauta de exportação, como o segundo produto de maior importância. 

A situação na fazenda algodoeira, em termos administrativos e condições de trabalho, era semelhante à do cafezal. A atividade laboral diferenciava-se durante a colheita. A planta que produz o algodão pertence ao Gênero Gossipium, da família das Malváceas, portanto, parente do quiabo, do hibisco e do cacau. 

Figura 10.1: Algodoal, com frutos abertos e as fibras que envolvem as sementes expostas, prontas para a colheita.
Foto: Jim Black, by Pixabay

A maior dificuldade na colheita manual é a retirada do tufo de fibras dos frutos. As sépalas secas dos frutos é dura e espinhosa e, na pressa da colheita, a ponta dos dedos ficava muito ferida. Cada trabalhador tinha que cumprir uma determinada meta diária, seriamente controlada pelo capataz e seus ajudantes. A coleta das fibras e o ensacamento era feito simultaneamente, e o trabalhador carregava nas costas o saco de coleta. Como o algodão é muito leve, o serviço era suportável.

Figura 10.2: Imigrantes japoneses trabalhadores em fazenda algodoeira.
Imagens obtidas na internet, de autores desconhecidos.

Figura 10.3: Membros da família Tsubaki num algodoal. Ao centro, Riozo, o patriarca. As demais, são filhas.
Foto de álbum familiar.

A permanência dos Inoue na fazenda algodoeira foi relativamente longa, com o aumento gradativo da prole. A segunda filha, Hiroko e a terceira, Mitiko, nasceram naquela época. Foi o período determinado pela decisão de permanecer no Brasil, desistindo do plano inicial ilusório de retornar ao Japão após ficar rico. Os pais, Yoshiomi e Isso, mantiveram a dificuldade de falar o português, comunicando-se por monossílabos e gestos. Seguindo a tradição nipônica, todas as filhas eram obrigadas a frequentar a escola de Pirapozinho.

Com o passar dos anos, a adaptação aos costumes brasileiros consolidou-se, abrindo oportunidade para buscar novas frentes de trabalho, mais próximas da cidade grande que era Presidente Prudente, para onde decidiram se mudar, um pouco mais tarde.

A mudança para Presidente Prudente

O período de trabalho naquela primeira fazenda algodoeira durou três anos. Não obstante o trabalho fosse cansativo como em fazenda cafeeira, nesta o serviço era mais limpo. Havia uma sensação mais enobrecedora de que o labor fazia parte da vida cotidiana. Embora a maior parte da colheita tivesse como destino a exportação, a indústria de fibras e óleo era abastecida pela produção local e nacional. Assim, trabalhava-se com o alento de que um dia aquela tarefa traria benefícios para a própria vida, na forma de roupa e óleo de cozinha.

Foi um tempo em que se consolidou a ideia de que o retorno ao Japão era apenas um sonho ilusório e longínquo. Igualmente, a adaptação aos costumes da terra já era etapa vencida, restando aumentar o vocabulário do português para um diálogo mais profícuo na vida social. As filhas, que frequentavam a escola em Pirapozinho, contribuíram também à amenização daquele impasse. Aos poucos, a expectativa de trabalhar mais próximo à cidade grande foi tomando conta dos Inoue’s, até que decidiram se mudar para Presidente Prudente, na época, a cidade mais desenvolvida da região oeste do estado de São Paulo.

Era centro de desenvolvimento da cafeicultura, seguida pela cotonicultura. Com o tempo, desenvolveu-se como polo industrial e de desenvolvimento tecnológico. Conta com inúmeras universidades e instituições de pesquisa. O IHD médio é muito elevado, em torno de 0,845. Está entre as 25 cidades de melhor índice no Brasil. É conhecida como a “Capital do Oeste Paulista” e possui cerca de 210 mil habitantes. Clique aqui para saber mais.

Figura 11.1: Vista parcial de Presidente Prudente, da atualidade.
Foto: Secom – Sec. Esp. de Comunicação Social, Brasília, DF.

A família fixou residência nos arredores da antiga cidade, com pouco dos equipamentos urbanos modernos. A água tinha que ser obtida de poço escavado no quintal, geralmente entre 5 a 10 metros de profundidade. Em condições melhores, a área do poço era protegida por uma cobertura de telha e o orifício cercado por estrutura de tijolo e cimento, com tampa e sarilho construídos em madeira de lei maciça, geralmente de peroba ou angico. A água era retirada com um balde metálico, via de regra, uma lata de óleo de cozinha de 18 litros com alça improvisada de madeira, na qual era amarrada uma corrente metálica curta, um a dois metros de comprimento. O restante da distância entre o nível d’água até o sarilho era constituído por corda de sisal. A tarefa de puxar a água do poço era uma rotina frequente no dia a dia dos moradores de periferia urbana. Clique aqui para ler uma apologia mais poética sobre o assunto.

Figura 11.2: Poço de água potável, com proteção, sarilho e cobertura.
Foto: Mabel Amber por Pixabay. 

A origem do nome de família Inoue refere-se precisamente sobre o assunto em pauta. O nome é bastante comum no Japão, que poderia ser equivalente a um “Castro” ou “Gomes”. A palavra é composta por dois ideogramas: ino, que significa poço ou fonte d’água e ue, que tem o sentido de sobre ou acima. Então, o nome “Inoue” refere-se a “sobre o poço” ou “acima da fonte d’água”, ou seja, aproximadamente a composição de sarilho e cobertura da fonte d’água. Talvez o primeiro ancestral tivesse sido um perfurador de poço ou construtor da cobertura e sarilho. Ou fosse um que morava num local acima da mina d’água.

Muitos nomes de família têm origem na atividade principal ou de local de morada da pessoa que adotou primeiramente o nome. O nome “Tanaka” do japonês, talvez o equivalente ao “Silva” do brasileiro, é composto por dois ideogramas: ta, uma abreviação de tambo, que significa arrozal e naka, que significa dentro, interno, do meio. Então o nome “Tanaka” refere-se a originar-se ou estar no meio do arrozal. Provavelmente, a origem do nome é de alguém que morava numa área central de um grande arrozal. De forma análoga, o nome “Ueda” advém de alguém que morava acima do arrozal. Os descendentes de “Ikeda” devem ter tido ancestral primário que trabalhava ou possuía um arrozal de inundação.

E assim, por diante, encontramos nomes de diferentes nacionalidades que geralmente têm origem na atividade profissional. O nome de família “Schuhmacher”, vem do alemão que era sapateiro. Os ancestrais de “Becker” ou “Backer” eram padeiros. “Ferrari” advém de ferreiro e hoje lembra marca de carro desejado. Os descendentes de “Taylor” certamente tiveram alfaiates na família. Os franceses e belgas com nome “Dubois”, certamente descendem de alguém que morava ou trabalhava no interior da floresta.

Enfim, a lista é interminável.

Voltando a nossa história, os Inoue’s, agora urbanos, continuaram a trabalhar no interior, em fazendas. As meninas ficavam em casa, pois tinham que frequentar a escola. A filha primogênita Sumie, agora em idade adolescente, era responsável por cozinhar, limpar, cuidar da casa e das irmãs menores. Enquanto isso, os pais continuavam a labuta na roça. Naquela época, ainda era bem tranquilo e comum deixar menores cuidando da casa enquanto os pais iam para o trabalho.

Assim, convivendo entre o ambiente rural e o urbano, os Inoue’s foram acostumando-se ao movimento e aos costumes da cidade grande. Foi um período em que as amizades, ainda que restritas a um reduzido número, foram alicerçadas num círculo sadio e duradouro.

A vida urbana e o carma familiar

A adaptação dos Inoue’s no ambiente urbano foi progressiva e lenta. Com o tempo, cansada do labor na fazenda e preocupada com a criação das filhas, Isso, a matriarca da família, resolveu procurar serviço na cidade.

Com suas habilidades desenvolvidas desde a infância no Japão, não foi difícil encontrar um emprego como cozinheira num restaurante. A atividade como dona de casa e cozinheira profissional acompanhou a vida inteira desta mulher batalhadora, calada e submissa. Como uma japonesa típica, raras vezes demonstrava o que sentia por dentro. Até mesmo a expressão do amor e carinho pelas filhas era bastante tímida.

O pai Yoshiomi continuou sua labuta na fazenda, onde passava a maior parte do tempo. Uma ou duas vezes por mês pegava folga para se deslocar à cidade e matar a saudade do convívio familiar. Este expediente foi providencial, pois o pouco tempo que passava com a mulher e as filhas não lhe dava tempo para extravasar a sua índole de brabeza.

Nesse meio tempo, Sumie, a filha mais velha havia assumido compromisso com um rapaz imigrante, de outras épocas, da família Yoshimura. Logo após um rápido namoro, casou-se com Juniti e mudaram-se para a capital do estado, São Paulo. Levaram junto a segunda filha, Hiroko. Esta acabou fixando-se na capital, após ter encontrado um emprego, igualmente em restaurante.

Naquele tempo, os viciados em tabaco tinham que fumar “cigarro de palha”. O fumo era fabricado em formato de corda enrolada de uns 3 cm de diâmetro e vendido nas mercearias por peso, cortado em pequenos toletes de uns 15 cm de comprimento. Para a confecção do cigarro era usada a casca seca da espiga de milho, cortada no tamanho desejado, geralmente um quadrado de uns 7 cm. O fumo do tolete era picado com um canivete especial e enfileirado cuidadosamente ao longo do pedaço de palha. O fechamento do cigarro de palha era feito com saliva, após enrolar o fumo picado com os dedos polegar e indicador das duas mãos e passando indolentemente a língua sobre a parte livre. A montagem de um cigarro de palha é, até os dias de hoje, um ritual que imprime sensação de calma e sossego ao fumante, à guisa de um preparativo ao deleite do fumar. O cigarro era acendido usando um isqueiro de combustível à base de petróleo, a famosa “binga”.

Figura 12.1: Fumo de corda e o fabrico do cigarro de palha.
Imagens de Tabacolândia, Facebook, acesso em 06/10/2020.

Figura 12.2: Canivete pica-fumo. Nunca fumei, mas tenho até hoje.
Foto: M.T. Inoue, 2020.

Existe até um causo, em que o caipira estava na beira do rio, sentado indolentemente em sua banqueta e preparando seu cigarrinho de palha. Um amigo que passava pela estrada, gritou ao caipira:

– Ei cumpadre, me prepara um pra mim também.

– Ocê qué pica!

Na realidade, o caipira quis dizer “Se você quiser, pica”

Não sei se o Yoshiomi chegou a fumar cigarro de palha. Eu soube que naquela época surgiu o primeiro cigarro industrializado, embalado em caixa de papelão tipo flip-top.

Era a novidade do momento e o velho se acostumou a fumar o “Fulgor”, embalagem azul, quadrada, em formato flip-top.

Figura 12.3: Embalagem original do primeiro cigarro industrializado.
Imagem: Pinterest, RU

Foi nessa época que ocorreu uma vez mais a manifestação do carma de entrega de alguém para criação por outra família. Relembrando quando tudo começou no Japão, quando a família Tetsuoka, deixou sua filha Matsu em Nara aos cuidados da família Oka. De Matsu e Yasukichi nasceu Isso, que foi doada para criação pela família Inoue. Lá, conheceu Yoshiomi, de cuja união iniciou-se a geração da pequena família dos Inoue’s.

Agora, no Brasil, decidem doar a duas filhas menores, Mitiko e Toshiko, aos cuidados para criação por famílias de amigos. Pouco tempo após, a caçula Toshiko foi retornada à origem, devido a que Yoshiomi deixara de trabalhar na fazenda por problemas de saúde. A filha Mitiko continuou a morar com a família de amigos, que a criou até atingir a adolescência. Mais tarde, mudou-se com a família receptora para a capital do estado.

O nascimento de Mario

Depois de Yoshiomi ter deixado de trabalhar como agricultor, foi a duras penas que conseguiu manter a família na cidade. Com a esposa trabalhando em restaurante como cozinheira e uma filha menor em idade escolar, a renda familiar foi conseguida por meio de trabalhos temporários, os conhecidos “bicos”. O que havia aprendido trabalhando nas fazendas de café e algodão não fora o suficiente para arranjar um emprego fixo na cidade. Das habilidades de marcenaria e fabrico de sombrinhas japonesas que havia aprendido e treinado com seu pai e a sogra Matsu, conseguia renda temporária que proporcionava a manutenção de uma vida simples.

Entre um trabalho e outro, acabou fazendo amizade com uma família de imigrantes que compartilhava as mesmas dificuldades. Esse amigo aprendeu com afinco as técnicas de fabrico e conserto de sombrinhas e guarda-chuvas. Pouco tempo depois, mudou-se para o norte do estado do Paraná, fixando residência em Londrina. Nesta cidade, foi o pioneiro no ramo de artefatos de sombrinhas e similares, conseguindo estabelecer-se de maneira bem sucedida no comércio londrinense. 

Não passou muito depois que Yoshiomi se fixou na cidade, quando se constatou a gravidez de Isso, já com mais de 40 anos de idade. Apesar disso, a gestação foi tranquila, sem atropelos e mal estar.

Estamos em 1946. O mês é setembro. O dia é 8.

É o dia comemorado como “Dia da Padroeira” em muitas cidades do Brasil.

É a data em que nasceu Mario, o último filho da pequena família dos Inoue de Nara.  Talvez seu nome advém de Santa Maria, nome genérico das padroeiras e da mãe de Jesus. A chegada do rebento era como a concretização de um desejo de continuidade da linhagem, pois até então só havia nascido mulheres. Não se sabe se foi devido a isso, mas a vinda do menino foi festejada de acordo, principalmente pelo patriarca Yoshiomi. Deve ter jubilado em seus pensamentos, expressando um “até que enfim, um homem para continuar com o nome Inoue”.

Com a impossibilidade de uma nova gravidez de Isso e considerando a frágil saúde de Yoshiomi, acometido por esquistossomose, certamente contraída durante seu trabalho na roça, o rebento másculo era o xodó daquele pai.

 A esquistossomose, vulgarmente conhecida como “barriga-d’água”, é transmitida por um verme da família Schistosoma que se espalha na água por caramujos. Clique para ler mais sobre o assunto. 

Nascido sob o signo de Virgem, no ano do Cachorro, segundo o horóscopo chinês  e recebendo influência da educação de pais japoneses, o garoto cresceu num ambiente terno e apaziguado, paparicado por todos. Sendo o último da prole, aproveitou mamar até os seus cinco anos de idade. 

Figura 13.1: Mamando aos cinco anos de idade, escondia o rosto para não ser visto.
Ilustração: Aquarela sobre papel. M.T. Inoue, 2020.

Quando alguém visitava a família e o menino estava a mamar naqueles peitos já exauridos do leite materno, escondia-se envergonhado cobrindo o rosto com uma de suas mãozinhas, pois a outra estava a apertar a mama na tentativa de obter alguma gotinha láctea. Segundo os entendidos, o leite materno é essencial para um crescimento saudável de recém-nascido. Talvez por isso, o garoto deve ter acumulado moléculas de saúde, que o acompanharam por longo tempo de sua infância e adolescência.

A queda na escada e folguedos de infância

Naquela época, a seguridade social era algo desconhecido. Assim, seguindo preceitos consuetudinários, após o nascimento de um bebê, a mulher se resguardava por um longo período de 40 dias, conhecido como “dieta”. Era um período dedicado à sua recuperação e aos cuidados do recém-nascido.

Tendo passado o tempo da “dieta”, a mãe Isso retornou ao seu trabalho no restaurante. No início, levava o bebê Mario junto. Seus afazeres como ajudante de cozinha permitiam, até certo ponto, executar seu serviço com o bebê amarrado às costas. As interrupções para amamentação eram frequentes, o que não era muito bem visto pelo patrão. Mas com uma forte determinação e eficiência no serviço, ela sobrepujou qualquer indício de demissão.

Para amenizar possível descontentamento, de vez em quando deixava o menino em casa, sob os cuidados de Toshiko, sua filha que havia retornado da doação à outra família. Nessa época, a menina estava com a idade de sete anos e aprendera com afinco seus novos deveres de babá.

A criação de Mario foi impregnada por xodó e paparicos. Certamente, isso ocasionou o retardamento em algumas habilidades, em andar, por exemplo. Já estava com dois anos de idade e ainda somente engatinhava. O colo do pai, da irmã, além, é claro, da mãe, era a constante na vida do menino mimado.

A casa em que a pequena família morava tinha um terreno grande, com frutíferas diversas, entre as quais, um abacateiro bastante produtivo. Na época de frutificação, a venda de abacates para vizinhos e amigos ajudava no orçamento familiar. Isso acontecia igualmente para outras frutas do quintal. O terreno tinha um declive no sentido para os fundos, razão de a casa ser sustentada por pequenos pilares e uma escada que saia da porta da cozinha para o quintal.

Nessa época, o pai Yoshiomi passava o dia na cidade, às vezes, ajudando a esposa no restaurante. Seu “bico” principal era a venda de bilhetes de loteria, atividade conhecida antigamente como “cambista”. A operação incluía a transação do “jogo do bicho”.

Foi numa dessas tardes em que a Toshiko cuidava do irmão na ausência do pai. Por um descuido ou efeito do acaso, ao descer a escada da cozinha com o menino no colo, desequilibrou-se, rolando escada abaixo junto com o pequeno. Felizmente eram poucos os degraus e ambos não sofreram ferimentos maiores.

A mãe Isso retornara mais cedo naquele dia, pois preocupava-se com a amamentação do bebê. Qual não foi a surpresa ficar sabendo do ocorrido. O garoto apresentava um belo galo na cabeça. Como esconder o fato do pai brabo? A solução foi improvisar um pedaço de pano na cabeça à guisa de boné ou capuz. Tal providência evitou um desastre raivoso de Yoshiomi, que nunca ficou sabendo do ocorrido.

E assim, entre trancos e barrancos, o garoto foi crescendo mimado e paparicado até pelos vizinhos.

Dentre os vizinhos, havia uma família com um filho um ano mais velho que Mario, com o qual o nosso herói passava suas horas de folguedos junto. Com o Olímpio, aprendeu inúmeros modus brincandi, sempre no ambiente do lar ou no quintal.

Uma brincadeira que permaneceu indelével na mente do pequeno Mario foi a perfuração de poço, com sarilho e tudo o mais que caracteriza a obra mecânica. Já se evidenciava o carma do nome INOUE, como visto em algum capítulo anterior. A perfuração era feita com o auxílio de uma colher de sopa. Por brincarem à sombra da casa, o solo era relativamente fofo o suficiente que permitia a perfuração do “poço” de alguns centímetros. A corda do sarilho era providenciada com barbante e o “balde” era uma tampinha de garrafa. Na época não havia artefatos de plástico que existem na atualidade, com variados formatos e tamanhos. A água era fornecida da cisterna da casa, um barril de madeira, talvez de vinho ou outra bebida, que por sua vez, era abastecida pelo poço verdadeiro, que ficava nos fundos, próximo ao abacateiro. Essa brincadeira não era muito do agrado de sua irmã Toshiko, que era responsável por lhe dar o banho e também lavar a roupa da família, o que incluía a vestimenta embarreada pela brincadeira do “furar um poço”.

Outro lance inesquecível e pitoresco foi a época em que conheceu e começou a brincar com uma menina vizinha da casa do outro lado da rua. Talvez a Madalena tenha sido o primeiro amor do pequeno Mario de três anos de idade. A lembrança remete aos folguedos de quintal na frente da casa dela, onde havia um espaço bem cuidado. Dentre a diversas flores que adornavam o jardim, havia uma coleção de cosmos multicolorida. O cosmos pertence ao gênero Cosmos, da família Asteraceae.

Ambos brincavam de colecionar as flores em forma de ramalhete. Porém, com as mãozinhas delicadas não lhes era fácil arrebentar os pedúnculos fibrosos do cosmos.

Figura 14.1: A pequena Madalena e o Mario brincando no jardim de cosmos.
Composição fotográfica: M.T. Inoue, 2020.

Ato contínuo, a pequena Madalena vai à casa e volta com uma tesoura de costura. Daí em diante foi um avanço devastador à bela coleção de flores. A continuidade e desfecho dolorido da epopeia “cosmopolitana” das duas inocentes crianças fica por conta da imaginação do leitor.

Naqueles tempos, palmadas, puxão de orelha, genkotsu (em japonês, soquinho dado na cabeça com a mão fechada, destacando o dedo médio), colherada ou outro objeto que estivesse a mão no momento, eram expedientes corriqueiros na educação dos filhos e crianças. Quantas reguadas e puxões de orelha levou o nosso protagonista Mario durante seu tempo de ensino fundamental (na época, primário em grupo escolar). Mas tudo isso será objeto de leitura para futuras crônicas.     

Outras memórias urbanas

A vida na cidade tornara-se rotina.

O pai Yoshiomi passava o dia perambulando pelo centro, onde a atividade de cambista era mais movimentada. O sistema de loterias como existe atualmente, à época era bastante acanhado, restringindo-se a poucos revendedores. A distribuição de prêmios por sorteio é  praticada desde a antiguidade, uns três milênios antes da era cristã. No Brasil, tem data marcada e foi regulamentada oficialmente por D. Pedro II em 27 de abril de 1844. Desde o início da República, parte da arrecadação da loteria foi incorporada como receita ao orçamento da União. Atualmente, a cada vez que se necessita de arrecadação adicional, inventa-se uma nova modalidade de loteria, proliferando lojas lotéricas em cada esquina.

Mas, o maior volume de apostas, sempre foi o sistema ilegal conhecido como “jogo do bicho”, inventado pelo Barão João Batista Drummond, dono do Zoológico de Vila Isabel, que se inspirou numa visita feita ao mostruário, localizado no Rio de Janeiro, em 1892, apenas 3 anos após a proclamação da República. O sistema sobrevive até hoje, em meio a uma forte concorrência oficial de loterias. Parodiando autores alemães, a loteria é verdadeiramente um “ópio do povo”, que traz um falso alento de se tornar milionário do dia pra noite, mesmo tendo que sacrificar o leite das crianças.

Inspirado no trabalho do pai, as filhas eram viciadas em tentar adivinhar qual seria o bicho a ser sorteado no dia. Um dos passatempos era colocar um pouco de café numa xícara e apagar um palito de fósforo no líquido. O efeito do choque térmico na bebida formava uma espécie de nuvem volátil que se movia na superfície do líquido, mudando o seu formato até se esmaecer por completo. Ainda na fase visível, por vezes, formava uma figura, que a imaginação do expectador projetava como sendo a de um animal do jogo do bicho, dentre os 25, que vai desde o avestruz até a vaca. É daí que surgiu a denominação quando algo que não deu certo como “deu a zebra”, pois este animal, que seria o último da lista, não faz parte dela.

Não com o propósito de ajudar no orçamento da casa, talvez mais como um passatempo útil, a mãe Isso costumava, nas horas vagas dos finais de semana, relembrar ensinamentos e experiência obtidos ainda em terras japonesas. A confecção de sombrinha já foi comentada em algum capítulo anterior. Outro tipo de artesanato ou trabalho manual, era a confecção de chinelo ou sandália japonesa.

O calçado no formato de chinelo tem sua origem há mais de quatro milênios A.C., sendo encontrado vestígios desde a civilização egípcia. Dentre os vários materiais utilizados, na antiga China e Japão, a palha de arroz foi largamente usada. No Japão, com a denominação de zoori (chinelo, em seu formato) e waraji (sandália, em seu formato, originalmente usados pelos pobres), foram a predominância de calçado, que deve ter surgido por volta dos anos 800, na Era Heian.

O chinelo moderno foi baseado no zoori que os soldados americanos traziam em sua bagagem, após a segunda guerra mundial. O mesmo vale dizer para as famosas “havaianas” brasileiras.

Figura 15.1: Modelos artesanais de zoori, confeccionados com diferentes materiais.
Foto: ElleP, by Pixabay.

Sendo difícil a obtenção de palha de arroz, Isso experimentou, com sucesso, usar as folhas de uma planta de alagados conhecida como taboa (Typha domingensis, família Typhaceae), onde proliferam as libélulas conhecidas como lava-bunda, inseto predador pertencente à ordem Odonata, com mais de 6.000 espécies em todo o mundo.

Figura 15.2: Taboal, com imagem de libélula em destaque.
Foto: composição de imagens do Pixabay, por M.T. Inoue, 2020.

A confecção manual do zoori por Isso era uma tarefa que exigia força e habilidade. Inicialmente, após colher as folhas de um alagado próximo da casa, o feixe tinha que secar ao ar livre, até o ponto que a lâmina foliar podia ser amassada ou prensada, sem perder sua resistência e elasticidade. A segunda fase do trabalho era tecer as folhas em formato de tranças estreitas, usando o dedão do pé como apoio e puxando e tecendo as tranças em posição sentada no chão. A terceira fase da arte, era a confecção propriamente dita do chinelo, usando as tranças como matéria prima tanto para a base como para as tiras de apoio que ficam entre o dedão e o indicador do pé.

Não se pode dizer que o resultado do trabalho fosse algo com acabamento “profissional”. Mas, provia a família com calçado e ainda era vendido para a vizinhança, pois naqueles tempos não existia oferta de chinelos a cada esquina.

A despedida de Presidente Prudente

Os efeitos do contágio por esquistossomose tornaram-se mais visíveis e dolorosos para o patriarca Yoshiomi.

A saída para vender loteria na cidade foi ficando cada vez menos frequente, preocupando familiares e amigos. O futuro comerciante de guarda-chuvas era o seu companheiro de todas as horas, entremeando a transferência da tecnologia com os prolongados diálogos relembrando os tempos idos e também jogando a conversa fora. Via de regra, o bate-papo girava em torno do jogo do bicho, assunto comum em todas as famílias, em qualquer lugar e hora.

Com o avanço da doença, já na fase crônica, Yoshiomi apresentava os sintomas de fígado avolumado, com inchamento da barriga. Daí, o nome comum dado à doença como “barriga d’água”. Maiores informações podem ser vistas nesse acesso.

Passava agora a maior parte do tempo acamado. Pelo menos uma vez por semana, submetia-se à punção do ventre, de onde vertia alguns litros de líquido límpido. Em função disso, a ingestão de água tinha que ser severamente controlada.

Foi no inverno de 1949.

Depois de almoçar, Yoshiomi disse que gostaria de descansar um pouco. Mais tarde, quando a esposa Isso foi verificar, já o encontrou sem vida. Ele que sofrera bastante nos seus últimos meses, implorando para beber água, parece que deixou o mundo físico num estado de tranquilidade.

O velório foi realizado na residência da família. Para o pequeno Mario, era um acontecimento inédito, com a reunião de inúmeras pessoas dentro da pequena casa. Em sua inocência, pergunta à mãe.

     – Mamãe, o que está acontecendo, com tanta gente aqui?

     – É que teu pai vai sair para uma viagem longe, e pode não voltar mais.

Foi uma explicação simples para um momento difícil e constrangedor, que foi satisfatória para o menino.

O corpo foi enterrado no cemitério público de Presidente Prudente. Diariamente, Isso visitava o túmulo para oferecer água aquele que padeceu de sede em seus últimos momentos de vida.

Passados alguns meses do acontecimento, houve o convite por parte da filha mais velha Sumie, para a família enlutada se mudar à cidade de Londrina, onde havia fixado residência, após perder seu primogênito ainda bebê, em São Paulo.

Os preparativos para a mudança foram rápidos, pois não era necessário realizar uma mudança de residência em seu sentido amplo. Apenas os pertences pessoais e vestimenta perfazia a bagagem da mudança. Seriam três pessoas, entre a mãe Isso, a filha caçula Toshiko e o Mario, agora com três anos de idade. A filha Mitiko, ainda solteira, ficara como adoção pela família de sua madrinha, em Presidente Prudente. Esta família era bem conhecida na cidade, onde administrava um frigorífico de carnes.

Com a perspectiva de não retornar à cidade onde ficou enterrado o marido, Isso garantiu uma lembrança que poderia levar para a nova morada. Não se fez de rogada e pirateou a cruz da cabeceira do túmulo, que continha a identificação do falecido e incluiu como parte importante da bagagem. A ideia era plantar o crucifixo no quintal em Londrina.

A oportunidade de mudança de ares, novo emprego e novas amizades ainda na fase de luto, propiciaram alento de ânimo e esperança para a nova pequena família Inoue, de apenas três pessoas.

Assim foi a despedida da cidade natal de Mario.

O volume "De Nara ao Brasil: ida sem volta" está concluído.

O volume 4 de "Crônicas Memoráveis" começará a ser escrito desde já. Levará o título "Crônicas Londrinenses", prevendo-se a parceria com escritores colaboradores a serem convidados.

O início de publicação de "Crônicas Londrinenses" está previsto para o mês de março de 2021, sem previsão da quantidade de capítulos.

Aproveitando o ensejo, desejo Boas Festas de final de ano, augurando a todos os leitores e amigos a concretização de seus objetivos em 2021.