Crônicas Londrinenses

Coletânea de crônicas e contos curtos sobre a cidade, seu povo e sua vida cotidiana.

Conteúdo

INTRODUÇÃO

Este volume abrangerá o período após a chegada em Londrina da nova pequena família Inoue, que se mudou de Presidente Prudente logo depois da morte do patriarca Yoshiomi.

Será uma coletânea de textos na forma de crônicas e contos curtos, não havendo uma previsão definida de capítulos.

Haverá a contribuição de escritores convidados, o que poderá acarretar uma pluralidade de temas e estilos de escrita.

Os textos serão assinados, e os autores assumirão a responsabilidade sobre o seu conteúdo.

A linha de tempo a ser discorrida por mim vai desde a infância, passando pela educação primária, secundária e média, equivalente aos atuais ensinos fundamental e médio, até a saída de Londrina para o estudo universitário em Curitiba. Sendo criado como um filho pelo cunhado, as situações serão descritas considerando a região da cidade onde a família residiu, permitindo ao leitor imaginar mais facilmente as circunstâncias de tempo e espaço.

As crônicas serão baseadas ou inspiradas em fatos e experiências vividas ou ouvidas, acrescidas de informações oriundas de pesquisa e do imaginário, visando ao enriquecimento textual e atrativo literário e cultural da escrita.

Existirão narrativas, nas quais os personagens são fictícios, assim como as circunstâncias ambientais onde os fatos centrais dos episódios aconteceram. Assim, todos os conteúdos são ficcionais e quaisquer semelhança com pessoas, instituições, lugares e ambientes são meramente coincidências do acaso.

Espera-se que o leitor encontre, em meio ao entretenimento da leitura, situações que o levarão à um túnel do tempo rico em sensações lúdicas, dramáticas, românticas, etc. Se não, certamente servirá para enriquecer o seu arcabouço cultural e histórico.

Agradecimentos antecipados são dedicados aos escritores convidados que vierem a contribuir com suas valiosas escritas.

Mario Takao Inoue
Editor e Autor

A chegada em Londrina ou Duas mães lactantes

Pouco tempo após o falecimento do meu pai Yoshiomi, a família foi convidada a se mudar para Londrina. A nova pequena família Inoue era composta pela minha mãe, Isso, a filha mais nova, Toshiko e eu, filho caçula e derradeiro. A filha Mitiko permaneceu em Presidente Prudente, em adoção pela sua madrinha. A primogênita Sumie, casada, morava em São Paulo, que abrigou por um tempo a irmã mais nova, Hiroko. Esta, encontrou um emprego em restaurante e fixou residência própria.

Entrementes, Sumie havia engravidado e teve seu filho primogênito por um curto lapso de tempo, vindo a perde-lo acometido por doença infantil.

Em seguida, ela e o marido Juniti resolvem mudar-se para Londrina, fixando residência à Rua São Salvador.

Figura 1.1: Primeira foto em Londrina, no ano 1950. A mesma esquina, em 2013.
Rua São Salvador com Rua São Vicente.
Fotos: Foto de álbum familiar, 1950; M.T. Inoue, 2013.

Figura 1.2: Destaque da foto da Figura 1.1, com Tereza Fumie, Amélia Toshiko e Mario Takao.
Foto: Álbum familiar, 1950.

O marido, havia imigrado solteiro, juntamente com os pais, um irmão e uma irmã caçula. Na época da presente narrativa, seu irmão já estava casado e mantinha uma propriedade rural na cidade de Rolândia. A irmã, igualmente casada, havia constituído uma família de quatro filhos em Londrina.

Embora imigrado de longa data e sendo ativo na sociedade, Juniti sempre teve dificuldade para se expressar em português. Nunca se soube exatamente o tipo de trabalho que ele exercia. Estava sempre envolvido com pessoas proeminentes da sociedade paulista, característica que trouxe com a mudança para Londrina. O que se sabe, é que fazia “negócios”, intermediando imigrantes e outras pessoas da sociedade, geralmente envolvendo o comércio. Nesta tarefa, soube muito bem gerenciar o contato entre clientes e profissionais liberais como advogados, entre outros.

Como a demanda dos “negócios” era grande, podia manter uma vida familiar bastante confortável. Não obstante a característica oportunista de seu trabalho, com variados tipos de transações de compra e venda, nunca soube investir em propriedade, morando sempre em casa alugada.

Com a integração dos Inoue’s, agora a família ficou constituída por Juniti, Sumie, que já tinha dado à luz a sua filha primogênita, Tereza Fumie, a mãe Isso, a irmã Toshiko e eu, adentrando o meu quarto ano de idade.

Como eu ainda mamava, eram duas mães a amamentar seus filhos.

Minha juventude na jovem Londrina

Javina Kawabata
Costureira e Dona de Casa

Morávamos em Sertanópolis.

Meu pai trouxe-me para trabalhar em Londrina. Isso foi no final de 1955, quando eu tinha 16 anos de idade. A cidade também era jovem, com apenas 21 anos. Apesar disso, já era destaque na economia nacional.

Que coisa diferente de Sertanópolis! Ruas calçadas com paralelepípedo, nunca tinha visto nada igual. Havia muitos vendedores e caminhões que iam buscar mercadorias em São Paulo, Santos, Paranaguá e Curitiba, pois as frutas eram transportadas por navio. O movimento era muito grande.

A firma em que fui trabalhar era uma central de distribuição de frutas e verduras. Comecei como caixa. Com o tempo passei a ser secretária, telefonista, controladora de vendedores e do estoque de frutas importadas, que ficavam armazenadas na câmara frigorífica. As maçãs e peras vinham da Argentina, as uvas da Espanha. No verão, até era bom adentrar a câmara frigorífica, mas no inverno não era agradável.

No início, eu estranhei muito a falta da família, mas como morava na casa dos patrões e a casa era junto da firma, gozava de algumas regalias. Eu trabalhava sem horário fixo.  Trabalhava bastante, mas tinha bons momentos e conheci pessoas interessantes. A patroa era atenciosa e matriculou-me numa escola de corte e costura, onde fiquei estudando por 3 meses, à noite. Este treinamento marcou minha futura e longa trajetória como costureira.

Até então, eu desconhecia o que era jantar em restaurante. Aos domingos, íamos jantar no Restaurante Matsuo, se não o único, o mais conhecido e central. Após o jantar, deixávamos os quatro filhos na casa e íamos ao Cine Ouro Verde, que era um luxo na época. Nas manhãs de domingo, havia a matinada. Então, eu levava os filhos do patrão e mais minhas duas irmãs menores, que já haviam mudado para Londrina. Eu dizia ser funcionária de creche, pois era sozinha para cuidar de seis crianças! Só que nesse tempo não tinha muitos carros na rua, era bem mais tranquilo!

Depois que meus pais se mudaram para Londrina muita coisa mudou.

Dentre as coisas que me trazem boas lembranças, uma delas era assistir aos muitos filmes japoneses no Cine Municipal. Como era muito bom!

A inauguração do aeroporto foi muito bonita. Muita gente vinha de longe para conhecer. O acesso era feito pela recém-inaugurada Avenida Santos Dumont, no luxuoso bairro Jardim Santos Dumont. Pouca gente se lembra que o aeroporto de Londrina já foi o segundo maior do Brasil, em movimento, na áurea época da cafeicultura. A cidade até recebeu a alcunha de “Capital Mundial do Café”. A denominação e símbolo do Cine Ouro Verde foram inspirados também na cor das folhas e dos frutos do cafeeiro.

Figura 1: Aeroporto de Londrina, na década de 1960.
Foto: M.T. Inoue, 1966.

Depois de ser criado, o Lago Igapó foi um lugar muito aprazível e frequentado.  Íamos pescar tilápias e depois de um tempo, pescávamos muitas traíras. Como era gostoso, tanto pescar como degustar. Meu pai gostava muito de peixe e nas segundas-feiras, ele passava em casa para comer, pois sabia que no domingo tínhamos ido pescar. Era muito bom!

Figura 2: Vista parcial do Lago Igapó, na década de 1970.
Foto: M.T. Inoue, 1970.

À época, morávamos num sobrado localizado na Vila Higienópolis. Não havia energia elétrica e não tínhamos fogão a gás. Quando chovia, a lenha molhava e não se conseguia acender o fogo. Foi um tempo de muito sacrifício e sofrimento. Quando papai ficou ruim das finanças, tivemos que nos mudar. Construíram uma cobertura nos fundos da quitanda onde papai e mamãe trabalhavam e para lá nos mudamos, para livrarmos o aluguel. Foi nessa circunstância, que voltei a trabalhar para ajudar pagar as dívidas.

Foi muito bom vir para Londrina. Já faz 65 anos, aprendi muito, trabalhei bastante. Até hoje, gosto de usar meu tempo para algo útil. Tenho dois filhos e dois netos, tudo o que me preenche a vida. Sou viúva há 25 anos e me sinto tranquila.

Londrina, você me deu muitas coisas boas, muita experiência. Lembranças boas que ficam guardadas para sempre. Agradeço muito por tudo que me ofereceu e fui muito bem recebida por você. Continue hospitaleira como sempre foi.

Obrigada Londrina!

Sarudinha ou O peixeiro ambulante

Adentrando o segundo ano de pandemia provocado pelo Corona Vírus Covid-19 em nível mundial, uma figura nostálgica retorna à lembrança: a do vendedor ambulante.

Felizmente, as tecnologias e a imaginação colaboram para assegurar um confinamento menos traumático. As compras pela internet e as encomendas de alimentos e outros itens entregues em domicílio avançaram significativamente, propiciando mais conforto para os que praticam o confinamento.

É como se a população de vendedores ambulantes tivesse se proliferada inimaginavelmente.

Na época descrita nesta crônica, as famílias ficavam tranquilas em casa, aguardando a passagem do padeiro, do leiteiro, do vendedor de frutas e legumes, do mascate, do amolador de facas, do entregador de jornais, do entregador de marmitas, do doceiro, do sorveteiro, enfim, quase todo o necessário num lar era vendido de porta em porta.

Aqui é que entre a figura protagonista deste capítulo: o vendedor de peixe.

Um amigo de infância, a mais longa amizade até o momento, chamava-se também Mário, da família Miyake.

Morava também à Rua Pernambuco, a pouco metros distanciado da nossa casa.   

Figura 1: Localização de onde ficavam os itens citados no texto.
Imagem obtida do Google Maps e editada para esta ilustração.

Eu frequentava assiduamente a casa do amigo, por se localizar nas proximidades e devido as inúmeras possibilidades de folguedos juntos. Na parte do fundo do quintal havia um tanque com peixes ornamentais, principalmente carpas coloridas. Talvez o tanque não fosse tão grande, mas a lembrança dimensional é que se tratava de uma enorme piscina, muito funda. Todo o entorno do tanque estava repleto de vegetais diversos, entre arbustos e um caramanchão de glicínia de flores lilás. Tudo isso propiciava sombreamento intenso ao viveiro de peixes, tornando a imagem da água bastante escura. Só era possível enxergar os peixes quando eles vinham à tona para absorver oxigênio.

O Sr. Miyake era um homem de estatura média, meio calvo, de feições agradáveis e estava sempre com um sorriso. A sua rotina de trabalho era feita com bicicleta, primeiramente indo ao mercado fornecedor para abastecer a caixa com peixes e gelo. Depois, percorria longos trechos vendendo os peixes. Na época, a sardinha era a mais consumida, se não a única.

Desde sempre, a sardinha teve como destino principal a indústria de conservas. No mundo inteiro são consumidas as famosas sardinhas enlatadas, preparadas em óleo, sem a cabeça.

Outra iguaria, também industrial, são as sardinhas salgadas e secas, inteiras e vendidas em latas maiores. Estas sardinhas são consumidas grelhadas em carvão ou lenha, dispondo o peixe em grelhas especiais. Tenho boas lembranças de minha mãe, que adorava grelhar as sardinhas secas num pequeno vasilhame com carvão.

Tanto a oferta como o consumo de sardinha in natura diminuíram bastante. O inconveniente sempre foi a presença de muitos espinhos finos e soltos, perigosos quando se travam na garganta.

A figura do Sr. Miyake em Londrina é antológica.

Dirigindo a sua bicicleta com a caixa de peixe na garupa, ia e vinha distribuindo sua mercadoria, anunciando em voz abaritonada:

            – Sarudinha!

            – Sarudinha!

Devido a origem nipônica, assim era sua pronúncia para sardinha.

          

As pescarias no Lago Igapó

Sou nascida em Londrina no ano de 1959. Gosto por demais da cidade, não conseguindo me ver morando em outro lugar. Tive a experiência de residir em outro país, mas aqui é o meu lugar.

Na minha infância, uma das lembranças é a de ir pescar com meu pai no Lago Igapó. Naquele tempo, morávamos na Vila Casoni, mais especificamente na Rua Tupiniquins. Costumávamos ir de ônibus e não se podia carregar vara de pescar comum dentro do coletivo. Assim, meu pai tinha o capricho de fazer as devidas adaptações nas varas. Ele mesmo dava o seu jeitinho de as deixar mais curtas, improvisando os encaixes. Hoje em dia, existem os mais variados tipos de varas, telescópicas, com molinetes e tudo o mais, mas antigamente era tudo mais precário.

Lembro-me que descíamos do ônibus no ponto da Rua Senador Souza Naves esquina com a Avenida Bandeirantes e andávamos o restante do caminho. A ida era só descida até a beira do lago. O difícil era o retorno, subindo a serra e carregados de peixe! Ficávamos pescando até bem tarde, quando já anoitecia, pois o pai gostava de pescar o peixe conhecido como traíra, que aparecia mais ao anoitecer. É um peixe de carne muito saborosa, embora tenha algum espinho. Ao retirá-lo do anzol, é preciso ter muito cuidado, pois é feroz, com dentes muito afiados.

Além das varas, ele sempre tinha em mãos o sondal, que é uma linha preparada com anzol e chumbada enrolada em uma lata. Lembro-me que uma vez, ao recolher o sondal, para nossa surpresa, o apetrecho havia fisgado uma traíra de bom tamanho.

Eram momentos relaxantes. Eu era uma criança com sete, oito, nove anos e não tinha o estresse de um adulto. Lembro-me que não tinha preguiça de caminhar. Para mim era um passeio, e sempre ficava quietinha vendo o meu pai pescar. Eu também gostava de pescar, mas no começo não colocava a minhoca no anzol, pois tinha medo. E quando pegava algum peixe, não sabia como tirá-lo do anzol. Mas, com o passar do tempo, aprendi a colocar a minhoca sem nojo e tirar o peixe fisgado do anzol.

Figura 1: Mapa de localização de parte do Lago Igapó, que mostra o caminho da pescaria.
                 Imagem adaptada do Google Maps, 2021.

Naquele tempo, a população de peixe no Lago Igapó era bem maior, e podia-se consumir sem medo. Agora, já não há mais peixes como antes, sendo aconselhável não os consumir.

Atualmente, o lago está bem cuidado nas suas margens, mas se encontra bastante assoreado. Já foi esvaziado por diversas vezes para uma limpeza mais detalhada.

Figura 2: Vista parcial do Lago Igapó, em Londrina.
                 Foto: Mirian Santos, por Pixabay.

O Lago Igapó é um dos mais belos ícones de Londrina. Fotógrafos profissionais ou não, tiram fotos maravilhosas do lago, postando-as nos meios digitais, divulgando amplamente a beleza do lago.

Histórias e desafios na cidade de Londrina

Norma Tsubaque Fukushigue
Dona de casa

Primeira parte: Os antecedentes e os desafios da chegada em Londrina

Sabem, aquela ótima sensação, sonhos e ideias de estar se mudando para uma cidade maior e movimentada? Foi o que sentimos, eu e todos da família nessa época. Isto aconteceu no final da década de 1950. Londrina estava em expansão. Houve até aquela euforia de estar vindo assistir filmes, pois já havia o famoso Cine Ouro Verde.

Voltando lá no ano de 1955, em Sertanópolis, nós sete (eu Norma, meu pai Riozo, minha mãe Yoshiko e meus irmãos Javina, Nice, Neusa e Jorge), viemos de “mala e cuia” para Londrina. Fomos morar na rua Pará, num pequeno sobrado. Logo ali perto, meu pai iniciou dirigindo um pequeno bar, o qual não durou muito tempo, talvez por falta de experiência no ramo.

Contando um pouco mais sobre Sertanópolis, era séria a falta de hortaliças, pois não havia agrônomos e pessoas preparadas e interessadas. Era preciso trabalhar muito nesse ramo. Nada como a nossa atualidade, pegar um celular, telefone e fazer pedidos. Era outra época, daí veja como era complicado.

A cada 15 dias, eu e Lauro trocávamos uma cartinha, e nesse intervalo, fazíamos uma ligação telefônica. Quer saber como? Havia na cidade uma central telefônica e quando chegava um telefonema, a moça que ali trabalhava vinha até a quitanda e me avisava. Eu saia até lá e atendia. Que bom que era! Assim foi o nosso namoro por uns 5 meses.

Houve uma vez, na época do Carnaval, que ele teria folga nos dias e me convidou para ir até Londrina e passearmos. Aceitei que iria, mas acabei ficando em Ibiporã, onde morava minha irmã Maria. Ele ficou muito zangado, mas tudo voltou ao normal. 

Assim, conseguimos chegar ao noivado, pois todos estavam em comum acordo. Meu pai não estava indo bem com o bar, era um bairro residencial e o pessoal ali procurava mais as feiras e o centro da cidade. O aluguel era muito caro, difícil para quem veio de lugares pequenos e em más condições financeiras.

Tão logo, nós mudamos num predinho perto da avenida Higienópolis, onde ocupamos o térreo e o primeiro andar. Na época, ali perto funcionava o Colégio José de Anchieta. Lugar de fácil locomoção, pois havia ponto de ônibus a duas quadras dali. As ruas não eram pavimentadas na época. Me recordo com ironia, na situação de estar noiva, e ele, o Lauro, meu noivo, chegando para nos visitar com os pés e a calça toda enlameada em dias chuvosos.

Já estávamos nos preparando para o casamento. Com tanta coisa a fazer, a dificuldade é que não havia luz elétrica e usávamos lamparinas e velas.

Ao preparar o enxoval, aconteceu que eu teria que ir até Bela Vista do Paraíso experimentar umas roupas que minha irmã Iracema me presenteou. Mas no trajeto, eu e o pessoal do ônibus tivemos a má sorte de topar com uma chuva muito forte que foi horrível. Isto foi na volta para Londrina. Esse ônibus, o único do dia, encalhou no barro e não conseguiu continuar a viagem. Era horrível a escuridão da noite, pois só consegui chegar de madrugada. A surpresa? Não havia táxi e nem Uber, como hoje em dia, para sair da rodoviária para casa. O que era pior na época, era mal vista uma moça tomar ou alugar uma charrete. Pois foi o que eu fiz. Mas enfim, cheguei inteira e feliz.

Bem, vou expor aqui algumas condições que foram realidade. Onde morávamos não existia tudo que se precisasse como: farmácias, costureiras, armarinhos, mercados e feiras. Tudo era bem longe, mas se dava um jeitinho. Esse lugar se chamava Vila Higienópolis. Com o casamento marcado, escolhemos como padrinhos os patrões do Lauro. A esposa do patrão, a senhora Massaki, estava muito pronta para tudo, estava sempre comigo e em todo lugar, procurando o melhor nas compras. Naquela década, ela era a única mulher a dirigir um carro na cidade. Enfim, como programado, o dia do casamento chegou.

Histórias e desafios na cidade de Londrina

Norma Tsubaque Fukushigue
Dona de casa

Segunda parte: O casamento e a chegada dos filhos

Casamos no dia 25 de maio de 1956, e foi bem como diz o ditado, “se chover a sorte deve acompanhar o casal”. E assim foi, choveu demais.

Nossa lua de mel foi em São Paulo. Foi maravilhosa, pois não conhecíamos o mar. Na ida, viajamos de ônibus até Marília e de lá, de trem.  Lembram-se daquele trem antigo, chamado de Maria Fumaça? Era muito romântico e fomos em classe de primeira, como se dizia naquele tempo. Tinha uma mesinha, um vaso de flores naturais e bancos confortáveis e novos. Na cidade, bons hotéis, degustando diferentes comidas como, por exemplo, a lagosta. Enfim, um bom marido, pois a referência dele veio por meio de meu pai e da minha irmã Javina, que já o conheciam por ocasião da quitanda em Sertanópolis. O Lauro era tido como uma pessoa honesta, íntegra e prestativa.

No retorno, queríamos viajar de avião. Mas com o tempo chuvoso durante toda aquela semana que antecedeu o casamento, não deu outra. No aeroporto em São Paulo, subimos no avião, acomodamo-nos, mas o avião deu uma volta, foi ao alto e novamente voltou ao chão. Foi desconfortável a cena. Não deu para decolar pois o tempo estava ruim em todo o trecho até Londrina. Enfim, voltamos de ônibus. Mas somando tudo, foi muito gratificante. Fui a única entre as irmãs que teve essa regalia ou oportunidade de realizar.

Após casados, fomos morar na Vila Casoni, na rua Tupiniquins e junto estavam os meus sogros, alguns cunhados casados e outros solteiros e sobrinhos. No total éramos em 13 pessoas naquela casa!

O Lauro trabalhava como vendedor de frutas e verduras na cidade, num estabelecimento localizado na rua Brasil. Era uma grande distribuidora com câmaras frigoríficas. Em pouco tempo adquiriu experiência no ramo de vendedor. A espera do primeiro filho foi um fato relevante. Para nós foi muito chocante, porque com tamanha esperança de nos tornarmos pais, aconteceu o inesperado. A nossa casa era agregada a uma quitanda, que na época era dirigida pelo meu cunhado João e pela minha sogra. Aconteceu que, por descuido de alguém, deixou-se cair uma pequena vagem fresca, ali onde era passagem de todos e, infelizmente fui eu a vítima. Levei um escorregão. Eu estava com dois meses de gestação. Foi pouca sorte minha. Fui hospitalizada e, apesar de todos os cuidados, acabei perdendo o bebê. Seríamos pais após um ano de casamento. Infelizmente isso não aconteceu.

Mais tarde, veio a ideia de deixar aquele emprego e abrir uma firma por conta própria. Nesse tempo, não éramos pais ainda. Então, fomos trabalhar juntos, abrindo uma quitanda e mercearia com o nome LINENSE, localizada na esquina da rua Professor João Cândido com a rua Espírito Santo. Apesar do trabalho árduo, foi uma decisão acertada e bem sucedida. Em curto tempo, conseguimos empregar dois funcionários.

Após dois anos, nasceu a Lúcia, sem problemas no parto, assistido por minha sogra e minha mãe. Felizmente, tudo normal, apesar de ser uma criança frágil. Teve vários problemas de saúde no início, mas, sempre bem cuidada pela minha sogra. Até comentamos que foi muito mimada. Mas depois cresceu normalmente. A vida seguiu e a experiência valeu.

Tanto progresso tivemos na época, que conseguimos adquirir um terreno na avenida Bandeirantes, perto da avenida Duque de Caxias. Com o projeto da casa em mãos, iniciamos a construção. Tinha quatro quartos, sala, um longo corredor, cozinha ampla e banheiro. A Lúcia estava com três anos de idade. Infelizmente, logo depois meu sogro veio a falecer. A vida continuou e fomos felizes ali. Na época também vendíamos em feiras livres. Era muito animador, pois o dinheiro ganho era bem valorizado.

Após seis anos, nasceu a Erika. O que mais preocupou foi uma gripe alérgica que contraiu na fase escolar. Mas, com bons médicos e todos os cuidados, teve melhora e continuou saudável. Ela foi sempre de estudar muito e conseguir seus objetivos. Passados quatro anos, nasceu a Cláudia, muito saudável. Ela não chegou a conhecer e conviver muito com os avós. Foi a única das filhas a estender seus estudos fora de Londrina. Todas as três filhas nasceram e foram criadas nessa casa da Bandeirantes.

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Norma Tsubaque Fukushigue
Dona de casa

Terceira parte: Lauro, o trabalhador e patriarca dedicado

O primeiro comércio do Lauro como proprietário foi a mercearia e quitanda Linense. Juntos, ele e eu, consolidamos a experiência no ramo de secos e molhados, conseguindo progredir como empreendedores e também financeiramente. A primeira casa que construímos foi resultado da paciência e perseverança no trabalho. Ali ficamos por uns 3 anos.

O segundo estabelecimento era na rua Senador Souza Naves com a Espírito Santo. Ficamos mais ou menos uns cinco anos, que era a Frutaria Linense. Foi muito bom, pois era uma região de pessoas de nível financeiro melhor. Nessa época, eu ficava em casa, cuidando da primogênita Lúcia e dos meus sogros. Para auxiliar no estabelecimento, foi contratada a Neusa, minha irmã caçula. O trabalho nas feiras livres continuava.

Após isso, mudamos o comércio para a Duque de Caxias com a rua Borba Gato. A minha irmã também auxiliou naquele estabelecimento. Também nesse local o resultado financeiro foi ótimo, propiciando a aquisição de um terreno na rua Conceição Arenal, no bairro Aeroporto. Logo em seguida, conseguimos construir duas casas comerciais. Houve um tempo em que ali funcionou junto um açougue.

Antes disso, tivemos na avenida do Café, uma mercearia e uma máquina de benefício de arroz. Tínhamos bons fregueses.

Foi nessa época que faleceu minha sogra. Com o passar do tempo, como a saúde do Lauro não estava andando bem, aos poucos fomos deixando devagar tudo isso.

Vou falar sobre o Lauro e a vida que foi levada com o comércio e seus negócios.

Como todo tipo de trabalho, também no comércio há várias preocupações, muitas, inesperadas. Sei que nada o segurava. Quando chegava a comentar alguma ideia diferente já estava resolvido e iniciava ao modo dele. Essa era a minha preocupação, porém acho que Deus nos acompanhou sempre. Nada foi de grande relevância. Tudo solucionável. Gostava muito de negociar carros mais velhos e motos também. Era bem conhecido por muitos. Isso para nós foi de muita graça. Viver de negócios o realizava. Mesmo após aposentado, não conseguiu ficar parado. Até casinhas de cachorro construiu e comercializou.

O homem trabalhador, no entanto, jamais deixou de exercer suas responsabilidades como marido, pai e avô. Nunca faltou nada no lar, que sempre esteve equipada com facilidades modernas para a dona de casa. As suas férias, desfrutava religiosamente todos os anos, saindo para viagens com a família. Assim, conhecemos muitas praias do Paraná e Santa Catarina.

Cumprida a sua missão, o Lauro faleceu em 1996, aos 67 anos de idade.

Assim era o senhor Lauro Atsushi Fukushigue.

 

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Norma Tsubaque Fukushigue
Dona de casa

Conclusão: Conquistas das filhas e dos netos

As filhas cresceram cada uma do seu jeito.

Todas estudaram, casaram e me presentearam com oito netos que são: Charles, Francine, Jacques, Vitor, Amanda, Daniel e Felipe. Eles muito me orgulham e me deixam feliz como avó.

O Jan foi meu primeiro neto, mas infelizmente não chegou a viver entre nós. Nasceu com problemas no coração e não sobreviveu.

A Lúcia me presentou com o Charles. Ele foi uma criança que veio com o tempo incompleto, com sete meses. Foi complicado a sua vidinha. Mas hoje, com o passar dos anos, é uma ótima pessoa que, sempre ao encontrar, me faz feliz. Ele é trabalhador, esforçado e muito atento em tudo, principalmente com a mãe e familiares. O Lauro fazia de tudo por ele, afinal era o neto tão esperado. Por exemplo, o Lauro adorava carregá-lo na moto. Foi pena, que os outros netos conviveram pouco tempo com o avô e outros nem o conheceram.

Tenho ótimas filhas e genros que me acompanham dando assistência no que é necessário e urgente. O que me falta? Nada. Sim, só vou ressaltar aqui que ainda não sou bisavó, pois os jovens já não mais se casam cedo.

Os meus netos Charles, Francine, Jacques e Amanda formaram-se na Universidade Estadual de Londrina. Charles em História, Francine em Jornalismo e Comunicação, Jacques em Administração de Empresas e Amanda em Ciências da Computação.

Vitor formou-se em Engenharia Mecânica na Universidade Estadual de Maringá. Atualmente, mora no Japão, onde concluiu seu mestrado e é doutorando na Universidade de Nagoya. Trabalha na empresa Optimind. Ele e Amanda são filhos da Erika.

Daniel estuda Veterinária na Universidade de Santa Maria no Rio Grande do Sul e o Felipe, o neto mais novo, está terminando seus estudos no Ensino Médio em Itajaí. Daniel e Felipe são filhos da Cláudia.

Todos os meus netos são muito amáveis e queridos.

A minha visão sobre Londrina é de ser uma cidade boa para se morar, pois há de tudo e muito me diverte. Boas faculdades a escolher, sendo a mais famosa a Universidade Estadual de Londrina, a UEL.

Para os idosos, existe o SESC, que frequento assiduamente para estudar e divertir. Da mesma forma, a UNIMED nos oferece alguns passeios e viagens durante o ano.

Londrina é conhecida pela sua vida cultural. Festivais de música, teatro e danças, são apenas alguns exemplos de atividade. A participação dos imigrantes japoneses e seus descendentes no desenvolvimento da cidade teve importância fundamental para o seu crescimento como a segunda cidade do estado do Paraná. Assim, todos os anos, festivais com comidas típicas, músicas e danças com grupos locais e outros vindos de várias cidades, fazem parte permanente do calendário de acontecimentos na cidade.

Atualmente, sou viúva há 24 anos e vivo feliz em Londrina e espero ter muitas histórias para contar.

O meu romance com o "Pé Vermeio"

Maria Aparecida Arantes Yoshimura
Técnica em Prótese Dentaria

O ano era 1973. Final de semana.

Vestido preto, com bordado de rosas no peito, mangas bufantes. Estava sozinha e resolvi ir até a lanchonete comer uma coxinha. Era o point da cidade à noite. Olhei para o interior onde ficavam as mesas e nossos olhares se cruzaram. Senti uma felicidade momentânea. Não conseguia tirar os olhos de um rapaz de descendência japonesa, talvez o único da minha cidade, Pederneiras, no interior do estado de São Paulo. Sua camisa era cor de rosa de mangas compridas, calça preta. Foi mágico. Assim nos vimos pela primeira vez. Depois, por meio de um amigo comum, fomos apresentados um ao outro e começamos nossa história de amor.

Aquele japinha bonitão era um “pé vermeio”, denominação carinhosa dada aos que são de Londrina, no norte do estado do Paraná. Seu nome é Masao. Nasceu em fevereiro de 1954 em pleno carnaval. O sogro foi foliar num baile na cidade e não registrou o filho. Só o fez em abril.

Até a idade de uns dez anos morou na Vila Casoni, mais precisamente no início da Rua Guaranis. Casa de madeira, com água de poço e casinha nos fundos do quintal. A tal casinha era um buraco de uns cinco metros de profundidade, sobre o qual havia uma cobertura com quatro paredes, em madeira, e telhado. Para os leitores de geração mais recente, a casinha era o lugar reservado para as necessidades fisiológicas pessoais.

Sua brincadeira predileta era a de encenar bandido e mocinho (não mudou nada até agora, só gosta de filmes de faroeste, minha nossa). Fabricava sua própria arma, um trabuco feito de antena de televisão. Gostava de pescar no Lago Igapó e na Pedreira, onde diz que havia muito lambari.

Figura 1: Da esquerda, Masao, Tadashi, Dermival e Boya, no jardim da casa da Rua Guaranis, em 1965.
Foto: M.T. Inoue, 1965.

Amigo inseparável foi o Dermival Viera da Costa, apelidado de Bichinho, pois assim era chamado carinhosamente pelos seus pais oriundos da Bahia. Moravam na casa dos fundos da Rua Guaranis. Seu pai era vendedor ambulante. Tinha um carrinho de madeira que empurrava pelas ruas de Londrina e fazia ponto no estádio de futebol.

Figura 2: O sorriso da cadela Lili, que veio com três meses de idade e ficou na família até a sua morte, beirando os 15 anos. Ao lado do poço de água potável, na Rua Guaranis.
Foto: M.T. Inoue, 1965.

Foi nessa época, que a mãe do Masao lhe arrumou um emprego numa padaria, por indicação de um vizinho. Trabalho noturno, durante o dia estudava. Recebia salário, pão e biscoitos. O salário era integralmente entregue à mãe.

Aos 13 anos, novamente a mãe lhe arrumou um emprego, agora, de faxineiro e entregador em um laboratório de prótese de nome Ogama, família da vizinhança, com a qual mantinha uma forte amizade. Nas horas vagas ele treinava anatomia dental, fazendo enceramento da morfologia dos dentes.

Seu esforço foi recompensado ao ser convidado para trabalhar em outro estado, na cidade de Assis, SP. Tinha 16 anos de idade. O dentista de nome Túlio Cabianca o recebeu e foi seu patrão durante dois anos. Morou nos fundos da residência do profissional.

De Assis, foi convidado a trabalhar em Pederneiras. Aqui a história já começa a ficar mais interessante. Nesta cidade também morou nos fundos da residência do patrão. Vê-se que começou ainda criança a trabalhar e a morar longe dos pais.

O salário, sempre entregue à mãe, ficava apenas com uma pequena parte. Às vezes tinha fome, mas tinha que aguentar. O jeito era esperar o patrão voltar da viagem de final de semana para compartilhar uma refeição com o chefe. A remessa do salário para casa sempre foi um compromisso para ele. Lembro-me que quando nos noivamos ele me disse: – Todo mês envio boa parte do meu salário para casa. E isso vai continuar para sempre.

E assim foi. Depois de casados, essa incumbência de envio de dinheiro passou para mim e a cumpri até a morte da minha sogra.

Em 1976, o Masao e eu estávamos noivos, apaixonados, e querendo gritar ao mundo nossa felicidade. Nessa época eu estava no 4º ano da faculdade, Masao trabalhando em uma clínica odontológica em Pederneiras. Já namorávamos há dois anos e resolvemos que era hora de nos casarmos e eu de conhecer a família do noivo. Resolvemos ir a Londrina. Masao precisava da certidão de batismo, documento exigido pela igreja católica para o enlace. Deveria estar na casa dos pais.

Figura 3: Casa dos Yoshimura à Travessa Padre Almeida, Jardim Petrópolis, em 1970. A partir da esquerda, Tadashi, Joji, Alípio (aluno do Boya), Neusa e Carlos Iwamoto.
Foto: M.T. Inoue, 1970.

Chegamos à Londrina. Se não me falha a memória, a casa onde residiam era azul, de madeira (comum no Paraná). Fomos recebidos por Sumie (mãe), Juniti (pai), Fumie (irmã) e a Lili, a cadelinha de estimação. Fui apresentada a eles. Nessa noite foi servido no jantar uma macarronada com carne, inesquecível. Os sogros só falavam japonês, então, não tinha noção do assunto entre eles. Não me sentia insegura, Masao era meu porto seguro. De repente, durante o jantar, Juniti, meu futuro sogro, falou ao filho: – Brasileiro não presta.

Talvez não quisesse que o filho se unisse a alguém que não tivesse descendência japonesa. O chão me faltou por um momento, mas rapidamente me recompus. Acredito que foi só uma primeira impressão. Meu sogro sempre foi carinhoso comigo. Me lembro das demoradas massagens que fazia em meus pés ou cabeça quando estava com enxaqueca.

Nessa viagem a Londrina conheci o Lago Igapó. Também tomei meu primeiro banho de ofuro.

Figura 4: Casal enamorado, às margens do Lago Igapó, nos idos de 1976.
Foto: C.T. Yoshimura, 1976.

Em 1977 nos casamos. Novas oportunidades na profissão. Ele escolheu (tinha Minas Gerais, etc.) o Rio para trabalhar e concluir o curso de prótese, que tinha ficado sem diploma. Em 1977 nasceu nossa primeira filha, Natalie. Em 1979 nossa segunda a Melissa, em 1981 a Flávia e por fim em 1983, a Amanda. Itinerantes por carma familiar assim como nós, nossas filhas tomaram, cada qual o curso de suas vidas e, atualmente nenhuma mora no Rio de Janeiro.

Desde 1979, Masao tem o seu próprio laboratório de prótese. Já está aposentado, mas continua trabalhando. Foi bem sucedido em sua trajetória. Continua sendo. Excelente filho, excelente pai, marido e profissional.

Figura 5: Aparecida e Masao nos dias de hoje. Foto de álbum familiar.

Meus finais de semana no "Secos e Molhados"

Eu, de família vinda do ramo da “feira”, sendo assim do comércio, desde os tempos de meus avós, tinha o compromisso dominical em acompanhar minha mãe e irmãs que iam para ajudar meu pai no seu estabelecimento comercial. O ramo era de Secos & Molhados, denominação da época, década de 70, para aquele tipo de comércio onde se vendia de tudo um pouco, fosse na condição seca (que tinham maior durabilidade para consumo) ou molhada (que se deteriorava com mais brevidade). A loja localizava-se em Londrina, no bairro Aeroporto, isso mesmo, por ser no local do Aeroporto da cidade.

Desde criança eu acompanhava minha família nessa grande missão. Achava divertido. Levava todos os brinquedos que quisesse para passar o tempo. Lá, eu permanecia dentro de nossa Kombi, podendo brincar, dormir ou simplesmente ficar prestando atenção na correria de todos os envolvidos no atendimento dos fregueses. Para que eu ficasse ao alcance dos olhos de minha mãe, meu pai deixava a Kombi estacionada numa vaga de frente à entrada da loja. Era época em que não havia tantas preocupações com situações estranhas envolvendo as crianças. As coisas eram mais tranquilas.

Tenho lembranças boas de meu pai, um homem muito dedicado à família e também muito comprometido em dar segurança e conforto para nós. Seu empenho no trabalho era constante, incluindo trabalhar aos domingos até o horário do almoço e, algumas vezes, até um pouco mais.

Era tempo em que se deixavam marcadas as contas de acordo com as compras que eram feitas pelos fregueses para fechar o pagamento ao final do mês. Chamávamos isso de vendas a fiado. Meu pai tinha um fichário com o nome de cada freguês e sua lista de compras. Bem, será que todo mundo pagava de forma comprometida? De vez em quando ele se incomodava, pois levava um calote, mas isso não inviabilizava de continuar com o mesmo sistema, afinal a grande maioria pagava sempre em dia.

Lembro as coisas boas daquele tempo, pois sendo a caçula de três filhas, tive meus privilégios. Umas dessas coisas era comer o que quisesse na venda de meu pai: todos os doces de lançamento, sorvetes, salgadinhos tipo petisco, tudo que a maioria das crianças adora. Claro que, por conta disso, fui uma criança mais cheinha.

Foram vários anos de minha infância nessa rotina, mas como era de se esperar, com o passar dos anos, fui enjoando de acompanhá-los a essa função dominical. Não queria mais acordar tão cedo para sair do aconchego da casa. Para a minha sorte, nessa época, minha mãe começou a dirigir. Íamos, eu e a minha mãe, um pouco mais tarde para ajudar na venda.

Já um pouco mais crescida, próximo dos meus 9 anos, pedi para ficar em casa. Não queria mais passar o domingo no comércio. Fiz um acordo com meus pais: eu ficaria em casa e faria o básico para o almoço. Deixaria assim as coisas adiantadas para que, quando eles voltassem, o almoço já estaria pronto. Foi muito bem aceito por todos.

Sempre gostei de cozinhar. Então, isso não seria problema para mim. Também poderia dormir mais tempo no fim de semana e ainda “brincar” na casa do vizinho. Era de uma família de origem italiana, sendo o casal com dois filhos, um menininho e uma menina. Ela era muito minha amiga. Tínhamos uns dois anos de diferença, sendo eu a mais velha. Vivíamos juntas, ora brigando, ora fazendo as pazes, pois além de nossa amizade, havia um outro motivo que me fazia aparecer sempre na casa dela: a comida de sua mãe. Como era gostosa, de “lamber os beiços” como dizem. Tudo era bom, fosse doce ou salgado.

Eu tinha um grande problema aos domingos. Cumpria meu compromisso deixando a refeição pronta, mas como minha família tardava em voltar, acabava fazendo uma boquinha no almoço da vizinha, sendo assim almoçava dobrado aos domingos. Quando minha família chegava, eu não podia dizer que tinha almoçado na vizinha e, para que ninguém desconfiasse, eu me servia de novo.

E o comércio, como ficou? Os tempos foram mudando. Os grandes mercados foram surgindo e as coisas se transformando. Não teve jeito. Tivemos que finalizar essa etapa, mas nos foi de grande valia enquanto durou.

Ouro Verde da minha infância

Caterina Balsano Gaioski
Escritora e poeta premiada
Membro da Academia de Letras, Artes e Ciências do Centro-Sul do Paraná
Membro da União Brasileira de Trovadores, UBT, seção de Irati

Décadas de 50 e 60 do século passado, a hoje quase centenária senhorinha, desabrochava então da adolescência para a juventude, abrindo majestosas pétalas de beleza e pujante progresso.

Refiro-me a LONDRINA, outrora considerada capital mundial do café.

Cercada por imensidões de cafezais, as grandes fazendas produtoras de café eram a “galinha dos ovos de ouro” para os proprietários. Começavam a usar tecnologia avançada para a época, quer no plantio, cultivo, colheita e seleção de grãos. Esta última, feita eletronicamente, foi algo considerado fantástico.

Foi a época que Londrina via, da noite para o dia, surgirem, armazéns e beneficiadoras de café em coco para a seleção e exportação. Paralelamente, em cada esquina viam-se vestígios de construções e o cimento, pedra, areia, ferro, etc… virarem concreto, transformando-se em edifícios cada vez mais altos, mais modernos, com arquitetura cada vez mais arrojada.

Uma curiosa menininha (eu), via tudo aquilo acontecer. Mesmo não morando lá, mas na vizinha Apucarana, passear e fazer compras em Londrina era um luxo reservado para poucos. Dentre estes poucos, estava minha irmã, esposa de um dos citados fazendeiros. Esporadicamente eu a acompanhava, ainda que fosse apenas para ajudar a carregar sacolas. Para uma garotinha como eu, era uma festa, além do quê, de vez em quando ganhava um agradinho. Íamos na gigantesca Casa Fuganti, na época, paraíso das compras para toda aquela região, além de alguma sofisticada butique, onde minha irmã comprava os trajes e adereços para os seus compromissos sociais.

O cultivo do café, maior fonte econômica da época, fez muitos empreendimentos socioculturais ganharem a alcunha de Ouro Verde: Edifício Ouro Verde, Hotel Ouro Verde, Armazém Ouro Verde etc… etc… E o principal de todos: Cine Ouro Verde que, inaugurado em 24 de dezembro de 1952, foi mais tarde tombado como Patrimônio Histórico Estadual.

Em 1965, foi inaugurada a Rodovia do Café. Um alento para toda a região norte do Paraná, pois em época de chuva, a boa e fértil terra roxa, transformava as estradas em imensos lamaçais, dificultando o tráfego de veículos leves ou pesados.

O tempo passou, a menininha seguiu outros rumos, até que em 1986, quando gerenciando a unidade armazenadora da Cooperativa Agrícola Irati, entreposto de Rio Azul, participou de um encontro de Comitês Educativos das Cooperativas do Paraná, realizado na Sociedade Rural do Paraná, em Londrina.

Figura 1: Ocasião do encontro de educadores em Londrina. Em destaque, a autora. 
Foto de álbum familiar da autora.

Que espanto!

-Cadê a Londrina da minha infância?

 Uma gigantesca metrópole apareceu diante dos meus olhos. A cidade completava nesta ocasião, cinquenta e um anos de existência.

Figura 2: Cartão postal da cidade, comemorativo à ocasião do Encontro dos Educadores.

Creio que o café já não é mais fonte principal da sua economia que hoje engloba o cultivo da soja e as atividades agro pecuárias, mas, tenho certeza que o “ouro verde” deixou marcas indeléveis na sua terra e na sua gente. 

O meu primeiro porre

Como de costume, no almoço de domingo teve macarronada.

Ainda com a barriga cheia, fui designado para levar uma encomenda para a vizinha que morava na mesma rua. No trajeto, pensava com meus botões, como seria o convívio daquela família, de classe média, com o casal de filhos já adolescentes, buscando se encontrar na vida. Não que se soubesse de algo que os desabonasse, mas a sensação que pairava no ar é que deveria haver alguma coisa incomum ali.

Cheguei com a encomenda e após cumprimentar a dona da casa, ela me convidou para entrar. Só depois de estar na sala é que ela pegou a encomenda e agradeceu. Eles também já tinham almoçado e cada um estava ocupado com seus problemas e afazeres em seus respectivos espaços.

A dona Genilda, assim era o nome da vizinha, estava arrumando a cozinha e disse para eu esperar um pouco. O casal havia consumido vinho por ocasião do almoço e na garrafa ainda restava um terço da bebida. Foi então, que a dona Genilda me perguntou se eu queria tomar um pouco. Como eu nem conhecia vinho, agradeci e disfarcei dizendo que naquele momento não queria. Mas, ela insistiu que deveria me presentear com o líquido precioso e encheu um copo com o que havia sobrado.

            – Aqui está. Leve este copo pra casa e ofereça para alguém.

            – Está bem, já que a senhora está dando, aceito com gosto.

Na época, eu tinha oito anos de idade. Imaginem a loucura daquela mulher me convidar para beber vinho!

Encomenda entregue. Copo de vinho cheio para levar à casa. No caminho de volta, fui pensando como explicar a chegada com uma bebida. Tracei alguns cenários e segui adiante.

O meu pessoal também não estava acostumado com bebida alcoólica nas refeições. Assim, o presente trazido não causou impacto, nem de alegria, nem de satisfação. A minha irmã mais velha, com a qual eu morava desde os quatro anos de idade, recebeu o copo de vinho e disse que iria guardar para consumir mais tarde.

A curiosidade em saber como seria o sabor daquele líquido vermelho escuro que a dona Genilda tomara no almoço daquele domingo fatídico tomou conta de mim. Na primeira oportunidade, peguei o copo e sorvi um lapso de gole. Nunca havia experimentado algo tão ruim! Um misto de azedo e amargo, e ainda por cima, uma queimação na língua e uma sensação de tontura. Dei tratos à bola na minha imaginação e lembrei que já havia tomado suco de uva e gostado.

Deste momento para a ação, foram décimos de segundo.

Copo de vinho na mesa, pote de açúcar também. Aos poucos, as colheradas transferiram o pó para o líquido, tornando-o suficientemente doce.

Ato contínuo, bebericar o vinho assim adocicado como se fosse um excelente e forte suco de uva!

Daí em diante, não me lembro de nada.

Quando voltei a mim estava estirado no piso da sala, com a respiração ofegante, sentindo todo o corpo e o coração batendo acelerado e, pasmem, com a cabeça latejando e uma tontura, sentindo estar flutuando no teto. Pensei comigo:

            – Eita bebidinha do cão! Gostosa de tomar, mas este efeito…  Se for assim, nunca mais quero beber.

 Assim aconteceu o meu primeiro e último porre!

O acidente de serraria 1

Lá estava eu apreciando a chuva torrencial que caia naquela tarde de verão em Londrina. Sentado tranquilo na enorme varanda que adornava a entrada para a sala da casa, pensava como seria o restante do dia chuvoso.

Eu estava com seis anos idade. Ainda não sabia o que era uma escola e nem me preocupava em pensar que um dia eu teria que começar a estudar. Só pensava em brincar, brincar e brincar.

As ruas naquela época não eram pavimentadas. Nem a Pernambuco, que cortava a cidade de norte a sul.  A linha férrea passava bem em frente à nossa casa e ligava todas as cidades do norte do Paraná, de Ourinhos, no estado de São Paulo à Cianorte, no estado do Paraná. Fazia parte da Rede Viação Paraná Santa Catarina – RVPSC.

Num grande terreno, entre a linha de ferro e a atual Fernando de Noronha que se inicia na Pernambuco, havia uma serraria que processava a madeira das principais espécies florestais que abundavam na Floresta Estacional Semidecidual do Bioma Mata Atlântica. Dentre elas, a mais valiosa e usada na construção de casas era a peroba-rosa. Depois, vinha o cedro-rosa e os diferentes tipos de canela, pau-marfim, cabreúva, entre outras.

A serraria ocupava uma grande área como pátio de estocagem de toras, que se localizava na enorme área livre de domínio da RVPSC, próximo da estação ferroviária. Devia ter mais de um hectare só para aquele pátio. A madeira já processada ficava num entreposto mais próximo da serraria, para uma rápida secagem antes de ser colocada em caminhões transportadores de madeira. A demanda era tão grande que não havia tempo hábil para um processo de secagem desejável. Principalmente a madeira de peroba secava in loco, nas paredes e pisos das casas.

O playground preferido da gurizada era o pátio de estocagem de toras.

Subir nelas, percorrer ao longo do tronco desafiando o equilíbrio, era uma aventura fascinante. Quando a serraria não conseguia acompanhar a frequência da chegada dos caminhões de toras, estas eram empilhadas uma sobre as outras. Devido as grandes dimensões, com a maioria das toras atingindo mais de um metro de diâmetro, o seu peso ajudava no equilíbrio e estabilidade das pilhas.

A chuva da tarde havia amainado. Quando a chuva parou de vez, não me fiz de rogado e saí para desfrutar um pouco da tarde que restava para brincar com meus amigos no pátio de toras.

Dentre os folguedos praticados, de esconde-esconde até aposta de corrida, talvez a preferida fosse o desafio de equilíbrio percorrendo ao longo das toras. Esta brincadeira em si não era tão perigosa. O que dava mais emoção era pular da extremidade de uma tora para a outra, imitando mocinhos e bandidos que pulavam de um vagão para outro, com o trem em movimento. Aquilo sim, era pura adrenalina!

Nem nos demos conta de que havia chovido até há pouco. A umidade ainda persistia sobre as toras. Mas, na inocência da idade e no afã de desafiar o perigo, brincávamos despreocupadamente.

Foi num desses lances de pular da ponta de uma tora para outra, que escorreguei e meu corpo foi ao ar e na queda, bati o topo traseiro da cabeça na extremidade cortante da primeira tora.

Daí para o início de choro e grito, foram longos segundos. Gravei minha identidade na tora com meu próprio sangue. Os amigos foram solícitos em me socorrer, tentando conter os jatos de sangue com as mãos.

Ato contínuo, ajudaram-me chegar à casa, onde fui recebido com a maior surpresa e susto. Não me recordo de ter ido a hospital ou pronto-socorro. Eram instituições incipientes e também não havia esse costume. Foi feito um curativo em casa mesmo, com bandagem no entorno da cabeça que devo ter ficado parecido com uma múmia.

Bater a cabeça fazia parte do meu carma. Lembram-se do episódio da queda na escada, em Presidente Prudente, quando eu ainda era bebê?

Duas consequências deste segundo acidente: uma parte aprofundada no meu crâneo e tornar-me um Engenheiro Florestal.

O assassinato do charreteiro

Um fato aberrante que marcou tragédia na cidade foi a morte de um charreteiro. Como na maioria de casos daquela época, o crime fora passional.

Minha família acabara de se mudar para uma casa situada logo acima da linha férrea que atravessava a cidade de leste à oeste. Eu estava com seis anos de idade.

Na época não havia muitos carros. Ônibus urbanos não existiam. As pessoas tinham que caminhar muito ou pagavam por uma corrida de taxi, em carros importados, os conhecidos “biribas”.

O meio de transporte popular mais usado era o conhecido como charrete. Era um veículo para até três pessoas, incluindo o charreteiro, ocupante necessário para dirigir o artefato puxado por um cavalo. A arquitetura lembrava as bigas romanas em que se instalava uma cobertura em lona e um assento estofado. Para a proteção em dias chuvosos, havia outra lona com abertura na altura da cabeça dos ocupantes, em plástico transparente, e pequena abertura para as rédeas de controle do cavalo. Nesses dias, o odor proveniente do animal com o pelo molhado era algo sufocante. Muitas vezes, o cavalo caminhava e cagava ou peidava ao mesmo tempo.

Era o veículo preferido das prostitutas, talvez pela praticidade e grande oferta. Tanto que, na zona do meretrício havia vários pontos de charrete. O preconceito era tanto que as mulheres da sociedade preferiam fazer longas caminhadas a ter que usar charretes.

Não são conhecidos detalhes e circunstâncias da ocorrência. O que se soube, é que na noite da tragédia o criminoso esperou o charreteiro chegar em sua casa, já com a planejada intenção. Talvez fosse seu conhecido, pois o encontro teria sido cordial no início. No entanto, no alto de uma discussão, o autor golpeou o pobre homem por várias vezes com uma faca, conhecida como peixeira, fugindo em seguida. Telefone e serviço de atendimento público eram incipientes. Assim sendo, o charreteiro acabou falecendo. Semanas depois, o assassino foi capturado e preso.

O fato abalou a sociedade local e houve uma carreata, ou melhor, charreata, por ocasião de seu enterro. O morto devia morar na região da Vila Nova, em que o acesso para o cemitério municipal era pela rua onde eu morava.

Para mim, que observava a procissão através da cerca da nossa casa, era uma fileira interminável de charretes e pessoas a pé subindo pela mencionada rua. Provavelmente, o féretro estivesse sendo acompanhado por algumas dezenas de charretes. Mas na minha imagem dimensional pareciam milhares de charretes.

Foi um tempo quase infinito até que a última charrete passasse em frente da casa.

O tarado da feira

A evolução do comportamento humano acompanha a evolução da maneira de vestir.

Ou vice-versa.

E entenda-se evolução da moda, a feminina.

Desde as vestimentas que cobriam quase todo o corpo até evoluir para o eterno vestido de comprimento um palmo abaixo do joelho, foram alguns séculos. Daí, para o vestido ou saia curta, em torno do joelho, já foi mais rápido. A mais marcante e duradoura moda foi, sem dúvida, a da minissaia. Esta iniciou seu reinado na década de 1960, já subindo para um palmo acima do joelho. Quando o comprimento se tornava abusivo alguns denominavam de “abajur de b…”.

O fato ocorreu numa manhã de domingo de verão.

Este era o costumeiro dia de feira livre na Praça Sete de Setembro no largo da Catedral de Londrina conhecida como “Feira do Bosque”. Durante todo o período matinal, produtores e comerciantes autônomos vendiam suas frutas, verduras, hortigranjeiros, ervas medicinais, geleias, mel, entre outros alimentos. Por se tratar de produtos mais frescos, alguns apresentando ainda sinais da terra donde proviam e mais baratos, por ser transação direta entre produtor e consumidor, o movimento era bastante grande. Era também a ocasião para encontrar e reencontrar amigos, bater um papo furado, colocar a conversa em dia, enfim, momentos amistosos em meio a tarefa do “fazer a feira”.

No burburinho do maior movimento, em torno das 10 horas, o calor do verão londrinense já se fazia ativo não somente na temperatura que o corpo sentia, mas também no vestuário das pessoas: bermudas, calça curta, saia e vestido curto, camisetas, regatas, e, pasmem, minissaia! A que algumas mulheres vestiam parecia mais ser microssaia, de tão curtas.

O fato marcante daquela manhã foi quando uma jovem senhora usando minissaia estava negociando a compra e tentava ver mais de perto o produto, debruçando-se sobre a gôndola que o sustentava.

O cenário para o ato contínuo estava montado, com a traseira da coprotagonista toda à vista, faltando quase nada para se enxergar a calcinha vermelha que usava. Nessa altura, o protagonista principal já estava à espreita, deleitando-se com aquela exuberante visão e preparando-se para a finalização do intento.

Sem que alguém percebesse, o meliante aproximou-se da mulher com a braguilha da bermuda aberta e sua ferramenta exposta e em riste, atracando-a firmemente por trás, realizando ferozmente os movimentos do vaivém. Surpreendida, ela tentou em vão se desgrudar do homem, gritando e esbravejando a céu aberto. Bastaram apenas alguns segundos para que o atacante alcançasse seu ápice, lambuzando as coxas da vítima.

Nesse interim, já estava formada a aglomeração de pessoas no entorno da dupla protagonista assistindo ao embate furioso, à guisa de um coliseu.

É claro que o espetáculo foi logo desfeito com a intervenção daqueles que conseguiram separar a dupla. Uns, preocuparam-se em acudir a vítima, ajudando-a a limpar-se. Outros, estavam incumbidos de manter o atacante sob controle até a chegada da polícia.

Do incidente aprendeu-se que, se estiver usando minissaia não se debruce demasiadamente para não deixar suas partes à mostra e pior, se sujeitar a uma possível abordagem indesejada.

Por seu lado, o meliante terá que conviver o resto de sua vida com a desagradável alcunha de “O tarado da feira”.

 (Este foi um fato ocorrido nos anos 60 em Londrina. Eu aumento, mas não invento!)

Hitchcock e Spielberg

A troca de bens, valores e favores é praticada pela humanidade desde tempos desconhecidos. Evolui-se e inventaram o dinheiro (moeda, papel-moeda, bitcoin, pix), que facilitou as transações. Imaginem a dificuldade se tivéssemos que pagar uma compra pela internet usando cereais, pedras, galinhas, moedas e outros valores materiais.

Quem já foi criança sabe muito bem que a troca de valores por bens ou serviços era efetuada por meio de “dinheiro de mentirinha”. Os mais inimagináveis materiais serviam para pagar alguma coisa. Os mais comuns eram aqueles que nos estavam à mão, em estoque na casa: grãos de milho, feijão, folhas de papel, pH (papel higiênico, para os desavisados), guloseimas dos mais diversos tipos e sabores, etc.

Na minha pré-adolescência, o nosso divertimento noturno predileto era a projeção de filmes no cineminha montado no quintal da casa do meu amigo Maninho. O projetor tinha sido construído por seu pai, artífice habilidoso, usando apenas pedaços de madeira compensada, lâmpada elétrica e uma lupa. Na realidade, o artefato era um projetor de slides, pois a projeção era baseada em observar tiras de filmes descartados, obtidos por seu irmão mais velho, que trabalhava como projecionista num cinema da cidade. No nosso cineminha, os filmes eram, além de mudos, estáticos. Às vezes, obtínhamos pedaços de filmes para adultos. Nesse caso, só era permitida a entrada de meninos e maiores de oito anos.

A nossa aventura como cineastas começou no dia em que o Maninho ganhou um projetor de filmes em tiras.

Era um artefato que projetava numa tela ou parede, figuras animadas, como se fosse um projetor profissional de filmes. Só que, no lugar de películas em celuloide, eram tiras estreitas de papel semitransparente do tipo vegetal ou papel-manteiga. Nelas estavam impressos os motivos em foco distribuídos em espaços equidistantes. Cada figura era semelhante a anterior, com a diferença que retratava um lapso de movimento, do braço, cabeça, ou qualquer outro ponto da figura. Eu diria ser uma evolução do cinetoscópio, de Edson ou do cinematógrafo dos irmãos Lumière, em formato para uso caseiro e como brinquedo.

Tratava-se de um sistema inteligente, com fonte de luz, uma lente concentradora e duas lentes difusoras. A tira de papel com os desenhos passava entre a lente concentradora e um sistema de espelhos que enviava a imagem da tira alternadamente, para a lente superior e para a lente inferior. O mecanismo que tracionava a tira de papel era acoplado com o sistema ótico formado pelos espelhos, sincronizando a projeção na tela, ora pela lente superior, ora pela inferior. O resultado disso tudo permitia que a plateia assistisse à uma única imagem, composta pelos desenhos da tira, que simulava, tremulamente, os movimentos previstos.

Junto com o projetor, tinham vindo algumas poucas tiras de “filme” já prontos. Baseados nos modelos, Marinho e eu tivemos a ideia de desenhar nossas próprias estórias. Ele tinha uma habilidade inata para desenhar, tanto que se tornou um arquiteto bem sucedido. Eu nunca fui um desenhista, não tinha a habilidade nem a paciência para tal. Mas, na ansiedade de ver algo sendo criado, esforcei-me para aprender com ele algumas técnicas.

Assim, como se fôssemos Hitchcock e Spielberg, conseguimos desenhar algumas estórias nas tiras de papel. Eram coisas bem simples, infantis e até ridículas. Mas, para a época, eram o motivo para a criatividade e diversão. Via de regra, eram historietas de cavalos correndo, índio lançando flecha, mocinho cavalgando e atirando no bandido, Sputnik girando em torno da Terra, futebolista chutando a bola e assim por diante.

Apesar da simplicidade conseguíamos lotar o nosso cineminha improvisado no quintal, tendo um lençol como tela e prancha de madeira sobre tijolos como assento. Nós dois fazíamos tudo: operador do projetor, bilheteiro, lanterninha e até pipoqueiro. A moeda estabelecida naquela brincadeira era palitos de fósforo. O valor do ingresso era de 5 palitos por criança. No caso das meninas, elas podiam pagar com balas e guloseimas, se quisessem.

A arrecadação, após trocar por dinheiro real em casa ou na vizinhança, servia para a compra de papel e tinta nanquim para os próximos filmes. Um pouco do lucro em palitos era dividido equitativamente, para posterior uso nas fumadas de cigarro feito com talo de chuchu.

A malograda luta entre Santana e Rikidozan

A época era o final dos anos 50.

O estádio de futebol “Vitorino Gonçalves Dias”, em Londrina, PR, localizado ao lado da Zona (zona do baixo meretrício) estava repleto de espectadores.

O motivo da multidão não era jogo de futebol.

Aquela arena, quando não usada para a prática do esporte para o qual foi construído, sediava outros eventos de grande público tais como o bingo, onde eram sorteados prêmios valiosos entre carros e outros bens de consumo. Algumas vezes, ocorriam show de artistas famosos. O evento mais frequentado era o de luta-livre, também conhecido como vale-tudo.

O que ficou na memória de muitos londrinenses foi, sem dúvida, o embate entre um lutador brasileiro de nome Waldemar Santana e um lutador japonês, de origem coreana, conhecido internacionalmente como Rikidozan.

Santana foi um baiano que percorreu uma rápida carreira como lutador de diversas modalidades entre judô e jiu-jitsu, fazendo apresentações e alcançando grande prestígio por todo o Brasil.

Rikidozan nasceu na Coreia e ainda jovem foi descoberto por um agenciador e treinador japonês que o levou para o Japão. Lá, evoluiu nas técnicas de luta-livre, que incluía todas as modalidades de defesa pessoal como judô, jiu-jitsu, karatê, entre outras. Tornou-se um herói nacional num período em que a população ansiava por lideranças que pudessem reconstruir o país no pós-guerra.

A divulgação da esperada luta tinha sido bem feita a tal ponto de não haver mais ingressos à venda. Assim, eu e minha turma de amigos, todos pré-adolescentes, adentramos o estádio pela sua murada constituída por tábuas de madeira que apresentava brechas passíveis de serem atravessadas.

Via de regra, tais eventos eram programados em duas partes: as lutas preliminares e a luta principal. As preliminares ocuparam boa parte da tarde e da noitinha, o que preparou e aqueceu a torcida ao ponto de bala.

A multidão das arquibancadas já estava inquieta e gritava:

            –Santana! Santana!

            – Rikidozan! Rikidozan!

Na realidade, não existia nenhuma rivalidade entre os torcedores pois ambos eram ídolos da luta-livre. Esse tipo de incitação faz parte dos preparativos para glorificar a entrada das estrelas. Desde a entrada de ambos pelo túnel do campo e no caminho até o centro do gramado, onde estava armado o ringue, os gritos da torcida tomaram conta do estádio, como num jogo de final de campeonato.

Subindo ao ringue para os cumprimentos, cada um ia num canto, subia nas cordas e incitava a torcida agitando ambos os braços ao alto. Aí sim, que o estádio quase vinha abaixo num delírio extasiante.

Para o deleite da multidão, em seu aquecimento, as estrelas da noite apresentaram suas habilidades. Rikidozan quebrou uma pilha de 12 tijolos com um golpe de karatê. Por seu lado, Santana quebrou três tijolos com um golpe de cabeça.

Todos aquecidos, lutadores e torcida, foi dada autorização para o início do embate. A luta estava programada para ter dez assaltos. Os primeiros dois minutos, sob o silêncio total da torcida, passaram-se na troca de olhares e dança de luta protagonizados pelos dois rivais, no centro do ringue. No meio do terceiro minuto, quando já estavam atracados, Santana aplica um golpe baixo, de cabeça, em Rikidozan. Isso deixou o lutador japonês muito irritado que revidou imediatamente, desfechando um golpe de karatê no pescoço de Santana. Foi um único golpe mas suficiente para derrubar o lutador baiano, que não mais conseguiu se levantar, no que o juiz deu como nocaute, acabando a luta em menos de três minutos.

Não sei se tal desfecho estava no roteiro da luta mas a decepção tomou conta da multidão, que vaiou e cantou por vários minutos, com palavrões de baixo calão.

            – Uhhh! Uhhh!

            – Marmelada! Marmelada!

            – Filho da p…! Filho da p…!

Mesmo sem ter pagado o ingresso, também gritei o que pude, extravasando a minha decepção.

Duas Cruzes - parte 1

O encontro do menino e a tartaruga

As lembranças levam-me à época de infância quando, certo dia após o desjejum, apressei-me em ir até o local onde estava o tanque que servia de abrigo e aconchego da Freud, a minha tartaruga de estimação. O animal tornara-se amiga e confidente nos meus momentos de solidão e avidez pelos diálogos profícuos e incentivadores. A “casa” dela era a parte de baixo de um terço de tambor de combustível preenchido com água. Este tanque estava instalado no chão, num canto do quintal, junto à cruz surrupiada pela minha mãe do túmulo do meu pai enterrado na cidade de onde vínhamos. Não tivera sido um ato dos mais elogiosos, mas acho que o amor que os unia era muito forte. Além disso, em seus últimos meses, meu pai sofrera muito com a limitação da ingestão de líquido devido a doença provocada pelo caramujo da esquistossomose, chamada de “barriga d’água”. O argumento de minha mãe era então que, mesmo em outra cidade, ela poderia oferecer diariamente a água que tanto lhe faltara. O local foi providencial pois ela aproveitaria para reabastecer a “casa” da Freud.

No caminho para o tanque, eu lembrei do dia em que nos encontramos.

Eu tinha quatro anos de idade e costumava brincar solto e sozinho, tanto no quintal da casa como também na rua. Era ainda de manhã e lá estava eu a balbuciar solitário, absorto em arquitetar alguma traquinagem para o dia, quando avisto algo volumoso a se movimentar no meio da rua. Mais que depressa, arrumei uma vareta e comecei a cutucar aquilo que nunca havia visto até então. Era arredondado, com uma carapaça dura cobrindo quase a totalidade da parte superior do corpo e, pasmem, tinha cabeça e patas!

Tratava-se de uma tartaruga, certamente domesticada e que havia fugido da casa que tinha como lar. Devia ser da redondeza, pois na velocidade de seu andar não poderia ter ultrapassado algumas centenas de metros.

Percebendo tratar-se de um animal, tentei brincar com o bicho cutucando a cabeça, as patas e batendo no casco como se fosse um tambor. Estava tão entretido que nem percebi a chegada de um senhor que puxava uma carriola-oficina de amolar instrumentos de corte, como facas e tesouras. Aquele senhor, de meia idade e estatura baixa, perguntou-me com uma voz forte, mas carinhosa:

     – Ei menino, o que está fazendo?

     – Tô brincando, né!

     – Isso aí não é brinquedo pra ficar mexendo no meio da rua.

     – Mas fui eu que achei e posso fazer o que quiser, né?

     – Certo que foi você quem viu a tartaruga primeiro. Também é certo que ela pertença a alguém, pois estamos numa cidade e não no mato.

     – Tá bem, mas eu gostei e quero pra mim.

     – Vá dizer pra tua mãe trazer alguma vasilha.

Rapidinho, fui e voltei com uma bacia, suficientemente grande para abrigar o volume do animal.

Duas Cruzes - parte 2

Conversando com a tartaruga

Nesse ínterim, o amolador já havia virado a tartaruga de barriga para cima e aguardava. Fiquei surpreso e com dó ver como o animal mexia suas patas e cabeça desesperadamente. Por mais que se esforçasse para revirar, não conseguia o intento. Aquele senhor, que me pareceu bastante sábio, comentou:

– Que maravilhosa coincidência de você e a tartaruga estarem comprovando uma raríssima boa sorte. O animal, por estar perambulando pela rua, incólume em sua vagarosidade sem ser atropelado por algum veículo. E você, por ter encontrado a tartaruga à qual poderá oferecer proteção e quiçá, virem a se tornar bons amigos.

Dizendo isso, o amolador colocou o animal dentro da bacia, de barriga para cima e instruiu-me como cuidar do bichinho.

Durante um bom tempo minha atenção esteve por conta de apreciar o dia a dia da Freud dentro de seu espaço restrito, adornado com algumas pedras e vegetais aquáticos. A sua alimentação era baseada numa dieta vegetariana como alface e cenoura picada. Esta tarefa assumi como sendo exclusivamente minha pois, afinal, o animal de estimação era meu assim como a responsabilidade de tratá-lo.

Foi logo no início do nosso relacionamento que me veio a inspiração para tentar um diálogo com a Freud, que já se mostrava bastante amistosa para comigo.

            – Bom dia amiga. Como você está se sentindo hoje?

            -Boomm diiiaa. Eeeuu eessttouuu bbbeeemmm.

Para minha atônita e alegre surpresa eu podia ouvir o que a tartaruga me dizia. Só que, numa velocidade de fala que era igual ao restante de seus movimentos. Muito lenta.

            – Que bom, eu posso entender você, acabei falando, após o primeiro impacto.

            – Sinto-me feliz em ter alguém para conversar e trocar experiências.

Naquele dia, nossa conversa ficou nisso. E demorou longos minutos.

Com o tempo nossos encontros tornaram-se mais frequentes e longos, nos quais pude aprender muito sobre a vida dos animais, principalmente do ser humano.

            – Por que você é devagar em tudo?

            – Cada animal tem suas características. Eu não tenho pressa em me movimentar porque não preciso. Assim são também o bicho-preguiça, no Brasil, e o coala, na Austrália, dentre muitos outros.

            – E o que você faz quando você é perseguida?

            – Tenho minha carapaça sob a qual posso me esconder todinha. Mas existem animais que mudam sua velocidade conforme a idade.

            – Ah! Eu sei que a vovó anda bem devagar. Na verdade, tudo que ela faz, faz bem devagar.

            – Isso mesmo. Com o tempo ela aprendeu que a velocidade não significa uma vida mais feliz. Pra que tanta pressa se o mundo não vai acabar hoje?

            – Mas, a gente vê todo mundo andando cada vez mais apressado. Será que isso é necessário?

            – A causa disso é a ganância típica do ser humano. No afã de ter para si cada vez mais, agride seus semelhantes e o ambiente. Esquece que assim destrói a própria casa e a si mesmo.

Continuando o diálogo, falamos sobre outras coisas relacionadas a curiosidade típica de uma criança.

Duas Cruzes - conclusão

A tragédia

Entrementes, veio-me à mente aquilo que o amolador havia comentado e entabulei uma nova pergunta.

– Lembrei do que falou aquele homem no dia em que achei você. Ele disse que a gente tinha uma grande boa sorte em se encontrar justo naquele dia. Você sabe me explicar por que?

– Sim, foi o meu avô quem me contou a parábola da tartaruga caolha.

– Conta pra mim, por favor.

– No fundo do oceano mora uma tartaruga que é caolha. Ela sente nas costas um calor muito forte. Em contrapartida, sente um frio muito intenso em sua barriga. Ela tem uma única oportunidade de, a cada mil anos, subir a superfície e tentar diminuir seus sofrimentos. Ela precisa nadar bastante até achar um tronco de sândalo. Imaginem qual é a probabilidade da tartaruga, sendo caolha, encontrar um tronco de sândalo flutuando na imensidão do oceano. E ao encontrá-lo, ele precisa apresentar uma cavidade em sua superfície de modo que a tartaruga possa alojar as suas costas. Se conseguir o intento de se deitar de costas na cavidade, pode então desfrutar do refrescamento de suas costas e aproveitar o calor do sol batendo em sua barriga. É claro, que precisa ser um dia sem nuvens. Então, a probabilidade do nosso encontro foi tão rara quanto a tartaruga caolha encontrar o seu tronco de sândalo no oceano, completou a sábia amiga.

Fiquei perplexo por alguns segundos para absorver aquele importante ensinamento. Que paciência e perseverança da tartaruga caolha em esperar todo aquele tempo e nadar persistentemente até encontrar o tronco de sândalo. Quando o objetivo é grande, a determinação e a dedicação devem ser igualmente grandes, pensei e disse, em seguida.

– Que história maravilhosa! Eu gosto muito da tua companhia, pois aprendo bastante sobre a vida.

– Eu também curto muito a tua amizade. Sinto-me gratificada em ter te encontrado e receber tamanho carinho e atenção.

– Vou guardar teus ensinos como guia da minha vida. Fico muito grato e feliz com o nosso encontro.

A minha rotina de aprendizado continuou por algum tempo até que outras distrações apareceram em minha vida, comportamento típico de um garoto curioso, sempre receptivo a novas experiências. As nossas conversas foram tornando-se espaçadas. Mas a atenção aos tratos para com a Freud continuou como sempre.

Até que um dia aconteceu a tragédia.

Como único menino da casa, peralta e inspirado, resolvi por conta própria, guardar um pouco da linguiça servida no almoço para dar a tartaruga em sua próxima ração. Coloquei um pedaço bem pequeno da carne que ficou boiando na água. A tartaruga percebeu e abocanhou delicadamente o petisco. Percebendo que o animal gostara do almoço fui colocando aos poucos mais pedaços da linguiça, abocanhados cada vez mais vorazmente pelo réptil.

O efeito da dieta diferenciada veio no decorrer dos próximos dias. Não se soube qual foi a causa, a carne de porco, a gordura ou a tripa usada para confeccionar a linguiça. Em todo caso, a diarreia tomou conta do animal na semana daquela aventura gastronômica. O resultado foi fatal. Foi enterrado ali mesmo, no sítio de seu derradeiro habitat.

Por um longo tempo, persistiam duas cruzes no canto do quintal.

Lado a lado. Uma maior, outra menor.

  

ESTE DEFECHO INSPIROU O MICROCONTO DENONIMADO “DUAS CRUZES”.

Duas cruzes. Lado a lado. Uma maior, outra menor.

 

Publicado no YouTube, em português ( https://youtu.be/IoyF0Q3fPJg ).

Em inglês ( https://youtu.be/5oaKqM6Jf-Q )

O meu pé de uva japonesa - parte 1

O meu espaço e a uveira

Após o acidente que sofri, escorregando de uma tora da serraria num dia chuvoso, fiquei algum tempo proibido de sair para brincar fora de casa. Imaginem uma criança de cinco anos, acostumada a perambular pelas ruas da redondeza, livre e solto, com seus amigos e compartilhando experiências e brincadeiras, estar submetido a um confinamento limitado pela cerca da casa.

Ainda bem que o quintal era bem grande, com muitas flores e árvores. O meu playground era completo: com balanço pendurado num ramo da uveira; árvores de todos os tamanhos para subir, equilibrar nos ramos e pendurar-me como um Tarzan no meio da selva, graças a uma corda amarrada a qualquer uma das árvores; uma enorme caverna formada pelo porão da casa com pilares de quase um metro de altura na parte onde ficava a varanda.

Na minha caverna havia num lugar escondido, um grande baú de madeira onde eu guardava os brinquedos preferidos: coleção de bolinhas de gude, pião, bilboquê e o mais precioso, o meu álbum de figurinhas de colar que embalavam balas especiais. O álbum era de formato grande com várias folhas contendo espaços retangulares gravados. No centro estava gravado o número da  figurinha que ali deveria ser colada. Abaixo de cada retângulo já vinha impressa a legenda da respectiva figura. Usava-se a cola conhecida como goma arábica. Na falta, eu usava o arroz que comíamos, cozinhado puro, no estilo japonês. Em cada época, havia um tipo de coleção diferente. A que eu estava colecionando era sobre animais de todos os tipos, domésticos e selvagens. Assim, aprendi desde cedo que no mundo havia uma quantidade muito grande de animais, classificados em insetos, aves, mamíferos, herbívoros e assim por diante.

Ali ficava guardado também o meu triciclo que eu dirigia desde o fundo da caverna até a qualquer parte das fronteiras do meu território. Quando terminava o passeio, eu o estacionava corretamente, dirigindo em marcha a ré. É com ele que eu ia da caverna ao pequeno pomar; também, olhava e sentia o perfume das flores dos canteiros do jardim e, principalmente, chegava até ao meu pé de uva japonesa.   

A minha grande companheira e confidente naqueles dias e em outros em que eu brincava sozinho era o pé de Uva-do-Japão, ou uveira, do nosso enorme quintal. Quando mudamos para aquela casa, lá estava ela, adulta e enorme, já produzindo seus frutos. A árvore destacava-se pelo seu porte alto e copa ampla, que criava uma sombra muito fresca nos verões londrinenses. No inverno, perdia todas as suas folhas, banhando todo o seu entorno com o calor do sol.

Uma grande parte do tempo eu passava junto dela. Ora recostado à base do seu enorme tronco, ora sentado ou dependurado num dos seus ramos baixos. Era num destes ramos que havia um balanço, preso com corda de sisal e assento de madeira.

O meu pé de uva japonesa - parte 2

A origem da uveira

A coisa mais estranha que conheci foi a fruta da uveira. Era bem diferente daquelas que eu estava acostumado a comer ou chupar, como maçã, caqui, laranja, dentre outras. A sua fruta parece um emaranhado retorcido de minhocas, é comestível e tem um sabor único. Pode ser comida quando já está maturada, com consistência firme e intumescida, tendo sabor misto, leitoso, adocicado e um pouco marrento. O ponto certo é quando a pele começa a escurecer e murchar. Mas o melhor é quando está bem murcha e enrugada, com um leve odor de podridão. O sabor em nada lembra a fruta podre e oferece um adocicado marcante, inesquecível.

Talvez tenha sido a primeira coisa que eu perguntei a uveira.

           – Por que a semente fica dependurada fora da fruta?

           – O que você pensa ser a fruta não é o meu fruto, respondeu a uveira.

           – Então o que a gente come não é o fruto?

           – Não. O fruto está ali fora dependurado, junto com a semente.

            – O que é então, a parte que a gente come?

            – É o pedúnculo, ou talo que antes sustentava a flor e que, depois de sua queda, intumesceu com o acúmulo de açúcar e outros produtos fabricados durante a fotossíntese.

            – Então é por isso que é mais gostoso e mais doce, quando a fruta está murchando, porque o talo fica recebendo açúcar por mais tempo.

            – Certíssimo, meu amigo, elogiou-me minha confidente e mestre.

            – E existem outras frutas desse tipo?

            – Sim. O caju também é um talo que cresceu bastante. O fruto é aquele dependurado, que contém a semente, ou a bem conhecida castanha do caju.

            – Se chamam você de uva japonesa, é porque você veio do Japão?

            – Sim. Sou classificada dentro da família botânica denominada ramnáceas e tenho parentes de diversos tipos de plantas, entre árvores, arbustos, ervas e cipós, ensinou-me a amiga.

            – E de que parte do Japão vem você?

            – Na verdade, tenho origem na China e no Japão. Nesses países, meus parentes existem em regiões bem restritas, chamadas endêmicas. No Japão, ocorrem somente numa pequena área da ilha conhecida como Hokkaido, bem ao norte.

            – E como você veio parar aqui?

            – Alguém deve ter trazido algumas sementes e plantado no Brasil, talvez em São Paulo ou Paraná. Como minhas sementes são pequenas podem voar para longe junto com o vento. Os pássaros também gostam de comer a minha fruta e acabam levando junto a semente. Dizem os ambientalistas que sou uma invasora. Eu não tenho culpa se me trouxeram para cá. É da natureza de todo ser cuidar da ampliação da prole para evitar a extinção, finalizou com sabedoria a minha companheira.

O meu pé de uva japonesa - parte 3

Os ensinamentos da uveira

Quando tive esta conversa com a uveira era inverno. Todas as suas folhas haviam caído. Isso aconteceu depois de passar por uma mudança de cor muito bonita, vindo do verde escuro, tornando-se cada vez mais claro, indo depois para a coloração amarela e em seguida a avermelhada, pouco antes de murchar e cair. A árvore estava completamente nua de folhas. Estas, adornavam o chão com seu multicolorido, formando um tapete macio em todo o entorno da árvore. Balançar nesse ambiente acolhedor e sentindo no rosto o calor adocicado do sol de inverno, atravessando a cortina transparente formada pelas frutas nos galhos sem folhas, despertava inspiração para outras confidências com a minha uva japonesa.

            – Por que você perde a folhagem no inverno?

            – É característica da minha espécie e de outros vegetais também, conhecidos como plantas caducifólias. No Brasil, são os ipês, o jacarandá mimoso, a sibipiruna entre outras, foi a resposta.

            – O que causa a perda da folha?

            – É um mecanismo de defesa, para diminuir a perda de água pela transpiração, que é feita pelas folhas.

            – Isso é útil para o ser humano?

            – Sim, em arborização de cidades nas quais o inverno é mais rigoroso é importante que as árvores percam a folhagem para deixar passar o calor do sol nas ruas, praças e jardins, ensinou-me a amiga. 

De vez em quando, o meu diálogo com a uveira era acompanhado da degustação de suas frutas, sentado a cavalo num de seus ramos baixos e mirando a redondeza, numa ampla visão bem acima daquela costumeira vista através da cerca do quintal.

A companhia da uveira ficou completa quando ganhei um binóculo de presente. Ficava horas conversando com a árvore, sondando tudo que estava ao alcance da nova perspectiva. Detalhes nunca antes percebidos do pátio de toras da serraria, o seu interior com o maquinário pesado, a linha férrea, a estação ferroviária, o movimento de veículos e pessoas nas ruas, enfim, era para mim um novo universo que ali estava para eu pesquisar mais tarde, quando estivesse livre.

Foi assim que descobri como era a movimentação de uma serraria, desde a chegada de toras em caminhão até a secagem da madeira beneficiada. A retirada dos troncos de madeira do caminhão transportador era algo assustador. Os operários, sem luvas e outros acessórios de proteção, usavam a sua própria força física para o trabalho, fazendo as enormes toras rolarem do caminhão até o chão por sobre pranchas de madeira grossa.

Usando o binóculo pude enxergar a estupidez de algumas pessoas que atravessavam o campo de trilhos da estação ferroviária, passando entre os vagões dos trens. Subiam sobre o engate entre um vagão e outro e pulavam para o lado oposto e prosseguiam ao próximo obstáculo. Outros, simplesmente atravessavam os vagões por baixo, pelo vão entre os eixos das rodas.

O meu pé de uva japonesa - conclusão

À busca da origem da uveira

Os derradeiros momentos com a minha companheira de momentos solitários foram desfrutados durante o verão, aproveitando a deliciosa sombra que ela criava com sua ampla copa repleta de folhas viçosas, que tremulavam com a passagem do vento. Eu já havia pesquisado tudo até aonde o binóculo podia me levar. Mesmo o balanço, com suas cordas bastante corroídas pelo uso, já não oferecia os movimentos audaciosos dos quais eu tanto gostava. Estava apenas sentado no chão, recostado na parte baixa do tronco da uveira, pensando no fato de que, dali a algum tempo, não mais teria a sua importante e didática companhia. Por algum motivo, a família iria mudar de residência.

            – Por que as pessoas se mudam de lugar?

            – Você deve se dar por feliz, pois tem pernas e é livre para se movimentar para onde quiser e puder. Veja, se começar a chover, você pode pegar o triciclo e correr para a caverna e se abrigar da chuva, não é verdade? O mesmo acontece com os pássaros, que podem voar para onde quiserem e puderem e abrigar-se do sol ardente e da chuva fria, comentou a uveira.

            – Mas, e você, que não tem pernas nem asas, não tem como se proteger, não é?

            – Correto. Por isso, os vegetais foram adaptados a se beneficiar da chuva, do calor, do frio e do vento, que são necessários à sua sobrevivência, e nem precisam sair em busca deles. Ao cair, a chuva traz consigo os nutrientes que estão na atmosfera. A água da chuva penetra fundo no solo, onde estão minhas raízes. É por meio delas que eu bebo a água do solo com os nutrientes e os levo até as folhas e frutos, onde acontecem os processos químicos da minha alimentação. A luz e o calor fornecidos pelo sol são essenciais para os processos da fotossíntese, que forma os açúcares, da qual já lhe falei. A temperatura do ar e o vento controlam a transpiração, que refresca a superfície das minhas folhas, evitando que sejam danificadas, ensinou-me a minha companheira.

            – E o que acontece quando não chove ou então, faz frio, como a geada?

            – As mudanças do clima são cíclicas e, ao longo da evolução, os vegetais foram adaptando-se em sua morfologia e fisiologia. As plantas que vivem em climas muito frios, a maioria tem folhas muito estreitas, em formato de agulhas, igual à dos pinus, que é para aguentar as baixas temperaturas e não deixar acumular a neve. As que tem folhas mais largas, elas as perdem durante o inverno, pelos mesmos motivos. Em épocas que não chove por longo período, elas também derrubam as folhas, para diminuir a transpiração, economizando assim a água. É dessa forma que as plantas, que foram as pioneiras a povoar o planeta e, por muito tempo, as únicas formas de vida, conseguiram sobreviver às enormes transformações climáticas ocorridas no decorrer de milhões de anos. O que está provocando a extinção de muitas espécies, tanto vegetais como animais, é a ação predatória do ser humano. Assim concluiu a sábia uveira.

            – Minha grande companheira e mestre de vida. Foi bom ter convivido com você por estes anos, em que aprendi os valores que irão moldar minha pessoa. Espero que tenha uma longa vida, distribuindo frutas e frutos.

Assim foi a rápida despedida.

Depois, eu soube que a propriedade tinha sido limpa para dar lugar a um empreendimento comercial. Nessa operação, o meu pé de uva japonesa foi fatalmente derrubado e, por ironia do destino, seu tronco transformado em tábuas na mesma serraria que juntos avistámos.

Mais de 40 anos se passaram, quando me reencontrei com a uva japonesa. Desta vez, em sua origem, numa fazenda da ilha de Hokkaido. Numa área onde permanecem inúmeras árvores da espécie, aproximei-me de uma delas e em meio aos pensamentos, lembrei-me daquela confidente da infância e perguntei:

            – Será que alguma de vocês não seria um parente longínquo do meu pé de uva japonesa?

            – Com certeza, Senhor! Somos descendentes de uma só árvore que existiu no início dos tempos e que deu origem a todas as demais. Assim, o seu pé de uva japonesa foi parente direto de todas nós deste bosque.

Eu tinha ido em busca de meus ancestrais e, para a minha particular felicidade, encontrei os ancestrais do meu pé de uva japonesa.

Ouro Verde da minha infância: parte 2

Operação Cafezinho

Caterina Balsano Gaioski
Escritora e poeta premiada
Membro da Academia de Letras, Artes e Ciências do Centro-Sul do Paraná
Membro da União Brasileira de Trovadores, UBT, seção de Irati

Fazenda de café, arredores de Londrina.

Uma gigantesca construção típica das fazendas do norte do Paraná, feita com madeira dura, avermelhada, que fazia aquela edificação, apesar da sua rusticidade, ficar muito bonita.

Pudera!

Era, nada mais, nada menos, que um grande depósito de café, todo construído com a legitima peroba do Paraná. Anexo, um também gigantesco terreiro, onde o café era colocado para secar.

Olhares curiosos, entre admirados e assustados, observavam o vai e vem dos empregados da fazenda que, de um lado ensacavam o café já seco e do outro lado, despejavam no terreiro, o café que iria secar.

Café em coco, Sacas e mais sacas, empilhadas no depósito que chamavam de “tulha”.

Algumas sacas, carregadas diretamente na camionete do patrão, eram levadas ao moinho para descascar e serviriam para o consumo da fazenda. O grosso da produção, ficaria armazenado, para posteriormente ser comercializado

O café despejado no terreiro era espalhado com grandes rodos de madeira e, a princípio, parecia brincadeira de criança. Mas, de brincadeira nada tinha. Os trabalhadores, debaixo do sol escaldante, percorriam quilômetros diários entre o vai e vem, para espalhar e remexer os grãos. No fim do dia, o peso dos rodos que, a princípio, pareciam leves, tornava-se pesado e, se não fosse a dura casca do café em coco, com certeza, o produto seria salgado pelo suor daquela gente.

Figura 1: Secagem do café recém colhido.
Imagem: Shulawaining, by Pixabay.

Quando o café voltava do moinho, hora de torrar.

Usava-se uma máquina doméstica que apresentava três partes, todas metálicas: a principal, de forma esférica de tamanho variado entre 2 a 6 litros, onde eram inseridos os grãos ainda crus através de uma janelinha com tampa. A esfera era acoplada a um eixo com manivela, que a fazia girar dentro de um círculo fixo que poderia ficar apoiado sobre o fogão a lenha.

Figura 2: Máquina manual de torrar café do tipo caseiro sobre fogão a lenha.
Montagem sobre imagem de Michael Treu, by Pixabay.

Durante algum tempo, uma das mulheres da casa, girava a manivela da torradeira colocada sobre o fogo e, daquele rosto, também escorria abundante suor.

Finalmente no ponto, o café torrado era despejado sobre uma mesa de madeira e abafado com um alvo pano de algodão, para que não perdesse o seu aroma.

Figura 3: Café já devidamente torrado.
Imagem: Couleur, by Pixabay.

Quando frio, entrava em ação o serviço de moagem. Num moedor manual, este serviço era disputado pelas crianças da casa, donas dos olhares curiosos do começo deste texto.

Água fervente, pó de café no saco de algodão, encaixado num tripé e lá vinha ele, o líquido pretinho, exalando seu aroma, a escorrer dentro de um bule esmaltado e decorado.

Figura 4: Café preparado usando coador de pano.
Imagem: M.T. Inoue, 2016.

Elixir dos deuses!

Mantinha o mesmo sabor, quer servido em canecas esmaltadas para todos da fazenda, quer nas finas louças dos patrões, ou nas delicadas porcelanas, usadas apenas para os visitantes ilustres.

Aromas e sabores gravados nas lembranças da minha tenra infância.

A menina atropelada pelo trem

Como qualquer urbe, a cidade de Londrina foi construída e desenvolveu-se sobre um espigão. Este espigão é formado no sentido leste a oeste ao longo da antiga Avenida Paraná, a via principal. No sentido ao sul dela, estende-se um planalto até a região do cemitério central. No sentido ao norte, abrupta um declive passando pela região da antiga rodoviária e estação ferroviária, estendendo-se até a Rodovia BR 369 ou Avenida Brasília.

O ponto nevrálgico da cidade sempre foi a região da rodoviária, ponto de entrada e saída de passageiros, urbanos ou visitantes. Ali estão os hotéis mais simples, os bares e o comércio diversificado. A via principal da região é a Rua Sergipe. Cinemas e outros estabelecimentos mais requintados ficavam na Paraná, apenas a duas quadras ao sul.

Entre a rodoviária e a estação ferroviária, sempre existiu um largo espaço urbanizado vazio, ocupando dois hectares. Circos itinerantes, parque de diversões temporários, festejos maiores, como quermesses, usavam aquele espaço para as atividades.

Figura 1: Mapa que mostra a localização da área da antiga Estação Ferroviária de Londrina, na década de 1950. Imagem adaptada do Google Maps

Considerando a linha férrea e a própria estação, o espaço de domínio da antiga Rede Viação Paraná-Santa Catarina abrangia cerca de 12 hectares, sendo mais comprido no sentido leste a oeste, por onde percorria a ferrovia. Este espaço era necessário, pois a estação também servia como ponto de entroncamento, manobra, carga e descarga de bens. Assim, era um emaranhado complexo de linhas de ferro ocupando todo o espaço. A consequência de tudo, era a interrupção de qualquer tipo de tráfego da Rua Rio Grande do Norte para a Rua Benjamin Constant, entre a Rua Duque de Caxias e a Rua Pernambuco. Era um bloco fechado, com trens e linhas de ferro e estação.

As pessoas que residiam ao norte da Rio Grande do Norte e precisavam subir ao centro nevrálgico da cidade, não gostavam de contornar o espaço da estação, pela Pernambuco ou pela Duque de Caxias. Via de regra, enfrentavam o desafio de passar pelas linhas de ferro e atravessar os vagões estacionados, passando por entre estes ou por baixo, entre as rodas. Para os mais experientes e habituados, o saber sobre a movimentação rotineira dos trens era fundamental para uma travessia “segura”.

Mas, estava chovendo naquele trágico dia do acidente.

Uma jovem ia para o seu serviço após o almoço e tomou o atalho pela linha férrea. Acho que não conhecia muito bem a rotina das manobras dos trens. Teve que atravessar uma composição, subindo pelo espaço entre os vagões. Eis que, de repente, a composição se move fazendo a menina se desequilibrar e por pouco que não cai e é atropelada pelo vagão. Nos movimentos para se equilibrar, deixa o guarda-chuva cair e este é levado pelo vento caindo sobre o trilho mais próximo.

Segundos após a surpresa inesperada, a menina, que era pura adrenalina, consegue pular do vagão que havia começado a se movimentar, sem deixar, no entanto, de se machucar nas pedras, o que a deixa mancando.

Nesse interim, a chuva torrencial havia aumentado, afetando também o psicológico da jovem. Preocupada em se proteger, o primeiro pensamento foi pegar o guarda-chuva que estava sobre o trilho vizinho. Foi um ato instintivo e instantâneo, com a forte chuva caindo sobre seu corpo, o que certamente a impediu de escutar a locomotiva que se aproximava velozmente.

Não houve tempo da máquina frear e a jovem foi arrastada por dezenas de metros, retalhando completamente o seu pequeno corpo.

O acidente foi um marco histórico nas tragédias de Londrina.

Pouco tempo depois, foi construída uma longa passarela que passava sobre as principais linhas de ferro da estação.

Ainda assim, os mais apressadinhos teimavam em desafiar a travessia através dos vagões e por sobre os trilhos.

Atualmente, a linha férrea foi realocada para mais distante do centro, na região periférica ao norte da cidade.

A estação ferroviária, manteve sua arquitetura original e abriga hoje o Museu Histórico de Londrina.

Quando se era criança e pré-adolescente e não recebia orientação em alguns assuntos que, para os mais conservadores ainda permanecem como tabus, por exemplo tudo relacionado à procriação e sexo, o jeito era buscar, erradamente, informações fora do ambiente familiar e escolar.

Lembro-me muito bem da minha primeira ereção ainda em idade muito jovem, quando tinha uns seis anos.

Em casa tínhamos o banho de imersão, o ofuro, aquecido por serpentina externa a carvão pela qual circulava a água, o que permitia a manutenção constante de uma temperatura agradável. Um dos acessórios importantes no banho de ofuro, é o tenuguy, uma pequena toalha em tecido muito fino que se usa para espalhar lascivamente a água pelas partes não imersas, como o pescoço, ombros e cabeça. É muito comum ver em filmes japoneses as pessoas batendo papo no banho, com a tal esta toalhinha sobre a cabeça como se fosse um boné.

Eu acabara de me lavar e estava dentro do tanque deliciando a tépida água do ofuro. Não sei se foi pela temperatura ou se eu estava a brincar com o pinto, que acabou ficando duro. Era uma sensação agradável e, em meio a movimentação e pesquisa curiosa, o tenuguy acabou depositando-se sobre o membro em riste. Continuando a pesquisar, descobri um movimento com o corpo simulando um submarino a emergir e o pinto, à guisa de periscópio da torre de comando, encoberto pelo tenuguy. Ao emergir, a toalha abraçava o “periscópio” em seu todo e ao escorrer a água, a toalha o apertava deliciosamente. Foi uma sensação indescritível.

Naquela idade, não conhecia e nem sentia qualquer indício de êxtase.

Sai do banho, me enxuguei e me vesti. E o pinto continuava duro.

Ao chegar na sala, onde todos estavam preparados para jantar, fiz um comentário ingênuo e infantil.

            – O meu pinto está duro e está até apertando a calça.

Não houve comentário, apenas algum sorriso amarelo, como se tudo estivesse normal e que minha fala estava dentro do contexto e não merecia resposta.

Assim, cresci e aprendi as coisas pesquisando por conta própria ou aprendendo com algum amigo de infância.

Eu já era pré-adolescente e conhecia o gozo venéreo, ainda que incipiente.

Nestas circunstâncias, vim a conhecer o Super Matozóide.

Num pequeno grupo de amigos, estávamos folheando um exemplar da revista “O Cruzeiro”. Era um periódico que perdurou por anos a fio, como único veículo de notícias e informações em nível nacional. A grande matéria daquela edição explicava a existência do espermatozoide, com fotografias obtidas por microscópio e descrevendo em detalhes suas características e funções.

Ficamos confabulando sobre a matéria e concluímos que o tal do Super Matozóide é que era responsável pela procriação e que compunha o líquido expelido pelo pinto no momento da cópula.

A imaginação leva a cenários inimagináveis.

Como seria possível um líquido que, para nós garotos pré-adolescentes, era apenas uma ou outra gotícula, formar um bebê?

As fotos da revista mostravam os Super Matozóides centenas de vezes ampliados. Na realidade, eram invisíveis a olho nu. Então, quantos Super Matozóides precisariam ser acumulados e onde seriam depositados, no corpo de uma mulher, para ir formando o futuro bebê? Eles deveriam mesmo ser super poderosos para conseguir aquele prodígio.

É por isso que tinham o nome de Super Matozóide.

Dona Cidinha ou A primeira paixão

Quem não se lembra do primeiro dia de aula?

O ano era 1954. Eu iria completar oito anos de idade em setembro.

Não me lembro se alguém me levou ou eu fui sozinho. O 3º Grupo Escolar “Evaristo da Veiga” ficava na esquina da Rua Mato Grosso com a Rua Goiás, a nove quadras da casa onde eu morava, na esquina das atuais Rua Chile com a Avenida Juscelino Kubitschek de Oliveira.

Figura 1: À esquerda, montagem ilustrando o antigo 3º Grupo Escolar. À direita, painel azulejado com a atual denominação.
Foto e arte: M.T. Inoue, 2013

Em março, o final de verão em Londrina ainda era bastante quente. O tempo estava bom e o sol brilhava para abrilhantar o meu primeiro dia aula.

A escola foi construída em madeira, com piso elevado do solo, apresentando um amplo e profundo porão, possível de se entrar e ficar de pé, facilmente. O prédio era comprido no sentido da Mato Grosso, com salas de aula em ambas as fachadas, frontal e traseira, com varandas. Um amplo pátio na frente do prédio servia como local para os alunos se perfilarem e entoar os hinos todos os dias, antes do início das aulas. Servia também para as aulas de educação física e jogos coletivos. Pelo beiral da varanda frontal é que era tocado o sino, sempre por algum aluno, avisando que chegara a hora de se perfilar para o hino. Entoava-se o Hino Nacional Brasileiro, Hino da Independência, Hino do Paraná e Hino da Bandeira, que eu me lembro. Cada dia um hino. Recordo-me de ter sido convocado umas poucas vezes para a tarefa. Não que eu fosse algum expoente, mas os escolhidos eram os melhores alunos dos diferentes níveis. Como sempre fui miúdo, parecia eu ser badalado pelo pesado sino.

Minha sala do primeiro ano ficava na parte dos fundos. Não eram muitos alunos por sala, talvez uns 20. Chamávamos as professoras por Dona. A minha primeira professora foi a Dona Maria. Mulher enorme e robusta, cabelos negros e rosto arredondado. A sua voz era potente que nem precisava se esforçar para chamar a atenção de algum aluno.

Ao chegar à sala de aula, a primeira coisa que fez, após a chamada nominal a que atendíamos com um “Presente!”, ela escreveu na lousa com letras bem grandes:

             “A pata nada.”

            – Classe, leiam pra mim o que está na lousa.

A classe inteira, exceto eu, entoou em uníssono:

            – A pata nada.

Eu consegui apenas dizer:

            – A

Era a única letra que eu conhecia, até então.

Que vergonha! A partir daquele momento, decidi que nunca mais iria me submeter a tamanho vexame por falta de conhecimento.

Figura 2: Sorriso maroto do eterno “babyface”, na mais tradicional foto de escola.

O tempo passou. Eu também passei, garbosamente, para o segundo ano primário.

Agora, a classe ocupava a sala mais à direita da fachada da frente do prédio, onde a altura do porão era mais alta.

A minha professora foi a Dona Cidinha. Diminutivo no nome, certamente devido ao seu porte esbelto e baixo, tipo “mignon”. Jovem ainda, talvez casada, de rosto estreito, olhos negros e pequenos e cabelos meio crespos, penteados para trás, combinando com o formato do rosto. Lábios finos, sempre bem vistosos com o uso de um batom de cor vermelho vivo. Elegante, por baixo de seu guarda-pó impecável, estava sempre de vestido tradicional, um palmo abaixo do joelho. Acho que por isso, até hoje, considero mulher que é mulher, usa vestido. Era bonita e seu semblante revelava uma mulher firme e segura de si, com total domínio, não só da matéria como também de suas responsabilidades como educadora.

A Dona Cidinha foi a minha primeira paixão. A alegria era ir à escola para assistir à sua aula. Quantas vezes ela me flagrou olhando-a deslumbrado. Eu disfarçava rapidamente, mas depois de um tempo, lá estava eu de novo, babando e abraçando-a com os olhos. Ela também disfarçava, fazia que não havia percebido nada ou que minha paquera não a afetava. Volta e meia, eu a chamava para me explicar alguma coisa qualquer, apenas com o fito de vê-la mais de perto. Foi nessa época que já começava a se evidenciar o meu caráter de exibido e bagunceiro. Foram alguns puxões de orelha e reguadas na cabeça que ganhei da Dona Cidinha. Mas o importante era ela estar do meu lado. Outras vezes, ficava de castigo no canto da sala, ao lado do quadro negro. Quantas vezes o meu castigo era escrever 100 vezes uma determinada frase, do tipo “Eu devo me comportar na sala de aula”. Tal castigo era domiciliar. Para diminuir o trabalho de escrever repetidamente a mesma frase, eu amarrava dois lápis firmemente, formando um duplo, diminuindo pela metade o trabalho e o tempo para completar o castigo.

Final do ano letivo, liberado garbosamente para o terceiro ano primário, derradeiros momentos daquela paixonite infantil.

A Rádio Paiquerê dos anos 60

Aos domingos, o pequeno auditório ficava lotado de jovens adolescentes no programa de calouros “Festival do Rock”. O programa era comandado pelo radialista Jurandir Panza, conhecido mais como “J-Panza”. Ainda jovem, era um profissional do rádio de primeira ordem, exalando simpatia que cativava a todos que o encontravam.

A emissora ficava na Rua Minas Gerais, de frente para a Praça Willie Davids, bem no centro de Londrina. Funcionando no segundo piso, era preciso subir uma grande escadaria. No final dela havia um corredor em L, sendo que pelo lado mais curto já se adentrava ao auditório bem arejado, tendo amplas janelas com vidros de correr ocupando toda a lateral direita. O palco ficava ao fundo, com tamanho suficiente para apresentação de uma pequena banda. A capacidade do auditório não chegava a 50 pessoas sentadas. O lado esquerdo do corredor dava acesso aos demais espaços da emissora.

Certa vez, ao acompanhar um amigo técnico em eletrônica, tive a oportunidade de conhecer a parte interna da rádio onde ficavam os equipamentos e sala de audição com janela acústica. Na ocasião, aproveitei para aprender como funciona os bastidores de uma estação de rádio e também conversar com alguns radialistas.

Vivíamos então a era do “Rock and Roll” que marcou uma reviravolta em escala planetária!

Bill Haley e seus Cometas, Elvis Presley e Little Richard eram os que lideravam as paradas de sucesso. Nessa época, a televisão ainda não havia chegado à Londrina.

Foi nesse cenário que J-Panza realizou um concurso para eleição do “Rei do Rock”. Londrinense, é claro! O invólucro era o seu programa de domingo na Rádio Paiquerê, na época, somente transmitido em ondas médias. Houve várias inscrições de candidatos, sem se levar em consideração o desempenho como cantor e sim, pelo escore obtido entre os adeptos de cada candidato. O escore era pontuado pela venda de votos por meio de carnê impresso, com o nome do candidato. Não me lembro do valor de cada bilhete, mas não devia ser algo caro. O processo durou várias semanas, sendo o escore contabilizado e atualizado a cada audição do “Festival do Rock”.

Já se aproximando o encerramento do processo de venda de votos, ficaram para a disputa final apenas dois candidatos: o Jonas e o Marino.

Eu era amigo de ambos.

Jonas era colega de classe no Colégio Estadual “Vicente Rijo”, ainda situado à Rua São Salvador. Na época, eu estava na quarta série do ginásio (equivalente à oitava série do atual nível fundamental). Mulherengo e envolvido com cigarro e talvez, outros materiais, vivia rodeado de meninas e outros rapazes de classe média a média alta. Era boa gente e desconheço algo que pudesse desaboná-lo. Um fato que me marcou, foi ele demonstrar como tragar a fumaça de fósforo. Umedecia o palito de fósforo com saliva e punha para riscar na caixa, bem próximo das narinas. O procedimento propiciava a queima mais lenta da cabeça do palito, produzindo uma quantidade de fumaça maior que a normal. Puxava a fumaça com as narinas e a exalava pela boca.

Marino era companheiro de brincadeiras. Morava na mesma quadra da minha casa, à Rua Guaranis, na atual Vila Ziober. Ele não estudava, pois ajudava o pai em seu serviço. Não me lembro bem em que o pai dele trabalhava. Parecia uma família de classe média. Com seu pai, aprendi a extrair perfume de rosas. Em formas metálicas retangulares, ele colocava uma fina camada de cera derretida. Acho que podia ser parafina, não sei. Sobre esta película, deitava as pétalas, uma a uma, bem juntas uma da outra, mas apenas numa única camada. Deixava por alguns dias. A essência era retirada pela película. Passado o tempo necessário, punha a película para derreter numa espécie de destilador. O vapor contendo a essência era recolhido por um sistema de serpentina resfriada, de cuja ponta pingava, gota a gota, a essência do perfume concentrado de rosas.

A semana que antecedeu a audição em que seria conhecido o “Rei do Rock”, foi um corre-corre à busca de votos para os candidatos, cada um apostando todas as suas fichas para ganhar o certame. A disputa estava bem equilibrada, cada qual arregimentando seus fãs mesmo na última hora.

A audição teve em sua primeira parte, a apresentação de candidatos a calouro, cantando ou fazendo playback, o que levava o auditório lotado à loucura, com os espectadores acompanhando as músicas com gritos e palmas compassadas e batendo os pés no assoalho. Lembro-me bem da apresentação do Tique-Taque, assim era o apelido do cantor, fazendo playback de “Long Tall Sally”, de Little Richard. Outra apresentação inesquecível foi a da Nice Tsubaki, interpretando “Banho de Lua”, versão brasileira por Cely Campello do sucesso de Neil Sedaka. Nem imaginava que aquela garota viria a se tornar minha cunhada num longínquo futuro.

Terminada a parte da seleção de calouros, era chegada a tão esperada hora de se saber quem seria o novo “Rei do Rock” daquele ano. Como as prévias indicavam um provável empate na venda de votos, cada qual tinha um ás na manga da camisa, para um eventual uso. Dito e feito. Houve empate técnico na contagem dos votos pela venda de carnês.

Ato contínuo, cada um dos dois concorrentes finalistas entrega ao apresentador o seu cheque destinado a rebater os votos na última contagem. A torcida maior do auditório estava para o Jonas, no que o Marino usou da tática de stablishment, em que predomina o poder, no caso presente, o financeiro. Com o aporte ajudado pelo seu pai, os votos comprados com cheque ultrapassaram com larga margem de folga os votos do Jonas.

Consagrado assim, Marino subiu ao palco para receber os aplausos e a faixa, ricamente confeccionada, exibindo os dizeres “Rei do Rock – 1960 – Rádio Paiquerê”.

Suas palavras foram bem acanhadas, de um jovem sem instrução para a idade, mas que conseguiu o seu intento usando a estratégia do poder financeiro.

O crime do Cine Municipal - parte 1

O ano é 1960.

Rapidamente, Giuseppe subiu na camioneta que já estava de prontidão na rua lateral próxima do Cine Municipal. Mais que depressa, Firminio Maguetta, capanga e mão direita de Giuseppe, acelerou em disparada rumo à direção sul da cidade de Londrina.

Giuseppe Lanzo, homem culto e de pouca fala, liderava a jogatina em diversos pontos da cidade, ditos como “clubes” na linguagem dos frequentadores. Os clubes, que funcionavam a partir das 22 horas e encerrando quando o dia amanhecia, eram o reduto dos viciados em jogos, a maioria, de baralho. Os profissionais atuavam como gerentes dos clubes, todos alinhados sob a orientação direta de Giuseppe. A maioria dos frequentadores era homens da sociedade que tinham por hábito arriscar suas economias na ilusão de se tornarem ricos numa noite de grande boa sorte. Um desses jogadores era Baretta Carpaccio, viciado de longa data. Comerciante bem sucedido, era solteiro e pessoa de difícil relacionamento por ser um “pavio curto”. Nunca se casou porque era mulherengo e gostava da companhia de meninas de programa, das quais tinha uma boa coleção.

No caminho aonde a camioneta de Giuseppe se dirigia ficava a casa em que morava o comerciante viciado.

Giuseppe relembrou os antecedentes que o levaram ao drástico desfecho. Aquele jogador amador de índole estourada, embora sendo frequentador assíduo do clube, não havia aprendido a malícia da jogatina ao ponto de se tornar um profissional. Mas, em consideração à sua assiduidade, as dívidas resultantes de jogos perdidos foram sendo acumuladas num caderno de anotação. A dívida já beirava os 500 mil cruzeiros quando Baretta foi cobrado pela primeira vez. A negociata envolveu um pouco de dinheiro e a oferta dos serviços  de  suas a alguns membros do clube, incluindo o Giuseppe. Não obstante, a dívida continuava a se avolumar, ao ponto de atingir a casa dos milhões de cruzeiros. Cobrado, insistiu na recusar a fazer qualquer pagamento em espécie. Este foi o estopim para que Giuseppe decidisse cobrar a dívida em sangue.

Planejou detalhadamente o intento com a ajuda de Firminio. Este encarregou-se de preparar o local onde se daria o desfecho, numa propriedade rural de Giuseppe localizada nos arredores ao sul da cidade, às margens do Ribeirão Três Bocas. Outros três capangas foram designados para, no dia marcado, assaltar e imobilizar Baretta em sua casa. O dia marcado era um domingo, quando o comerciante estaria descansando em sua residência.

Naquele domingo, o Cine Municipal estava exibindo o filme “Psicose”, de Alfred Hitchcock, em quatro sessões corridas a partir das 14 horas. Sendo o dia de estreia do filme, o afluxo de espectadores era grande, com acúmulo de pessoas na frente do cinema. Era o cenário perfeito para Giuseppe consagrar o seu álibi. Escolhera a sessão das 16 horas. Antes de adentrar, certificou-se de que a sua pessoa fosse devidamente notada pela maioria dos que estavam tentando conseguir um ingresso. Sendo uma figura bem conhecida na sociedade, não foi difícil registrar publicamente a sua entrada no cinema. Houve até um repórter que o fotografou, para o que Giuseppe até fez pose. Sendo amigo e colega de jogatina do gerente do estabelecimento, havia combinado de ter a última fileira de poltronas inteiramente bloqueada. Por ser a mais próxima da saída lateral era invisível ao restante da plateia a qualquer movimentação.

O crime do Cine Municipal - conclusão

Giuseppe esperou tempo suficiente para cessar o burburinho na entrada do cinema e saiu sorrateiramente pela porta lateral, cuidando para não ser notado. Após a porta, havia um longo corredor que saia diretamente na rua, onde Firminio o aguardava com a camioneta.

Em poucos minutos, chegaram à casa do Baretta. Os capangas já o tinham amarrado e aguardavam a chegada do mandante. Foi apresentado a Giuseppe, que se apressou em esclarecer uma vez mais sobre a dívida de jogo.

            – Então Baretta, vamos chegar a um acordo?

            – Eu não estou afim de ajustar nada, não, Giuseppe.

            – Vou dar mais uma chance. Pode vender a sua propriedade e saldar a dívida.

            – Não quero saber de nada. E não vou pagar nada. Tudo é dinheiro sujo de jogo e vou denunciar você pra polícia.

            – Já que é assim, vou fazer você pagar com sangue, seu vigarista.

Baretta foi amordaçado e colocado na carroceria da camioneta e dois capangas subiram para acompanhar o comerciante. Rumaram diretamente para o sítio de Giuseppe, onde se daria o desfecho.

No que chegaram ao local, sem mais delongas, Giuseppe apontou seu revólver calibre 38 bem na testa do Baretta e disparou um primeiro tiro. Não houve nem tempo do Baretta se arrepender do que havia dito antes e caiu para trás como um fardo, morto. Giuseppe disparou mais três tiros no peito do homem caído para confirmar o ato, definitivamente.

Em seguida, todos apressaram-se em levar o cadáver até a beira do ribeirão, onde já tinham deixado uma debulhadora de milho bem próxima da margem. O corpo foi retalhado ali mesmo, no chão, com uso de machado para destrinchar os membros e outras partes com ossos, e facões para retalhar em partes menores, em tamanho o suficiente para abastecer a boca da debulhadora. O mais difícil foi a cabeça, que teve de ser esmagada com o machado. Conforme as partes iam sendo esmigalhadas pela máquina, os homens recolhiam numa bacia e jogavam no ribeirão. Naquela parte da propriedade, a água era profunda. Terminado o serviço, jogaram a debulhadora no ribeirão, que ficou completamente submersa. Apressadamente, limparam todo o terreno onde houvesse algum respingo de sangue ou carne, jogando tudo na água. Certificando-se que tudo estava limpo, adentraram os veículos e rumaram de volta à cidade.

Quando o carro de Giuseppe chegou à rua lateral do Cine Municipal já estava escuro, pois passava das 17:30. Tudo estava de acordo com o plano para que a chegada e reentrada dele pela lateral do cinema fosse tranquila com a certeza de não ser notado.

A sessão de “Psicose” terminou às 18:10.

Na saída do cinema, deliberadamente, Giuseppe mostrou-se ao público que saia da sala e também acenou escandalosamente para os que aguardavam a próxima sessão.

Por algum tempo mais, traíras e curimbatás continuaram a rodear a área cevada do ribeirão.

A concha quebrada

As travessuras na infância parecem ser uma característica inata.

Mesmo os animais domésticos são exímios fuçadores de traquinagens quando são jovens. Quantos chinelos, sapatos, meias, controle remoto e muitos outros aparelhos e coisas pequenas que sejam passíveis de se morder, rasgar e transportar por toda a casa são estragados por esses pequeninos infernais.

Entre os humanos, parece que os meninos são mais travessos do que as meninas. Na verdade, as travessuras femininas não aparecem tanto e talvez não sejam tão frequentes.

Eu costumava ser muito independente em meus folguedos. Sempre morando em casa térrea, a saída para o quintal e daí para a rua, era um pulo. Claro que, naquela época, a preocupação com segurança era praticamente inexistente. Fazendo uma média, cerca de dois terços do meu tempo livre do dia eu passava fora de casa: na rua; em algum terreno baldio brincando de herói da selva ou construindo labirintos com capim margoso; no campinho de futebol improvisado na rua ou num terreno vazio; quase tudo nas proximidades era sítio adequado ou adaptado para as brincadeiras com os amigos. De vez em quando, a extensão do parque de diversões tomava dimensões quilométricas. Um exemplo era quando resolvíamos pescar lambari com peneira.

Não somente a ocorrência de incidente ou acidente por meliante ou veículo era muito rara. Parece que as funções universais de proteção eram mais eficientes ou o próprio ambiente era mais seguro. Nas pescarias por exemplo, entrávamos direto na água dos córregos e percorríamos dezenas de metros peneirando as margens à cata de peixes. Quantas vezes apareciam cobras, rãs, aranhas d’água e outros bichos nas peneiras, além dos pequenos lambaris. No entanto, nunca aconteceu acidente que merecesse atenção. As cobras eram na maioria, as conhecidas como cobra d’água e cobra-cega, não peçonhentas. Os peixes peneirados não se destinavam para comer e sim, para colecionar em algum tipo de recipiente improvisado à guisa de aquário. Da coleta, trazíamos alguns vegetais aquáticos, para adornar e servir de abrigo e esconderijo dos peixinhos.

Foi numa dessas aventuras aquáticas que aconteceu o caso da concha quebrada.

A pescaria tinha sido exitosa, com muitos lambaris e vegetais que foram repartidos para todos os participantes, talvez uma meia de dúzia de piás entre 10 e 12 anos de idade. As nossas prendas eram transportadas em latas contendo água do córrego. Em casa não havia vasilhame em tamanho adequado para servir como aquário. Na minha inocência e criatividade, usei o tanque de lavar roupa como o novo lar dos lambaris pescados. Após preencher um terço da profundidade do tanque com água da torneira, os animais e plantas foram liberados na nova piscina. Coloquei também algumas pedras para simular cavernas onde os peixes podiam se esconder. Tudo isso feito na surdina, sem o conhecimento de ninguém da casa.

Quando a minha irmã soube da pescaria e do seu resultado, com a roupa, corpo e cabelos sujos e fedendo a água do córrego e principalmente, pelo mal uso do tanque de lavar roupa, não se fez de rogado e me surrou copiosamente com a ferramenta que tinha à mão, pois estava preparando a janta.

Talvez tenha sido no mundo a primeira surra com concha de sopa!

Era um artefato todo em alumínio, com a parte da concha fixa ao cabo por meio de rebites. Não me lembro da dor. O que me doeu foi ter que me livrar do quinhão da pescaria. Talvez a concha já estivesse com sua garantia vencida, pois ficou separada nas duas partes constituintes: o cabo e a concha propriamente dita, que rolou pelo quintal e assim parou a surra. Foi providencial pois, se assim não fosse, eu me lembraria da dor.

De tudo, danado como eu era, ainda tirei proveito. Com o cabo da concha esculpi uma espada de esgrima, fina e pontiaguda. Na empunhadura da espada instalei a concha que ficou funcionando como proteção à mão no caso de um golpe do adversário.

Eu era o único da redondeza a exibir uma quase legítima espada de esgrima!

Graças a surra com a concha!

Ouro Verde da minha infância: parte 3

A "neve" nos cafezais

Caterina Balsano Gaioski
Escritora e poeta premiada
Membro da Academia de Letras, Artes e Ciências do Centro-Sul do Paraná
Membro da União Brasileira de Trovadores, UBT, seção de Irati

Cafezais a perder de vista faziam parte das imensas fazendas do norte do Paraná, especificamente nos arredores de Londrina.

A exuberância daqueles “verdes mares’, ganhava pigmentos de outras cores, de acordo com as várias etapas, desde o plantio, até a colheita.

Não tenho conhecimento da forma de plantio das grandes áreas cafeeiras, mas creio que ainda no tempo da minha meninice, (década de 1950), tudo era feito manualmente, razão do emprego da mão de obra dos imigrantes das várias partes do mundo.

Meu pai fazia covas de 40x40x40cm, adubava com matéria orgânica, folhas e palhada de milho, colocava a mudinha do pé de café naquele buraco e cobria a cova com uma grade de madeira para fazer sombreamento a fim de proteger a plantinha do calor escaldante do norte do Paraná. Quando as mudas de uma determinada área plantada já estivessem em condições de suportar o calor, as grades eram retiradas e usadas em outra área de plantio. Era um processo artesanal, usado em pequenas áreas. Provavelmente, as grandes plantações tinham outros métodos, que eu não cheguei a conhecer, pois lembro dos cafezais já formados.

A época da floração dos cafezais, sempre foi um espetáculo da natureza.

Na primavera, os cafezais floriam e as flores brancas cobriam, quase que totalmente, o verde das ramagens. Era como se uma espessa camada de neve tivesse coberto as plantações. Para a grande maioria das crianças que nunca tinham visto neve de verdade, acreditavam realmente, que neve era aquilo, de tanto ouvirem a comparação daquela maravilha, com o fenômeno do frio.

Figura 1: Florada do cafeeiro.
Imagem: Portal Matas de Minas.

A florada durava pouco tempo, de três a quatro dias, logo as pétalas caíam e o verde voltava a predominar, até que surgissem os primeiros indícios da frutificação do café. Frutos, a princípio verdes, logo ganhavam outras colorações, até que, bolinhas vermelhas davam novamente um encantador colorido ao cafezal.

Figura 2: Três fases desde a florada até o amadurecimento dos frutos do cafeeiro.
Composição: M.T. Inoue, de imagens por Pixabay.

Com a chegada do inverno, o café, agora em coco, era colhido manualmente, por homens e mulheres, empregados das fazendas e levado para a secagem e armazenamento. (confira em Ouro Verde da Minha Infância, parte 2).

Trabalho duro. Do nascer ao pôr do sol, uma multidão de pessoas, distribuída entre as leiras do cafezal, puxando com as mãos os frutos para dentro de um cesto, que, quando cheio, seu conteúdo era despejado nos sacos e estes carregados em carroções, ou nas carretas dos tratores das fazendas mais modernas.

Assim, entre floradas e colheitas, sucediam-se as safras, fazendo a alegria dos fazendeiros e de todos os que dependiam da cultura do café, principal fonte econômica do Paraná naquela época, até que…

Julho de 1955. Um frio fora do comum atingiu grande parte do país, especialmente as regiões cafeeiras e uma forte geada prejudicou sensivelmente os cafezais. Muitos produtores anoiteceram em boa situação financeira e amanheceram pobres, levando muita gente ao desespero.

Os pequenos proprietários, não tinham recursos suficientes para recomeçar e desistiram do cultivo do café, migrando para outras atividades. Os grandes fazendeiros, puderam recuperar, ou refazer as plantações e continuar com essa, então ainda mais rentável, cultura.

Mas, as implacáveis intempéries, novamente entraram em ação em 1975, quando uma geada negra, desta vez pior que a dos vinte anos anteriores, dizimou cafezais inteiros, fazendo muitos produtores desistirem do café e dedicarem-se ao cultivo de algodão e principalmente, da soja.

Creio que este fato deu por encerrado o ciclo de ouro do café, dando início ao ciclo dourado da soja. 

A “neve” que, quando citada em forma de brincadeira pelas crianças das fazendas, fizera a alegria de várias gerações de “Barões do Café”, por ironia do destino, quando virou neve de verdade, causou a derrocada do ciclo  cafeeiro.

A primeira noite na casa da vizinha

O episódio aconteceu na época em que levei a surra com a concha de alumínio.

A nossa casa ficava nos fundos do terreno, com entrada independente e separada por uma cerca de balaústre. A casa era toda em madeira de peroba, pintada. Numa das paredes laterais da casa eu brincava de “pau-de-sebo”. A inspiração, é claro, veio do passeio à uma quermesse onde, entre outras brincadeiras e gincanas, havia o verdadeiro “pau-de-sebo”. Consistia num longo poste de madeira fixo seguramente ao chão, em cujo alto havia um círculo ou quadrado em madeira, onde os brindes estavam pendurados. Além de outros bens, dinheiro era fixado na ponta do poste. O nome da gincana advém de ser o poste todo besuntado com sebo de vaca, o que propicia uma superfície extremamente escorregadia. Muitas vezes, o candidato estava quase a pegar o brinde e escorregava poste abaixo.  

O meu “pau-de-sebo” era o encanamento d’água que ficava preso a parte externa da parede. Havia uma certa distância entre esta e o cano, o que propiciava espaço suficiente para pequenas mãos abraçarem o “pau”. O cano era besuntado com sebo no sentido de cima para baixo. Foram algumas horas de folguedo que passei brincando com o artefato improvisado. Dessa vez não levei “conchada”.

Na frente do terreno havia uma casa em alvenaria onde morava um casal jovem, ainda sem filhos. A esposa era professora numa escola da redondeza. O marido trabalhava em escritório de contabilidade. O relacionamento com a nossa família era amistoso, com frequente troca de favores.

Certa ocasião, o marido da vizinha viajou a serviço. Assim, a vizinha abordou a minha irmã sobre a possibilidade de eu pernoitar na casa dela. Nunca entendi direito a intenção ou desculpa de ela ter alegado medo em dormir sozinha. Alegações a parte, ficou acertado de eu pernoitar aquela noite em sua casa.

Como criança, eu não tinha maiores preocupações, pois estava acostumado a dormir sozinho. Na minha família, éramos apenas minha irmã, meu cunhado e minha sobrinha, que na época também dormia em seu próprio quarto.

No entanto, os adultos tem outras preocupações. A maior preocupação de minha irmã era de eu sujar o lençol da vizinha. Garoto travesso que não conhecia calçado durante os folguedos, correndo pra cima e pra baixo nas ruas e terrenos baldios, certamente tinha acumulado muito sujeira nos pés. Assim, até me ajudou num esmerado banho, caprichando para tirar todo o encardido de meus pés. 

Após a requintada higiene, jantamos e fui levado à casa da vizinha. Ela recebeu- nos com a aguardada cortesia e simpatia. Após o bate-papo de praxe, indicou o quarto onde eu iria dormir. Minha irmã colocou-me a deitar e cuidadosamente embrulhou meus pés com um lençol que trazia consigo. E ainda me fez recomendações típicas de mãe.

Na manhã seguinte, a vizinha acordou-me e convidou para tomar café junto, antes dela sair para o trabalho.

Assim foi a minha primeira noite na casa da vizinha.

O acidente de serraria 2

Fatos trágicos ficam gravados na memória mais fortemente, principalmente os ocorridos na infância e envolvendo amigos.

O acidente aconteceu na época e no bairro onde tomei o meu primeiro porre, aos oito anos de idade.

A casa onde morávamos era de esquina em final de rua. Atualmente, este local fica na esquina da rua Chile com Avenida Juscelino Kubitschek. No final da rua havia em funcionamento uma grande serraria, com pátio de toras e maquinário pesado. O barulho das máquinas serrando as enormes toras de madeira de lei era ensurdecedor e podia ser ouvido a centenas de metros.

Toda a energia para movimentar as serras provinha de uma locomotiva. Tratava-se de um enorme motor movido a vapor. Este era produzido pelo aquecimento de água numa caldeira a lenha. O sistema aproximava-se a um moto-contínuo, com os dejetos da matéria prima (toras) servindo de combustível para alimentar a caldeira, que produzia o vapor que movimentava a locomotiva. A principal e única roda da engenhoca girava pela força do vapor,  auxiliado pela dinâmica centrífuga devida de seu diâmetro e peso. A roda da locomotiva movimentava um complicado sistema de inúmeras outras rodas e correias de diferentes tamanhos como nas engrenagens de um relógio. As diferentes velocidades de rotação eram então utilizadas para movimentar diferentes tipos de serra da indústria.

A principal era a serra fita que ficava instalada na entrada da serraria. Servia para recortar ou desdobrar a tora em pranchas de espessuras variadas conforme o destino programado. Tais pranchas eram então recortadas em dimensões menores, produzindo os pranchões, vigas, tábuas e sarrafos. As diferentes fases do desdobro eram conseguidas por meio de diferentes tipos de serra.

Estas operações da indústria ocorriam na parte superior da serraria, sobre o assoalho em madeira do prédio. Toda a parte mecânica de rodas, roldanas e correias, assim como a coleta da serragem ocorria na parte inferior, no porão do prédio. Parte da serragem, conhecida como “pó-de-serra”, era disponibilizada gratuitamente pela indústria, desde que fosse coletada. Na época, ainda se usava fogão a lenha para o preparo de comida.

Figura 1: Fogão a serragem improvisado com lata.

Alguns construíam fogão a serragem usando latas vazias de óleo comestível de 20 litros. Garrafas ou outro artefato cilíndrico eram colocados em ângulo reto na base e topo da lata devidamente recortada e preenchendo o espaço com o pó de serra.

Foi numa dessas aventurescas e perigosas empreendidas que um amigo meu adentrou o porão da serraria para coletar pó de serra para a sua mãe. O ambiente, além de barulhento e empoeirado, tendo que usar máscara improvisada com lenço de tecido amarrado “a la Durango Kid”, era perigosíssimo, com inúmeras correias movimentando-se para cima, para baixo, para os lados. Mesmo com todos os cuidados costumeiros, naquele dia fatídico ele não conseguiu evitar de ser pego por uma das correias que o fisgou pela camisa e o levou para o complicado sistema mecânico do porão da serraria.

Foi muito difícil e triste a coleta do que restou de seu pequeno corpo.

O leite batizado da merenda escolar

Eu estava no primeiro ano escolar, com oito anos completos.

Após o vexame do primeiro dia de aula, quando eu não sabia ler o que a professora havia escrito na lousa, os dias da rotina na escola ocorreram normalmente.

Não sei se tinha sido um programa do governo ou um lance de marketing de alguma empresa, pois naquela época não existia merenda escolar. Acho que foi ainda no primeiro semestre que começaram a servir leite para os alunos, num intervalo entre aulas. Eu estudava no período da tarde. Assim, o leite foi servido em torno das 15 horas. Na época, o tempo de permanência na escola era curto, iniciando as 14 horas e terminando as 17 horas. A primeira vez, o leite era quente e foi servido em copos de vidro. Não havia os copos de plástico. 

Em casa não era costume tomar leite. Sei disso porque as sensações gustativa e olfativa daquele leite da merenda impregnaram minha memória permanentemente. Até os dias atuais, sempre que tenho oportunidade, degusto o leite bem quente e puro, ato que me leva ao túnel do tempo daquela idade.

Diferentemente dos dias atuais, que aprecio a quentura, sabor e aroma do leite puro, no primeiro dia daquele programa de merenda escolar, que era só o leite, a sensação que senti não era muito agradável. O leite estava bastante quente, apresentava sabor e aroma característico, mas não havia mais nada que despertasse o interesse de uma criança. Assim, naquele dia inaugural do programa fui para casa de certa forma desapontado.

O espírito criativo e empreendedor trabalhou bastante naquela noite. Como disse, não costumávamos consumir leite em casa. Além de café e chá, bebíamos chocolate. Somente o pó com água quente, pois vinha com açúcar. Eu já havia experimentado leite achocolatado em algum lugar. Daí para a ação, foram décimos de segundo. Providenciei um pequeno recipiente para o pó de chocolate que era a gavetinha de uma caixa de fósforo.

Figura 1: Caixa de fósforo para guardar chocolate em pó, legumes indesejáveis, etc.

Recipiente com tampa, portátil e gaveta para acondicionar e servir o chocolate!

Por falar nisso, eu usava a gavetinha também para depositar, disfarçadamente, pedaços de verdura do almoço ou janta que eu não gostava, para descartar mais tarde.

No dia seguinte e nos próximos, todo garboso e exibido, mostrei aos colegas a delícia que era tomar o leite achocolatado.

De duas uma. Ou o programa do governo foi abortado por falta de verba ou o marketing empresarial foi apenas um balão de ensaio temporário.

Tomei leite achocolatado na escola por uma semana.

Só.

O pão e as aulas de judô

No início dos anos 60, a cidade de Londrina era ainda pequena, mesmo com o título de “Capital Mundial do Café”. O transporte coletivo urbano era incipiente e pouca gente podia se dar ao luxo de ser transportado por taxi, ou carro de praça como eram conhecidos.

Assim, para ir à escola e a outros lugares como cinema, missa, fazer a feira, ou ir ao trabalho, as pessoas se dispunham a caminhar longos trechos, às vezes, de muitos quilômetros para chegar ao seu destino.

Eu já estava no ginásio, o que corresponde atualmente ao período escolar entre a 4ª e 8ª série do ensino fundamental. Estudava no período da manhã no Colégio Estadual “Vicente Rijo” da Rua São Salvador. O período da tarde era destinado as aulas das meninas. Foi nessa época que comecei a me interessar por garotas. O desvio do foco nos estudos manifestou-se em reprovação quando estava na 2ª série. Latim e Matemática. Foi a primeira e única vez que repeti de ano. Após aquele deslize, nunca mais precisei fazer qualquer tipo de prova final, oral, segunda época ou recuperação. Sempre fui aprovado por média, inclusive na faculdade.

Para compensar o tempo, teoricamente ocioso da tarde, interessei-me em treinar alguma arte marcial. Sempre fui um estudante dedicado e aproveitava a tarde para colocar as tarefas em dia e assim, tinha a noitinha livre. Por meio de um amigo, o Mariano, fiquei sabendo que havia uma instituição religiosa que oferecia aulas de judô. Eram três noites de treinos por semana a um custo bastante baixo.

O judokan como era conhecida a academia de judô, era sediada na igreja Terinkyo de Londrina, à Rua Fernando de Noronha, bem em frente ao Londrina Country Clube. Na época, eu morava na Vila Casoni, a poucos metros do atual Terminal Rodoviário de Londrina. A caminhada de casa até a academia perfazia mais de três quilômetros em trechos bastante acidentados.

Os meus amigos Mariano e Jorge moravam próximos e assim, íamos em trio para as aulas de judô. Na maioria das vezes, éramos os primeiros a chegar no judokan. Consuetudinariamente, os primeiros a chegar eram responsáveis pela limpeza da academia. Vassouras e pás em grande quantidade ficavam disponíveis para o serviço. A base onde se lutava não era de tatami e sim, de palha de arroz firmemente socada no piso com uma cobertura de lona grossa do tipo “encerado”. Dessa forma, a varredura de limpeza era mais simples de ser feita, cada qual delineando a largura de sua área e varrendo-a de uma extremidade até a outra. A ação de varrer faz parte de um dos movimentos de aquecimento e técnicas de ataque no judô.

Menção se faz mister dos judocas contemporâneos. Eu já conhecia o Kenjiro Hironaka desde criança. Lembro-me dele oferecendo-me pera e maçã quando eu o visitava em sua casa. Ali mesmo, no assoalho em madeira, o judoca persistia no exercício diário da arte. Eu ficava impressionado com o barulho que seu enorme corpo fazia ao simular a queda amortecedora sobre o piso. Na academia, ele era um dos mentores veteranos e eu me sentia orgulhoso quando ele vinha me orientar e corrigir meus movimentos. Reencontramo-nos em idade adulta em Curitiba na década de 80, de onde migrou para o Japão com a esposa. Faleceu na terra de seus ancestrais alguns anos depois. Foi um ícone do judô paranaense.

Figura 1: Hironaka a esquerda e Suzuki (camisa xadrez) a direita.
Imagem: Facebook de Liogi Suzuki, baixada em 11/11/2021.

Outro ícone é o campeoníssimo Liogi Suzuki, que também teve Hironaka como veterano. Com diferença de apenas três anos a mais do que eu, posso considerar que fomos contemporâneos do judô. Na época em que comecei a treinar, Suzuki já detinha faixa preta e treinava em outra academia, no educandário Seiryo.

Até certo ponto, havia uma competição saudável entre as duas academias citadas. Na cidade ocorria, algumas vezes ao ano, certames com a finalidade de graduação dos alunos nos diferentes graus do judô. Na época, usava-se apenas três cores para a graduação: branca, para os iniciantes, marrom para os intermediários e preta para os mais fortes. Eu cheguei usar até a faixa marrom, quando parei de frequentar a academia e nunca mais retomei o treinamento.

Os treinos no Terinkyo terminavam por volta das 22 horas. Para vencer os mais de três quilômetros de caminhada até a casa demorávamos quase uma hora. No terço final do caminho passávamos por uma panificadora para comprar pão ainda quentinho saído do forno. O sabor quente e a textura crocante do pão, que tinha uma casca que lembra o italiano, jamais esqueci. Até chegar em casa cada um comia dois ou mais pães, sobrando quase nada para a família.

Recortes da minha infância

Neusa Tsubaki Inoue
Artesã

Eu tinha 5 anos quando nos mudamos do estado de São Paulo para o Paraná. O local ficava na beira da estrada que ligava o estado de São Paulo com o Paraná. Era uma casa enorme, de chão batido e a “venda“ do meu pai funcionava na mesma casa. Era um local muito movimentado: passava a boiada, touro brabo, era ponto de parada da “jardineira”, nome antigo para ônibus. Lembro-me que nós brincávamos muito com os sobrinhos, filhos de minha irmã mais velha e filhos de vizinhos. Depois, mudamos para o norte do Paraná. Moramos um ano em Sertanópolis,  onde meus pais abriram uma quitanda.

Figura 1: Armazém de secos e molhados em Sertanópolis, com meus pais e irmãs.
Imagem: Foto de álbum familiar.

Então, pelas contas, devo ter ido para Londrina com 6 anos. Fomos morar num bairro muito distante do centro da cidade, na Vila Higienópolis. O ônibus circular só ia até o final do calçamento de paralelepípedos. Seguíamos a pé para chegar em casa, local denominado de “Bambuzal”. A casa era um sobrado até simpático; só que não havia energia. Mesmo para aquela época seria uma situação incomum não  ter energia em casa, mas creio que  assim o aluguel era mais barato. Visitando  recentemente a região, constatei que construíram um prédio de apartamentos no local onde havia nossa casa.

Figura 2: Local onde morávamos na Vila Higienópolis, de frente a uma praça. Atualmente, existe um prédio de apartamentos no local.
Imagem: M.T. Inoue, 2021.

Meu pai abriu uma quitanda no bairro Higienópolis, mais próximo do centro das cidade, na Rua Pará. Era uma região de famílias mais abastadas. Me vem à memória que as famílias eram muito religiosas. Então, de acordo com o contato de nossos pais com as famílias locais, eu e minha irmã Nice fomos preparadas para fazer Crisma. Tenho boas lembranças da minha madrinha Alzira. Ela era solteirona e cuidava da mãe e de um irmão que já eram idosos. Uma coisa que lembro com prazer, eram as visitas que eu fazia à minha madrinha. Ela sempre me servia pão com manteiga e mel e café com leite. Para mim era um lanche apetitoso já que nós não dispúnhamos de muitos recursos na época. Nossas madrinhas, incluindo a de minha irmã Nice, pertenciam à família Fuganti, donos de rede de lojas em Londrina da época.

Bem, voltando a época do sobrado, onde morávamos em seis pessoas: meus pais, minhas irmãs Norma, Javina, Nice e eu. Nunca me esqueço da sede que eu passava à noite. Para não “fazer xixi na cama”, minha mãe me proibia de beber água a noite. Às vezes , a sede era tamanha que eu ia escondida beber água na pia do banheiro.

Matricularam-me no “Grupo Escolar” que ficava na rua detrás da nossa casa, hoje , Colégio Estadual José de Anchieta. Bastava atravessar o matagal atrás de casa e, “tchan!” estávamos na escola.

Figura 3: Local onde se situava o Grupo Escolar onde comecei a estudar em Londrina, na Vila Higienópolis. Atualmente, funciona o Colégio Estadual José de Anchieta.
Imagem: M;T. Inoue, 2021.

A professora da primeira série chamava-se Sonia. Era muito paciente e, para mim, ela era muito bonita. Lembro-me dos ensaios no Salão Nobre para os preparativos de algum evento na escola. No segundo ano, nem me lembro do nome da professora e achava até que ela nem gostava de mim. Na época, a escola introduziu o uso de uma capa branca para as carteiras. Cada aluno deveria trazer de casa. Nossa mãe só nos deu um pedaço de pano branco. Minha irmã Nice, abriu a máquina e fez a bainha. Como eu era três anos mais nova, não tinha condições de manejar a máquina de costura. Lembro-me perfeitamente, do meu pai, de pé na sala de aula e a professora me expondo na frente dos colegas, por causa desse pano. Não me lembro do desfecho do evento mas acho que minha mãe acabou fazendo a bainha.

No ano seguinte mudamos para a Rua Pará, onde estava a quitando do meu pai. Para livrar o aluguel, ele levantou umas paredes nos fundo do comércio e fomos todos para lá. Continuamos a frequentar a mesma escola por mais um tempo.

Logo meu pai fechou a quitanda, acho que não estava dando muito certo e nos mudamos para a Rua Guaporé, 196, fundos. Foi nosso endereço por muito tempo. Continuei a frequentar a mesma escola do “Bambuzal”, no período da tarde. Eu saia de casa umas duas horas antes do início da aula para poder chegar em tempo. Ia à pé, sozinha. Era difícil  enfrentar o calor do verão naquela caminhada solitária. No percurso, observava as lindas mansões na Avenida Higienópolis. Sorte que, naquela época, não havia preocupação com a segurança e a gente caminhava tranquila.

No ano seguinte, 1956, fui estudar na Escola Vicente Palotti, próximo à Catedral, onde frequentei só um semestre, pois logo fui transferida para o Grupo Escolar “Hugo Simas” onde, a maioria dos alunos eram de famílias abastadas, mas isso não nos incomodava. A escola ficava bem no centro da cidade. Hoje é uma faculdade, não sei se a escola ainda funciona ali. O uniforme da época eram os “guarda-pós” branco, abertura atrás para meninas e frontal para meninos.

Eu até que gostava de ir à escola mas meu rendimento era terrível, o que fez com que eu repetisse o terceiro ano por três vezes!!!

Ao mudarmos para a Rua Guaporé meus pais faziam pasteis. Acordavam de madrugada para dar conta dos pedidos. Acho que foi uma boa fase, sob o ponto de vista de finanças. Tínhamos um ajudante para as entregas mas meu pai, meu irmão, Nice e eu tínhamos entregas para fazer também. Eu entregava num bar perto de casa mas era “um saco”, porque o dono do bar demorava muito para me atender, até que ele ouvisse as batidas na porta. Como o bar funcionava até tarde da noite, o rapaz dormia até mais tarde da manhã. A Nice ia mais longe, com uma cesta. Ela me falava que ficava chateada porque os cachorros ficavam atrás dela por causa do cheiro dos pastéis. No final do dia, lá pelas 17 h, eu ia à Estação Ferroviária para saber no bar da estação, quantos pastéis seriam entregues no dia seguinte. Muitas vezes, era o horário de manobra dos trens e a passagem para os carros e pedestres ficava impedida. Eu passava por baixo dos engates para chegar do outro lado. A gente se arriscava e não sentia medo. Lembram-se do capítulo sobre “A menina atropelada pelo trem”?

Por ser repetente, não pude continuar no “Hugo Simas”. Matriculei-me no Grupo Escolar Nilo Peçanha, na Vila Nova. Calejada pela matéria repassada, meu rendimento escolar melhorou muito, meu interesse era outro, e passei a ser a primeira da turma. Naquela época, descendentes de japoneses eram muito ruins em português, tanto na escrita quanto verbalmente. Felizmente eu não passei por essa dificuldade porque em casa só se falava português e a gente lia e se comunicava muito com outras pessoas.

Nas festas juninas eu era muito participativa. Dançava nas rodas mas sempre me vestia de menino porque eles eram tímidos. Então, na falta, lá ia eu!

Quando terminei o quarto ano, deveria ingressar no ginásio mas minha mãe falou que eu não ia mais estudar por dar muita preocupação. Ali, eu já deveria ter feito um ano de curso preparatório para prestar o “exame de admissão” e ingressar no ginásio. Dona Helena Ikeda, minha professora, quando soube,  conversou com minha mãe e garantiu que eu teria plenas condições de prestar o exame sem ter feito o curso preparatório. Então fui, ne? E passei!! Gratidão à Dona Helena pelo incentivo.

Fiz o ginásio no Colégio Estadual Vicente Rijo que ficava a duas quadras de casa. A Nice já estava estudando lá. Hoje funciona ali o Colégio Marcelino Champagnat. O Vicente Rijo fica na Avenida Higienópolis.

Figura 4: O mesmo prédio onde estudei o ginásio, Colégio Estadual Prof. Vicente Rijo, na Rua São Salvador. Atualmente, funciona o Colégio Estadual Marcelino Champagnat.
Imagem: M.T. Inoue, 2021.

O ginásio foi um período muito rico para mim. Fiz muitas amizades das quais guardo boas lembranças. Tivemos excelentes professores também. Alguns marcaram muito pelas atitudes , outros nem  tanto. Professor Milton Cilli, chegava sempre muito bêbado nas aulas mas era muito bom, como professor e como pessoa. Quando ele demorava muito para chegar, a gente escalava os portões para ver se ele ainda estava no bar, bebendo. Rsrsrs!!

Depois do ginásio, em 1964, já com 15 anos de idade, deixei de estudar e preferi trabalhar. Na época, meu pai separou-se da minha mãe. Passamos um “perrengue” danado! Minha mãe ficou depressiva e nosso irmão Jorge  nos preocupava muito com seu comportamento. Nunca percebi mas diziam que ele se envolvia com drogas. A Nice trabalhava e se preparava para fazer faculdade, o que teria sido um pedido do papai antes de sair de casa.

Eu passei a trabalhar para o meu cunhado Lauro, marido da nossa irmã Norma, que possuía um comércio na rua Prefeito Hugo Cabral. Depois ele abriu outra loja, na Rua Duque de Caxias e eu fui para lá.

Nesse ínterim, conheci meu futuro marido por meio de correspondência. Ele tinha se mudado para Curitiba após ingressar na Escola de Florestas da UFPR e procurava por alguém com quem pudesse se corresponder. Na época, as comunicações restringiam-se à telefone, ainda bem incipiente, e as cartas escritas. Um dia, contarei esta história de romance a longa distância.

Em 1968, estava para ser inaugurada as Lojas Americanas em Londrina e estavam abertas as inscrições para a seleção de candidatos. A Nice me incentivou a tentar uma vaga e, quem sabe, até me tornar chefe de departamento. Fiz o teste e fui aceita e, graças à experiência com “secos e molhados”, já iniciei como “chefe de departamento” na seção de Mercearia, departamento 31!! Ufa!  A gente trabalhava muito!! Mas posso dizer que foi gratificante!

Trabalhei lá por três anos e saí quando estava de casamento marcado.

Marlene

Não foi uma paixão.

Esteve mais para uma paquera platônica.

Eu tinha uns dezesseis anos. Andei muito atrás das meninas desde que entrei para o ginásio com doze anos. Mas, nunca tive namorada ou algo parecido, firme. Eram trocas de olhares, às vezes furtivos, às vezes dissimulados, às vezes sem vergonha mesmo.

Nessa época, iniciei a trabalhar no escritório do Engenheiro Malte, no centro da cidade, num prédio da esquina entre Maranhão e Minas Gerais. O engenheiro marcou minha vida profissional, pois foi o grande incentivador para eu continuar o curso de Engenharia Florestal logo após o vestibular. Eu estava indeciso entre frequentar o curso em que havia sido aprovado ou abandonar a ideia e tentar novamente o certame para Engenharia Elétrica. Se assim não tivesse sido, talvez eu poderia ser um bom engenheiro elétrico. No entanto e com absoluta certeza, não teria tido tantas oportunidades que usufrui durante toda minha carreira na profissão de engenheiro florestal.

Na esquina oposta ao escritório ficava o Edifício Autolon, até hoje um ícone da cidade, destinado a escritórios. Da janela do nosso escritório era possível ter uma ampla visão de todo o espaço da redondeza e do movimento de carros tanto na Maranhão como na Minas Gerais. Atualmente esta parte do centro de Londrina é destinado exclusivamente a pedestres.

Figura 1: Edifício Autolon.

Da prancheta onde eu trabalhava com desenhos de agrimensura e topografia, usando papéis vegetal e canson e tinta nanquim, eu podia visualizar boa parte das janelas dos escritórios do Autolon.

Certo dia, à tarde, ao mirar o quadrante emoldurado pelas cortinas abertas na nossa janela, eis que vejo a figura contemplativa de uma jovem na janela num dos escritórios, numa perspectiva de um ou dois andares acima do nosso. Ao olhar mais detidamente, pareceu-me ser uma pessoa conhecida. Ela também estava olhando para o meu lado e percebi que nossos olhares se cruzaram.

Naquela tarde ficou somente nisso.

Num outro dia depois, a cena tornou-se a repetir. Desta vez, os nossos olhares perduraram uma eternidade até que saí da inércia e tentei gesticular um aceno de mão. Ela correspondeu com outro aceno.

Pronto!

Foi o suficiente para o início de uma infindável troca de mensagens escrevendo-as no ar com o dedo. Acho que na época nem se pensava em alfabeto libras ou outra linguagem de sinais. Daquela forma, em intervalos do serviço de poucos minutos por dia, fiquei sabendo que a jovem se chamava Marlene e trabalhava como auxiliar num escritório de contabilidade. Ela morava na mesma rua da minha casa, na Rua Guaranis da Vila Casoni. Era irmã mais velha de um jovem que eu já conhecia, de nome Adolar, que às vezes participava dos folguedos com a nossa turma de amigos. Até então, eu não sabia da existência da Marlene.

Moça bonita, esbelta e alta, mais que eu. Sempre elegante, usando vestido na altura do joelho, pois à época era um detalhe importante para pessoas que trabalhavam em escritório. Eu também estava sempre de calça e camisa social. Mais dois rapazes trabalhavam comigo no escritório do Dr. Malte. No mesmo andar que o nosso, havia outro escritório de engenharia no qual trabalhava um rapaz que se tornou nosso amigo. Nós o apelidamos, confidencialmente, de PP, ou seja, sempre na pinta e na pindura.

Eu estudava de manhã e trabalhava no período da tarde. De vez em quando, nos dias de sol escaldante, eu pegava uma carona na sombrinha da Marlene. Ninguém tinha carro e não havia ônibus urbano. Então, o quilômetro e meio até o trabalho era uma caminhada de boa companhia, bom papo e alguns aconchegos para compartilhar da sombra propiciada pela pequena sombrinha da garota. Eu nunca soube se ela tinha algum namorado. A nossa amizade platônica teve uma curta duração.

Figura 2: Garota com sombrinha, Claude Monet.

Certo final de semana, numa brincadeira, o Shigeo, que também morava na Guaranis, apedrejou a cabeça do Adolar, ensanguentando-o. Houve uma verdadeira comoção na vizinhança, com o pai dele querendo descontar no pai do Shigeo, esbravejando intenções de processo judicial e coisas do gênero.

Pouco tempo depois, a família da Marlene mudou-se dali.

Os irmãos Godoy

Personagens ícones de coragem, pioneirismo, labor incansável e perseverança, Álvaro e Olavo Godoy foram desbravadores do norte do Paraná, em especial, da região onde se desenvolveu a então “Capital Mundial do Café”, a cidade de Londrina.

Dentre as muitas conversas que tive com Olavo, o irmão mais novo, soube das inúmeras aventuras e desventuras do trabalho pioneiro daqueles dois jovens imbuídos a empreender uma saga desbravadora da floresta que cobria toda a região. Contava-me que alguns nomes de acidentes geográficos como rios e morros eram inspirados em algum acontecimento ocorrido no local. Um exemplo é o Córrego do Tombo, pois foi ao atravessá-lo em lombo de jumento que Álvaro teria caído e se machucado bastante.

Os dois irmãos não eram de muita fala. Gostavam é de trabalhar. Foi a base sólida para acumular um patrimônio que, em alguma época passada, era incalculável. A extensão de terras de seu domínio era enorme, conhecida como Fazenda Santa Helena.

Eu conheci o Álvaro quando eu tinha uns 12 anos. Perto de nossa casa na Vila Casoni, ele administrava uma das inúmeras beneficiadoras de café. Toda a população da redondeza tinha sido requisitada para trabalhar na seleção inicial do café em grão. Minha irmã também se candidatou para o trabalho, que era sazonal. A seleção dos grãos de café era feita manualmente sobre a mesa da casa. Alguns conseguiam receber uma máquina que parecia com a de costura, com uma esteira rolante que vinha da caçapa de alimentação até o colo do catador de café. Assim é que eram conhecidos, os catadores de café. A máquina era acionada com os pés como nas máquinas de costura e, por meio de roldanas e correias, a engenhoca movimentava a esteira de lona. A velocidade podia ser controlada pelo trabalhador conforme a sua habilidade visual e manual de selecionar os grãos bons dos carunchados e sujeira. O ganho era por saca selecionada e recebia-se o pagamento diariamente.

Figura 1: Seleção manual de grãos de café.

Dos dois irmãos, o Olavo foi com quem eu tive maior contato. Na verdade, vim a conhece-lo bem mais tarde, nos anos 70.

Um dos destinos aonde anualmente eu levava os alunos da universidade era a Mata dos Godoy, localizada na região sul de Londrina. Naquela época, ainda era propriedade do Olavo, que administrava sozinho a imensa fazenda, que incluía uma reserva de 1000 hectares de mata intacta, composta pela floresta estacional semidecidual. Ali, as aulas de Silvicultura e de Dendrologia eram prelecionadas com base em material, clima e ambiente o mais adequado possível. Após a excursão pela mata adentro, com o corpo cansado e a mente repleta de matéria, um merecido descanso servido com delicioso café e bolinhos era gentilmente oferecido pelo anfitrião. Eram os preciosos momentos quando ouvíamos atentamente as histórias contadas por Olavo.

Foi numa dessas conversas que tomei conhecimento sobre o espírito de doação dos irmãos Godoy. Teria o fato ocorrido no início dos tempos de Londrina na embrionária vontade de se tornar um município. Os arredores do pequeno núcleo urbano ainda eram tomados por mata natural. Assim foi que os irmãos teriam decidido doar para o município, dois hectares de mata o mais próximo possível do centro da cidade. Já na época, fora registrada tal doação em cartório, destinando a área como um bosque para a posteridade dos tempos. Acordado tinha sido também que a área não poderia sofrer intervenção alguma, caso em que a doação perderia efeito.

A área a que me refiro é o conhecido Bosque de Londrina.

Figura 2: Imagens que mostram a involução do Bosque de Londrina.

Outrora, foi local de observação, descanso e passeio dos munícipes. Havia nichos para abrigo de animais silvestres como pássaros e macacos.

Com o passar do tempo, as necessidades e prioridades públicas tornaram-se tapumes do acordo registrado naqueles idos tempos. Desmataram o centro da área, dividindo em duas partes separadas por uma rua e terminal de ônibus.

Atualmente, os 1000 hectares da antiga mata restringem-se a uma pequena e insignificante mancha de floresta, de patrimônio público, conhecido como Parque Estadual Mata dos Godoy.

O inverno em Londrina

A lembrança que tenho dos primeiros tempos de inverno em Londrina aconteceu quando eu tinha uns sete anos de idade.

Morávamos numa pequena casa de madeira nos arredores da cidade, aproximadamente onde atualmente se encontra o luxuoso Shopping Boulevard.

Na época, era um lugar relativamente ermo, com apenas uma rua de chão batido, às margens de uma grande área de pasto de gado leiteiro conhecido como “pasto do Alemão”. Morada simples, com grande área de quintal, com a casinha nos fundos. Para os menos avisados, casinha era a denominação carinhosa para a privada, local para as necessidades fisiológicas.

Imaginem no inverno londrinense ter que sair da cama quentinha e vencer o caminho até a casinha só pra fazer xixi. Por isso mesmo, o penico, nome vernacular para o urinol, era um utensílio doméstico bastante comum naqueles tempos. Em casa havia dois penicos: o da minha irmã e o das crianças. Era bonito e todo esmaltado com ágata. Claro, todinho branquinho, baixinho e redondinho. Existia até um ditado, quando se queria referir a uma pessoa de porte baixo: “baixinho, gordinho, com a mão na cintura esperando o bolinho”. A mão na cintura era representada pela asa do penico, pela qual o mesmo era transportado.

Figura 1: Penico clássico em ágata.

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Aquela noite límpida de lua crescente prenunciava uma certeira geada!

O meu cunhado e tutor, com quem aprendi muitas coisas práticas e de comportamento, levou a nós, minha sobrinha e eu, ao quintal e encheu uma bacia com água limpa até próximo a borda. Diga-se de passagem, que a água era proveniente de um poço cavado no meio do quintal. A bacia já estava num local plano, no chão. Como não havia construção ou árvores no entorno, a lua ficava muito bem refletida na lâmina d’água. Foi a primeira vez que vi o astro em imagem refletida. Pareceu-me que a lua era bem mais brilhante do que aquela vista no céu, com o tremular provocado pelo movimento d’água, dando a sensação de estarmos vendo a lua num filme. Fui dormir com esta imagem na memória.

No dia seguinte, bem cedinho, corremos para ver se podíamos ver o sol refletido na água da bacia. Uma certa decepção foi rapidamente substituída por uma surpresa nunca antes vista: a água da bacia estava totalmente congelada! Aprendemos assim, que o frio intenso é capaz de produzir gelo automaticamente, bastando colocar água num recipiente. Não tínhamos refrigerador. Assim, o gelo disponível e de graça serviu para melhorar o sabor das bebidas durante o almoço.

Nessa mesma época, presenciei e aprendi algo que nunca cheguei a colocar em prática, mas que jamais esqueci. O mesmo tutor havia perfurado um buraco no chão, nas imediações onde nos mostrou a fabricação natural de gelo. Tal buraco era redondo, de uns 80 cm de diâmetro e uma profundidade de uns 60 cm. No fundo do buraco ele havia semeado feijão de moyashi. Moyashi é a plântula do feijão moyashi (Vigna radiata), que é a base de muitos pratos asiáticos, podendo ser servido em saladas, no sukiyaki, missoshiru, bibimbap, e muitos outros. 

Figura 2: Moyashi recém coletado.

As sementes eram colocadas sobre uma base com saco de aniagem e irrigadas levemente e depois cobertas com outro saco de aniagem. Nos dias seguintes, recebia a irrigação por sobre a proteção do saco. Para proteger e evitar a queda ou entrada de alguém ou de animais domésticos (tínhamos um cão, dois gatos e algumas galinhas que tinham, todos, o amplo quintal para si, onde podiam circular e ciscar à vontade), havia uma tampa com ripas de madeira sobre o viveiro de moyashi. Tal tampa permitia que um pouco da luz do dia penetrasse no buraco. Esta planta tem a propriedade de não precisar de luz para germinar. Em poucos dias, as sementes germinam e a radícula que sai da semente se estende por uns 10 cm, dando-lhe o formato característico, com a semente presa à radícula, toda aclorofilada, ou seja, esbranquiçado.

Alguns dias após a geada fomos ver como estava a produção de moyashi. Tampa de madeira levantada, saco de aniagem cuidadosamente retirado e voilà, várias camadas de plântulas esbranquiçadas entrelaçadas como num emaranhado de minhocas!

Como as plântulas germinam e lançam suas radículas sem nenhum contato com a terra, o moyashi assim produzido é retirado cuidadosamente do saco de aniagem que serviu de base, sem a necessidade de higienização para uso no preparo da comida.

Lembranças da época de criança que me levam ao túnel do tempo sempre que ocorre uma geada ou preparo um prato com moyashi.

Este foi o último capítulo deste volume das Crônicas Londrinenses.

Estarei de recesso até março de 2022.

Para a próxima temporada haverá novidades.

Desejo aos queridos Leitores Boas Festas de final de ano e que em 2022 desfrutemos todos de boa saúde, harmonia, prosperidade e realizações com muita boa sorte.