Coletânea de crônicas e contos curtos sobre Irati e região, a cidade, seu povo e suas histórias.
Esta coleção foi descontinuada no final de 2022 e contou com a colaboração de inúmeros escritores convidados.
Conteúdo
Edição 2022
INTRODUÇÃO
Temos a satisfação de anunciar o intento da publicação de textos curtos, na forma de crônicas ou contos, dentro da coleção geral “Crônicas de Irati”, envolvendo temas sobre Irati, a cidade, seu povo, suas instituições, suas histórias.
A primeira parte, concluída em dezembro de 2020 e intitulada “Crônicas de Irati”, foi integralmente publicada em 17 capítulos neste site que obteve mais de 5 mil visitas.
Considerando a boa acolhida, pretendemos dar continuidade ao projeto, para o qual esperamos contar com a colaboração de escritores convidados para ampliar e diversificar temas e estilos de escrita.
O registro de fatos do cotidiano, mesmo informalmente, pode servir de fonte de consulta para conhecimento histórico e cultural. Foi com essa premissa que surgiu a ideia de publicar a coletânea “Crônicas de Irati”, para registrar impressões vividas e ouvidas na forma de contos em textos de opinião ou ficcionais, inspirados na realidade.
A localização dos acontecimentos é a região central e sul do Paraná, abrangendo principalmente a cidade de Irati, podendo envolver os nove municípios que compõe a AMCESPAR – Associação dos Municípios da Região Centro-Sul do Paraná.
A linha de tempo definida para o conteúdo das narrativas, inicia-se com a criação da Universidade Estadual do Centro-Oeste em 1990, doravante denominada UNICENTRO, até os dias atuais. Trata-se do período em que ocorreu um rápido e significativo crescimento da instituição, com a criação e fortalecimento de inúmeros cursos de graduação e pós-graduação, em boa parte com excelente avaliação oficial, o que consolidou o nome da UNICENTRO no cenário nacional e internacional.
No período, outros fatos importantes ocorreram na cidade e região, que contribuíram para o desenvolvimento cultural regional. Pode-se citar a criação da “Fundação Denise Stoklos” e da ALACS – Academia de Letras, Artes e Ciências do Centro-Sul do Paraná.
Cada crônica será assinada pelo respectivo autor ou autores, que serão os únicos responsáveis pelo seu conteúdo. Qualquer semelhança com fatos, pessoas, instituições e localidades é mera casualidade.
Espera-se que um público de seguidores assíduos possa acessar as edições semanais. Docentes, servidores administrativos e alunos da UNICENTRO, amigos e colaboradores da ALACS e internautas em geral da região, do Brasil e do mundo são considerados potenciais visitantes para a leitura das crônicas.
Atenciosamente,
EDITORES
Mario Takao Inoue
Antonio José de Araujo
Uma pérola no meu caminho
Caterina Balsano Gaioski
Escritora, trovadora, membro da ALACS
Membro da UBT, União Brasileira de Trovadores
Anos sessenta, precisamente, junho de 1965.
Uma camionete F350 levantava poeira no trecho Ponta Grossa-Rio Azul, numa estrada cujo asfalto, ainda era um sonho muito distante.
Uma jovem, seus pais e o seu namorado, a caminho para conhecer a família do pretendente.
No meio do caminho, pausa para um café.
Numa lanchonete situada na Avenida Dr. Munhoz da Rocha, informaram aos visitantes que no alto da colina, havia uma imagem de Nossa Senhora das Graças, na época considerada a maior do mundo.
Foram verificar.
Encantaram-se com o que viram.
No alto do morro, a imponente imagem da “Santa”, como ficou conhecida, parecia abençoar a bucólica cidade, sem prédios, destacando-se apenas uma construção de poucos andares, que depois, ficaram sabendo ser uma moageira de trigo.
Que lugar mágico era esse?
Nada mais, nada menos, que Irati, a Capital da Batata.
Mesmo depois de casada e mãe, a jovem não esquecia da forte impressão que aquele lugar lhe causara. Algo a atraía para frequentes passeios por lá. Irrequieta, como a buscar por algo precioso, vislumbrava uma concha entreaberta e tentava imaginar o seu conteúdo.
Em 1975, quis o destino que fosse, com a sua família, morar em Rio Azul e as idas e vindas de lá para a Capital da Batata, tornaram-se frequentes. Estava bem próxima da cidade que tanto a impressionara. Agora podia acompanhar de perto o seu vertiginoso progresso, a sua fantástica transformação.
Eis que, em abril de 2002, vem, também com a sua família, morar em Irati, a fantástica cidade, que, não por acaso, o seu nome significa “Rio de Mel.”
Além das indústrias, madeireiras, ervateiras, cerealistas e cooperativas, comércio em geral, já existentes, começaram a proliferar lojas dos mais variados estilos, bancos, academias, (inclusive de letras, artes e ciências), supermercados, clínicas, faculdades, universidade, mantendo, porém, o encanto provinciano e a sua diversidade cultural.
Composta por uma miscelânea de origens, com predominância de poloneses, ucranianos, italianos e muitas outras etnias, que aqui encontraram abrigo e, com trabalho e dedicação construíram suas vidas, na agricultura, no comércio, indústria, política, cultura e literatura, deixando um legado de nomes que orgulham todos os segmentos da sociedade.
Ah, essa mistura de sotaques pelo ar!
Livre da xenofobia, esta cidade acolhia e acolhe, irmãos de todos os lugares, do país e de fora dele. Creio ser essa a razão de tanto encantamento.
Suas belíssimas igrejas católicas, convivem harmoniosamente com templos das mais variadas crenças.
Algumas etnias cultuam suas origens na forma de grupos folclóricos, grupos étnicos, da música, das danças, dos usos e costumes, transmitidos de geração para geração.
A sociedade em geral, rememora tempos dos elegantes eventos que aconteciam no CCCC – Centro Cultural Clube do Comércio e no Clube Polonês, este, prestes a completar o seu centenário.
Agricultores, professores, políticos, industriais, participam da chamada “roda de chimarrão,” ou batem um papo animado, nos lugares mais inusitados, onde se encontram por acaso.
-Seria o Éden?
-Não!
Há divergências, disputas, dificuldades, riqueza e poder, pobreza e carência, como em qualquer outro lugar do planeta, mas, há uma forma especial de conviver com as diferenças… O amor!
Amor esse atraiu a personagem desta história para cá no ano de 2002.
Enfim, encontrou a joia dos seus sonhos. Procurou a sua origem e de dentro da concha, agora totalmente aberta, surgiu a pérola do seu caminho:
Chama-se IRATI, a PÉROLA DO SUL.
O Prefeito do Campus
Regina Chicoski *
Depois de aprovação em concurso público na Unicentro em 1996, assumi minha vaga em abril de 1997. Recém-chegada a Irati, quis logo conhecer os pontos turísticos e como estava organizada a cidade de nome tão criativo: Irati, IR A TI, Vale do Mel, ex-Covalzinho, onde eu iria morar. Estava tão empolgada que toda vez que um parente ou amigo vinha me visitar na nova cidade em que estava morando, fazia um tour clássico para apresentar a cidade acolhedora que tão bem me recebeu. Começava sempre pela Santa. Apreciar o centro da cidade do alto da colina e conhecer o segundo maior monumento do mundo dedicado à Nossa Senhora das Graças, era roteiro obrigatório. Depois, passar pelo Parque Aquático, circular pelas ruas centrais e ir até a universidade, meu novo local de trabalho. Como as visitas aconteciam sempre no final de semana, após o almoço de domingo, o roteiro já estava definido.
Na primeira vez que levei meus visitantes à Unicentro, encontrei lá um senhor muito simpático, que nos recebeu muito bem. Fez as honras da casa, explicou sobre a origem do prédio. Agradecemos a acolhida, circulamos pela vasta área e fomos embora.
Próxima visita, repeti o roteiro. Quando chego à Unicentro no domingo após o almoço, o senhor simpático nos recebe novamente. Durante a semana teve reunião departamental e eu vi aquele senhor também em uma reunião no departamento vizinho. Somente nesse instante soube que ele era professor e estava alocado no departamento de Pedagogia.
No início estranhei, depois acostumei-me a vê-lo circulando pelo pátio, zelando da área externa, deixando tudo sempre impecável. Não demorei para saber que se tratava do Prefeito do Campus, como era carinhosamente conhecido. No início ele vinha de ônibus para o trabalho, várias vezes fizemos o trajeto juntos, lado a lado no transporte coletivo Transiratiense. Depois ele passou a vir de fusca. Esse fusca deve ter muitas histórias!…
Figura 1: O Prefeito do Campus Universitário de Irati.
Foto: R.Chicoski. Editado por M.T.Inoue, 2021.
O tempo passou, eu atuava como chefe da Divisão de Extensão e Cultura, alocada no prédio principal, quando chega a notícia do Palácio Iguaçu: o TIDE (Tempo Integral e Dedicação Exclusiva) Pesquisa e Extensão fora instituído. Até então os docentes podiam optar pela dedicação exclusiva ao ensino, à pesquisa, à extensão ou às atividades administrativas. A nova Lei causou reboliço e eis que adentra no meu espaço de trabalho o Prefeito do Campus apavorado com a novidade, queria minha ajuda, pois até então sempre fora detentor do TIDE administrativo. Sentamo-nos, e por mais que eu tentasse ajudá-lo com uma ideia aqui outra lá, não estava conseguindo. Ele desabou num pranto soluçante. Assustada, ofereci a ele um café e subi a escadinha de degraus minúsculos (rumo à sala do diretor) correndo, pisando a cada dois degraus
Figura 2: Escadaria de acesso ao segundo piso do Prédio Central do Campus.
Foto: R. Chicoski.
Cheguei esbaforida na sala do Diretor do Campus para pedir ajuda e ele teve uma brilhante ideia: – Vamos falar com o Bambambã da Engenharia Florestal – Alfonso Figueiroa, que prontamente acolheu o Prefeito do Campus no seu projeto sobre Ombrófilas Mistas.
Desci as escadinhas aliviada. Expliquei tudo. Com um lenço branco as lágrimas foram enxugadas, dando lugar a um sorriso na face. Lá foi o Prefeito do Campus para casa relaxar e tomar um bom “caalldo” como sempre fazia a noite. Eu fui para minha casa feliz, pois graças a um dos “Três Musquiteiros” que começa com A (para mim A de Anjo, ou melhor, A de Arcanjo) o problema estava resolvido. As Ombrófilas Mistas teriam um fiel escudeiro durante 365 dias por ano.
Em outro momento, eu atuava como vice-diretora do Setor de Ciências Humanas, Letras e Artes, que ficava alocado no Bloco E, no fim do corredor. Ao chegar ao trabalho, passando pelo corredor desse bloco, percebi que os professores do Departamento de Pedagogia estavam reunidos discutindo as novas Diretrizes Curriculares para o Curso. O debate estava acalorado, o tempo era exíguo para fazer as alterações no Projeto Político Pedagógico do curso… Cheguei na minha sala de trabalho cuja janela dava para o bosque. Enquanto aguardava o computador ligar, sempre olhava para as árvores na esperança de ver o ágil serelepe, ora comendo pinhão, ora coquinho de jerivá, ora caroço de ameixa… alimentação farta o ano todo nas imediações do campus. Procurando o serelepe, eis que avisto o Prefeito do Campus, com um enorme chapéu de palha, em cima de um tratorzinho cortando a grama do campo de futebol, espaço onde hoje fica a biblioteca. As diretrizes curriculares podiam esperar, mas as ervas daninhas, não, precisavam ser eliminadas. Afinal, os acadêmicos de Educação Física mereciam um campo impecável.
Sempre zeloso, atento a cada detalhe do pátio, numa tarde muito quente resolveu limpar uma área maior. Passou a roçadeira no maior capricho. No dia seguinte, chega um pesquisador do exterior para acompanhar um experimento de um projeto de pesquisa que tinha feito em parceria com o Príncipe da Florestal: um Arboreto, com algumas espécies do país estrangeiro. Ao chegarem no local, encontraram o Prefeito do Campus fazendo os arremates da roçada. Tudo muito limpo, para desespero do Príncipe que indaga: – Cadê o Arboreto!? Ao que ele retorquiu: – Arboreto? Aqui? E você cortou as ervas daninhas? Colocou placas? Os doutores apenas se entreolharam… Adeus experimento.
Em plenas férias de janeiro fui trabalhar como fiscal de sala no concurso vestibular da Unicentro. Fui escalada para trabalhar com o Prefeito do Campus. Para o meu azar, a sala designada ficava no terceiro piso do prédio principal com vistas para a frente da universidade. Ele foi até a janela e começou a se irritar: tudo o que ele queria era estar lá fora debaixo de um sol escaldante de quase 40 graus, organizando o trânsito e não trancado em uma sala.
Quando o septuagésimo aniversário dele estava se aproximando todos começaram a ficar preocupados: a “expulsória” estava chegando. Como ele reagiria? Como viveria longe do pátio sagrado dessa casa do saber? Mas o tempo é implacável. Passa para todos e passou para ele também. No dia 9 de junho de 2010 ele se aposentou. E como temíamos, o pior foi acontecendo, os problemas de saúde chegaram e se agravaram e ele encerrou a jornada no dia 22 de novembro de 2010. Ficar longe do pátio sagrado da usina do saber foi demais para ele. A família, sabiamente, escolheu a Unicentro para que todos nós prestássemos as exéquias a ele no lugar que ele tanto amou. Nos meus 23 anos de Unicentro, esse foi o único velório ocorrido no campus…
Muitos amaram e amam a Unicentro, mas ninguém demonstrou mais do que ele. Aliás, o cargo de Prefeito do Campus continua vago desde então. Alguém se habilita?
* Professora de Ensino Superior na área de Letras, com ênfase em Teoria Literária,
UNICENTRO – Universidade Estadual do Centro-Oeste, Irati, Paraná.
As mascotes de cada campus
Quem trabalha numa instituição com acesso público facilitado e com uma comunidade bem variada, como é o caso de uma escola ou faculdade, pode deparar com frequentadores dos mais diversos tipos e alguns bastante estranhos.
Lembro-me da Dona Zenilda, uma senhora que aparecia no prédio onde funcionava o Curso de Engenharia Florestal da UFPR, no bairro Juvevê em Curitiba. Muito elegante e sempre de vestido e chapéu clochê, trazia consigo cadernos de anotações, alguns livros e até instrumentos de desenho, como régua T e esquadro. Assistia às aulas normalmente junto com outros alunos regulares e não era incomodada e nem incomodava a classe por ser uma pessoa tranquila, sem muita fala e conseguia assistir à uma aula inteira de qualquer matéria, seja de Cálculo Integral, Inventário Florestal, Silvicultura, etc. Na minha matéria de Dendrologia chegou a fazer uma das provas bimestrais. Eu não corrigi, mas li a prova que ela havia respondido, que era descritiva. Claro que o conteúdo das respostas não combinava em nada com o assunto abordado, mas ela arriscava escrever frases sobre ecologia, animais e coisas do gênero.
Eu explico. Tratava-se de uma pessoa com problemas mentais e que deveria morar na redondeza e pelo visto, de uma família de bons tratos. Ela apareceu na Escola durante uns dois anos. Daí, sumiu e ninguém mais ouviu falar da Dona Zenilda.
No Campus da UNICENTRO em Irati certamente houve e há diferentes tipos de mascotes. Sejam pessoas ou animais, são frequentadores livres para circular pela maioria dos ambientes, desde que não incomodem o funcionamento, seja numa aula ou num laboratório.
Uma dessas mascotes que marcou minha memória, foi a Perereca.
Era uma cadela adulta, de raça não definida e porte pequeno, com idade relativamente avançada. A Perereca circulava livremente por todo o Campus e era bem querida e paparicada por todos, alunos, docentes e funcionários. O pelo da Perereca era liso e bem rente ao corpo, delineando-o perfeitamente. Assim, a Perereca parecia uma bolinha de pelúcia se requebrando ao passear pelos jardins e corredores da instituição.
De uma maneira especial, a Perereca parecia gostar da área no entorno do prédio do Departamento de Engenharia Florestal. Lembro-me de constatar a existência de vasilhames com água e ração animal logo na entrada do edifício.
Uma peculiaridade da Perereca era a sua preferência em frequentar o Laboratório de Sensoriamento Remoto, onde trabalhava o Professor Abílio Desesperanti. Dizem que os pets adotam alguém como seu dono ou dona, em função de algum tipo de afinidade, por exemplo, de receber a alimentação ou carinho especial. O Abílio mantinha cães em sua residência na capital. Talvez fosse esse o motivo. Ele costumava ficar alisando a Perereca quando ela adentrava por debaixo de sua escrivaninha.
Certa vez, ela entrou na sala onde eu lecionava uma aula de Fisiologia Florestal. Mas acho que não gostou da complexidade do tema abordado e deu o fora em seguida. Conclui que a Perereca não gostava de coisas complicadas.
De vez em quando, a população de cães aumentava de uma semana para outra. Isso acontecia no período de cio. Os cães formavam uma fila indiana perseguindo a Perereca por onde ela ia. Após aquele período, ela desaparecia de vista do Campus. Certamente, ela tinha um “lar” para onde retornava a fim parir os filhotes e cuidá-los nos primeiros tempos. Daí, voltava a frequentar a Universidade, onde encontrava carinho e paparicos que tanto gostava. O pessoal até festejava “– olha, a Perereca está de volta! Está mais alegrinha e cheirosa!”.
Na hora do almoço no Restaurante Universitário eram os momentos para exuberar o seu charme. De vez em quando, o Sr. Bigodão, que administrava o estabelecimento, preparava um churrasco à gaúcha, com fogo de chão no pátio ajardinado defronte o prédio. O ritual iniciava desde muito cedo, com os grandes espetos de costela fincados de pé ao redor do fogo. Aos poucos, conforme evoluía o assado, os espetos eram refincados cada vez mais distante do lume. O odor da carne e o próprio visual do fogo de chão eram atrativos especiais para a Perereca, que se autonomeava guardiã do churrasco. A exceção do Bigodão, não deixava ninguém sequer se aproximar do local da carne.
Que saudade da Perereca!
A jornada de uma docente no Campus de Irati
Não era uma noite qualquer. Era a noite em que começaria a trabalhar na Universidade Estadual do Centro-Oeste, em Irati, no Estado do Paraná. No contrato de trabalho, já amarelado pelo tempo, consta o dia 14 de março de 1995, um dia antes do aniversário dela. Fizera inscrição várias vezes para a vaga, mas havia sempre algo que a fazia postergar. Além de lecionar meio período, tinha também dois lindos pequenos, uma menina de três anos e um menino de um ano. Mas, ali estava ela. A Universidade, assim como a noite, não era como outra qualquer. Conhecia a história da UNICENTRO, pois havia sido aluna, no final dos anos 80, na Fundação Faculdade de Educação, Ciências e Letras de Irati, a FECLI, e foi justamente lá que entrou no mundo das Letras e conheceu aquele com quem se casaria. Os movimentos para a fusão das duas faculdades, as discussões, as viagens para a capital do Estado, os personagens da história não passaram despercebidos.
Não havia tempo para pensar em tudo naquela noite especial. Na entrada do Campus, de imediato, olhou a imagem de Nossa Senhora. Lembrou-se dos encontros de catequese dos quais participou naquele prédio, ainda adolescente, quando iniciou a vida de professora como catequista (mas essa é outra história). À medida que se aproximava do prédio central, a ansiedade aumentava. Olhou firme para o caminho que tinha pela frente. Segurou a emoção, mas era quase impossível conter os sonhos que carregava na pasta. Afastou a ansiedade agarrando-se a ideia de que era uma noite como outra qualquer. O coração, no auge dos vinte e seis anos, batia acelerado. Não conseguia se conter.
De repente, um dos sonhos saiu da pasta iluminando os olhos dela. Ah, como era deliciosa e apreensiva a ideia do desconhecido! Ela se perguntava o que aconteceria ali naquele lugar. Nem em um milhão de anos sonharia com uma noite como aquela. Lembrou-se da pequena cidade na qual nascera. Da menina de pés descalços. Das manhãs frias de inverno que enfrentou para estudar em outra cidade, pois a escola Getúlio Vargas, de Fernandes Pinheiro, só oferecia até a 4ª série. Sonhar com um novo amanhã já era o suficiente para que a imaginação voasse. Sentiu um mundo novo abrindo-se ao andar pelos corredores daquele prédio antigo. Quem imaginaria?! Os vitrais, as grandes janelas, tudo era um pouco de memória e um muito de novidade. Não, não havia tempo! Agarrou o sonho, colocou-o novamente dentro da pasta e entrou no Departamento de Metodologia de Ensino e Prática do Campus de Irati. Ela pressentia que viveria entre sonhos e realidades, mas não tinha ideia de quando permitiria que os sonhos saíssem da pasta.
Sobre a autora:
Professora de Ensino Superior na área de Letras, com ênfase em Línguas Estrangeiras Modernas e Linguística Aplicada, da UNICENTRO – Universidade Estadual do Centro-Oeste, Irati, Paraná.
Era uma vez Irati*
Julio Marcos Bronislavski
Jornalista e acadêmico correspondente da ALACS
Academia de Letras Artes e Ciências do Centro-Sul do Paraná.
Tudo começou quando o vale se abriu para dar passagem ao primeiro cavalo de ferro e eram amarelos os campos de trigo, verdes os pinheiros e branca a geada de julho. Eram índios, caboclos e bugres os que primeiro plantaram a bandeira azul e branca no alto da Serra dos Nogueiras. Depois vieram os holandeses, alemães, poloneses e ucranianos. Na aurora surgiram os primeiros ciganos na estrada asfaltada. Eram os novos filhos do vale. O menino polonês. O garoto índio. O sangue adolescente transformado pela miscigenação do bem e do mal. Do santo e do pecador. Da criança e do adulto, que agora olhava através dos olhos tristes.
Era hora de pegar o cajado, vestir roupas surradas e reencontrar a estrada poeirenta. Foi assim que voltei a Irati.
Era um dia de festa na Praça da Bandeira. Sempre foi um dia de festa na Praça da Bandeira. Havia uma banda tocando, meninas andando em volta, crianças brincando na grama, mamães carregando sua gravidez ao sol, velhos ruminando velhas festas, velhos tempos, no mesmo banco do Correio. Um cigano sem espaço e sem tempo cósmico, carregando seu pecado original, imaculado, com seus olhos brilhantes e sedutores, a contemplar a própria solidão. Havia um silencio no céu e na terra quando ele armou sua barraca. Depois olhou dentro das pessoas, do Rio das Antas, esfregou as mãos calejadas, arcou o corpo taciturno e amou Covalzinho.
Nas tardes frias do final do outono ele subia a Serra e ficava olhando a estrada da Colônia e a cidade. Até o crepúsculo. Até os olhos encherem-se de lágrimas. Até começar o voo. Como no tempo em que seus antepassados levantavam pela manhã, colocavam a mochila, os brincos dourados e saiam pela estrada. Sem destino. Sem rancor. Sem saudades do que ficava. Naquele tempo o mundo tinha cinco continentes. E Irati tinha mar. Lá do alto ainda se sente a brisa. De madrugada quando as serrarias estão paradas a gente escuta o barulho das ondas querendo voltar. Dizem que foi um bruxo quem aprisionou o mar de Irati. Ele queria se casar com Maria, professora do grupo, mas ela amava outro. Então, ele se vingou transformando o mar em pinheiro, a areia em serragem. E veio a inquisição. O bruxo foi amarrado e queimado na praça em frente da Matriz. E até hoje ninguém conseguiu desfazer o encanto. Nas noites de Itapará, nas rodas de chimarrão, nas manhãs frias em volta do fogão, dizem que ainda relembram estas estórias.
Dizem que o mar era Atlântico e tinha cheiro de tulipas. Dizem que as crianças brincavam na água que escorria pelas valetas da Rua Velha. E havia alegria geral quando a carrocinha de sorvete surgia tocando seu assobio. E havia um programa de calouros. Agradeço ao Café Irati as palmas do auditório. Dizem que nas madrugadas frias ou quentes o Candinho carregava a angústia da cidade em velhas canções tocadas no pente. E falam no Salustiano, no Tá-dormindo, na velha Juja, no João. Dizem que Irati era um conto de fadas, que começava com a menina voltando do colégio na chuva e terminava numa igreja no alto do morro. Por isso os olhos do cigano estavam cheios de lágrimas. Não possuía o que perdeu e precisava reencontrar o mesmo ambiente, o mesmo calor de outras eras.
Oh, filhos de sol de fevereiro! Filhos de Aquário!
Covalzinho não existe mais. Nem Irati. Nem a menina na chuva. Nem os sinos da Matriz tocam mais a Ave-Maria. O coroinha perdeu seu turíbulo e o incenso deixou de queimar. Só resta o andarilho, mandando desmontar a barraca, juntar os badulaques na sacola e seguir.
Então do alto do morro me descobri Atahualpa, o último Rei dos Incas, encantado em mim: duas cabeças para pensar, duas cabeças para abrir a trilha mágica. Longe do nada. Apenas o ser, o conhecimento como procura. E tive um instante de riso, o riso de Mozart quando concluiu a Flauta Mágica. E vi os Iratins fazendo chapéus de cera. Os imigrantes com seus carroções e suas enxadas. E o menino que brincava na serragem.
No céu. No céu azul do outono estava escrito que um dia todos nos reencontraremos em Itapará. E eu já estava a caminho. Por todos os séculos dos séculos. In saecula saeculorum, amém.
(*) – Texto originalmente publicado no jornal O Debate e no livro do autor Era uma vez Irati. Está na Antologia do Vale do Iguaçu, de Francisco Filipak e Nelson Antonio Sicuro.
Recortes de Irati: 1972
A estrada não era asfaltada em todo o seu trecho. Então, a viagem de Curitiba para Foz do Iguaçu durava dois dias, pois demandava pelo menos um pernoite. Se a viagem não fosse de urgência, o trecho poderia durar mais dias, desfrutando do desconforto em veículo que naquela época, ter ar condicionado era opção somente para carros de luxo importados. Já nos primeiros quilômetros veio a lembrança do propósito daquela esforçada viagem.
O ano era 1972.
Eu estava com 25 anos de idade, recém-casado e recém-ingresso na carreira docente da Universidade Federal do Paraná. Naquele ano, teve início um convênio de cooperação técnico-científica entre a UFPR e a Universidade de Freiburg, Alemanha, que perdurou por mais de 20 anos.
Como contraparte do perito alemão, tinha sido designado para acompanhar uma comitiva de docentes e técnicos numa viagem técnica de reconhecimento das formações vegetais e empresas florestais ao longo do trecho entre Curitiba e Foz do Iguaçu. A viagem fazia parte do pacote de ambientação dos pesquisadores estrangeiros aos costumes brasileiros e mostrar o estado de desenvolvimento do setor. A comitiva era formada por quatro peritos alemães e três contrapartes brasileiros, estes todos novatos na UFPR, mas bastante incentivados ao desempenho das responsabilidades.
Eu já estava frequentando aulas de alemão juntamente com minha esposa e mais outro casal. Estávamos previstos para sermos os pioneiros a desbravar o desafio de um doutoramento na Alemanha, já no ano seguinte.
A nossa primeira parada foi em Irati. Foi a primeira vez que visitei aquela pequena cidade do interior, na época, com seus 65 anos da emancipação.
Quando chegamos à cidade já era noitinha, com uma agradável temperatura de setembro.
Fomos direto para jantar num restaurante, talvez o único. Lembro-me muito bem da arquitetura colonial da casa em madeira, com dois pisos. O ambiente era aconchegante, com inúmeros comensais e um burburinho típico de tais estabelecimentos. A nossa entrada em comitiva no recinto provocou, nos primeiros instantes, uma quebra da animada atmosfera. Acho que os frequentadores não estavam acostumados a ver uma turma tão diversificada: brasileiros, alemães e um japonês, tudo de uma vez! Mas, foram apenas alguns segundos de olhares curiosos e admirados, retornando imediatamente ao burburinho de até então.
Junto com o pedido, alguém se lembrou que seria interessante oferecer aos ilustres estrangeiros algum alimento diferente. Assim, pedimos palmito como salada. Nunca passaria pela cabeça de que aquela sugestão pudesse provocar um alvoroço na casa.
Os convidados ficaram tão admirados com a novidade gastronômica que não paravam de degustar. Foram algumas latas de palmito até esgotar o estoque do restaurante. Ainda bem que no interior as coisas eram bem simples. Próximo havia um armazém de secos e molhados, fechado naquelas horas da noite. Mas, como todos na cidade se conheciam, foi rápido o dono do armazém abrir a loja para disponibilizar uma certa quantidade de latas de palmito para o restaurante. Acho que foram mais de quinze latas, só para a nossa mesa. Além do prato principal que incluía arroz, feijão, batatas e muuuuiiita carne!
Com a barriga cheia e a cabeça abastecida com as inúmeras caipirinhas e cervejas, a comitiva dirigiu-se ao hotel para um merecido descanso.
Após uma noite mal dormida em cama que não a minha e compartilhando o quarto com outros membros da comitiva da viagem, fui preparando o espírito para mais um longo trecho de estrada até o nosso destino final.
Duendes na madrugada iratiense
Caterina Balsano Gaioski
Escritora, trovadora, membro da ALACS
Membro da UBT, União Brasileira de Trovadores
Manhã neblinada de inverno.
A cidade desperta envolta em brumas.
Figuras movimentam-se instigando o imaginário de quem vaga pelas ruas.
Alguns vultos sobre duas rodas, outros caminham apressadamente, dando a impressão de levarem nas costas pesados fardos. Faróis de veículos cortam a neblina, criando cenas de filmes de suspense. Aqui e ali, a fumaça de algum remanescente e saudoso fogão a lenha, desenha arabescos pelo ar. Duas linhas paralelas serpenteiam, lugubremente, à margem da rua.
Boêmio, segue a vagar pelos caminhos, qual Sherlock sem capa, luvas, chapéu e lupa, vai associando as figuras matutinas a alguns duendes que povoaram a sua imaginação nas estórias infantis. Os anões da Branca de Neve, misturam-se ao gigante Gulliver. Outras figuras, lembram-lhe personagens dos contos policiais.
Mas, é inverno no sul.
Aos poucos as brumas se dissipam.
Irati, ainda sonolenta, vê surgirem timidamente, os primeiros raios de sol, revelando a dura realidade, daquelas figuras que pareciam irreais.
Ciclistas, alguns bem agasalhados, outros não muito, pedalam a caminho do labor. Pedestres com pesadas mochilas, provavelmente, contendo seu material de trabalho, aguardam no ponto de ônibus, a condução que os levará para mais um dia de labuta.
-E aqueles faróis?
-Quem sabe!
Podem ser profissionais da saúde indo para os seus plantões, padeiros a providenciar o nosso pão de cada dia, para garantir o pão da sua família. Viajantes em direção à estrada, veículos escolares levando passageiros rumo à fonte do saber.
Agora, a luz forte de um veículo vem do seu teto. O giroflex e a sirene, pedem passagem…
Nas linhas paralelas, surge o gigante assustador. Um apito forte, estridente, avisa que vai passar. Abram alas!
O sol apareceu!
Despontam as torres dos templos sagrados, apagam-se as luzes dos templos do pecado.
O boêmio recolhe-se ao abrigo.
Enquanto a cidade desperta, ele dorme, sonhando com novas madrugadas, quem sabe, sob o clarão da lua cheia e o uivar de um lobisomem, ou talvez, sob um romântico céu estrelado, com duendes alegres e marotos.
Então é Natal... em Irati!
Caterina Balsano Gaioski
Escritora, trovadora, membro da ALACS
Membro da UBT, União Brasileira de Trovadores
Ainda sob o efeito da pandemia, mas tentando reverter as dores, as tristezas, as perdas, o povo sai em busca de alento, para viver as antigas alegrias do Natal.
O comércio começa, timidamente, a dar seus ares de festa. Aqui e ali, alguns pinheirinhos enfeitados, algumas luzes a piscar com ar de cumplicidade, como um sedutor convite para entrar, olhar, cobiçar, e, eventualmente, comprar alguma coisa.
Semana que antecede o Natal em Irati…
Em noite de gala, o povo é convidado a assistir a abertura oficial das festividades natalinas na cidade.
Famílias inteiras, muitas crianças, aglomeram-se na rua XV de Julho, em frente ao centenário Clube do Comércio e à bela e recém reformada, Casa da Cultura, transformada em “Casa do Papai Noel.”
A fusão de dois corais: Arcanjo Miguel e Gaudeamus in Domino, fazem a abertura da festa, entoando cantos natalinos.
Figura 1: “Casa do Papai Noel” e os corais no Clube do Comércio.
Imagens: Herculano Batista Neto, 2021.
No palco, o locutor faz suspense, anunciando a chegada do Papai Noel. Num fusca adaptado, com muitas luzes e muito barulho, chega Mamãe Noel e o secretário de cultura, coautor das festividades. Mas…
– Cadê o Papai Noel?
Crianças, ansiosas, irrequietas, olham para os lados e, nada do “bom velhinho,” até que…
Um holofote ilumina o alto do Edifício Doutor Fornazari, e um pontinho vermelho, começa a descer pelos dezesseis andares do prédio.
– Não há de ver que é Papai Noel descendo de rapel?
Olhares encantados, as vezes assustados, com as peripécias do “velhinho” (provavelmente, um hábil praticante de rapel), acompanham a descida. Papai Noel vem fazendo estrepolias pelo caminho, gerando até uma certa preocupação, mas, eis que chega ao chão, são e salvo, para alegria da criançada. Impossível manter “distanciamento.” Todos querem abraçar Papai Noel.
Figura 2: A chegada de “Papai Noel” em grande estilo, moderno.
Imagem: Herculano Batista Neto, 2021
E…segue a festa.
Visitação à casa do Papai Noel, linda, toda iluminada; música dos mais variados gêneros, nos vários palcos espalhados pela cidade. Concurso de presépios elaborados por crianças e o comércio de portas abertas, numa paciente expectativa.
Em cada rosto, nota-se a alegria de viver, de reviver a magia do Natal.
Em cada criança, a doce ilusão de ter seus pedidos atendidos.
Em cada comerciante, a esperança de uma melhora nas vendas.
Em cada adulto consciente, o pedido ao dono da festa:
– Jesus, cura a humanidade!
Recortes de Irati 2000
Marta Kino
A época retrata o início de 2001.
Quando me inscrevi num concurso na Universidade Estadual do Centro-Oeste (Unicentro) – Campus de Irati, eu viajei de ônibus para aquela cidade. Veículo confortável, com ar condicionado e em linha direta de Curitiba para Guarapuava, com única parada em Irati.
Era um itinerário que chegava à parada em torno das 19 horas para então prosseguir ao seu destino final. A estação rodoviária era bem simples, localizada na parte leste em relação ao centro da cidade, com plataforma única, para até três ônibus. Serviços comuns como uma pequena lanchonete, banca de revista, casa lotérica e os guichês para venda de passagens era a composição total do estabelecimento. Ao lado, havia um ponto de táxi com dois ou três veículos. Todos funcionando sem taxímetro. Era preciso combinar o valor da corrida antes de adentrar no carro. Acho que na primeira vez, usei este serviço de transporte.
Depois, eu descobri que do outro lado da rodoviária havia uma praça e um ponto inicial e final da linha de ônibus urbano que servia o trajeto dali até o Campus da Universidade.
A localização da rodoviária, ou vice-versa, era estratégica.
Do outro lado da via principal que dava acesso à rodoviária havia um hotel e ao lado, uma farmácia. Tudo muito simples, combinando com as características interioranas de Irati daquela época.
Tendo chegado à noitinha em Irati, sem nenhum preparativo de logística, apenas o necessário para enfrentar o que eu considerava ser meu último concurso público, a opção de pernoite foi aquele hotel perto da rodoviária. Era só atravessar a rua.
O hotel foi uma boa salvação para as minhas necessidades de moradia naqueles dias de concurso e nos meses que se seguiram após eu ingressar na instituição. Era simples, barato e … com certo conforto. A diária incluía café da manhã bem servido com frutas, frios, pão, bolos e bebidas de praxe.
Na primeira vez, o hotel devia estar com seus aposentos de solteiro ou casal todos ocupados. Havia à disposição quartos com três ou mais camas. Naquele horário da noite, sem conhecer mais nada sobre a cidade, concordei em pernoitar num quarto coletivo, com o risco seguro de ter um estranho compartilhando o mesmo aposento. Não a mesma cama, felizmente.
Cansado da viagem e a preocupação do desafio do dia seguinte, comi algo rápido ali mesmo, no restaurante do hotel e me recolhi para me preparar ao concurso.
Adormeci sem me dar conta de que não estaria sozinho naquele quarto. Também não percebi nada durante aquele sono dos anjos em solo iratiense.
Só de manhã, ao me acordar, percebi que alguém estava ocupando a cama mais próxima da janela, das quatro disponíveis, eu ocupando a primeira mais próxima da porta. Com o maior cuidado, levantei e fui ao banheiro para as necessidades e higiene matinais. Parece-me que o outro hóspede não foi incomodado.
Desci a longa escadaria até o salão onde era servido o café da manhã.
Nas próximas oportunidades, planejei tudo antecipadamente, com reserva de quarto no hotel.
Foi a única vez, em toda minha vida, que compartilhei um quarto com alguém totalmente desconhecido.
Eu, sem saber quem e quando adentrou o quarto e, por sua vez o estranho, sem saber quem e quando eu saí.
Inverno em Irati, um retrato da minha janela
Caterina Balsano Gaioski
Escritora, trovadora, membro da ALACS
Membro da UBT, União Brasileira de Trovadores
Eis que o inverno chegou!
Uma janela, indiscreta, observa a brusca mudança da paisagem que parece envolta em fina organza.
Amanhece…
O sol radiante começa a aparecer e a desfazer as tramas do imenso tapete branco que cobre gramados e telhados.
Figura 1: Geada sobre o gramado em Irati, no dia 13/06/2022.
Foto: C.B. Gaioski, 2022.
Pessoas, algumas apressadas, circulam pelas ruas a caminho da escola ou do trabalho. Outras procuram apenas um lugar ao sol para se aquecer. A paisagem ganha o colorido dos agasalhos, gorros e cachecóis.
Aqui e ali, a fumaça de algumas, remanescentes, chaminés de fogões a lenha, desenha arabescos no ar e denuncia que lá dentro tem um bom café, chimarrão e, quiçá, o nosso bom pinhão na chapa.
Pessoas menos favorecidas, buscam ajuda nas instituições governamentais, religiosas e particulares. Em algumas, moradores de rua recebem roupas, banho e comida. Nosso povo bom e generoso, colabora, participa, ajuda. É a estação na qual nossos irmãos carentes mais necessitam e a nossa gente se faz presente.
Proliferam as festas juninas.
Danças, fogueiras, quitutes típicos da ocasião, brincadeiras, simpatias, pedidos a Santo Antônio, o santo casamenteiro, para arranjar um par. O afrancesado “balancê” da dança da quadrilha, fazendo a alegria das pessoas de todas as idades.
Nas alcovas, certamente, o amor aquece corpos e corações.
Nos bares e botecos, as chamadas “bebidas quentes”, são a boa desculpa, para beber sem culpa.
Nesta fria e branca paisagem, a natureza ainda nos brinda com algumas cores. Manacás, amor prefeito e outras flores da estação, quebram a monotonia. Enquanto outras árvores desnudas usufruem do merecido descanso até a chegada da primavera.
O sol se põe e o arrebol visto desta janela curiosa, é um divino festival de cores. O céu parece incandescente, contrastando com o frio que prenuncia mais uma grande geada.
Figura 2: Por do sol no inverno iratiense.
Foto: C.B. Gaioski, junho de 2022.
Nova manhã…
Mais uma vez a natureza dá seu espetáculo.
Agora, o meu olhar percorre as estradas do interior. Em meio à imensidão branca, ruídos típicos da roça: O galo, despertador implacável, avisa que é hora de ordenhar as vaquinhas. Ainda que a temperatura esteja abaixo de zero, ordenhar é preciso, bem como alimentar os animais e ir para a lavoura, garantir o pão de cada dia para todos.
Época de juntar pinhão para comer ou vender. Ah, estas benditas, lindas, imponentes araucárias, cujos frutos fazem a nossa alegria e a festa para, a não menos linda, gralha azul.
Figura 3: Pinhão na chapa de fogão a lenha e as araucárias.
Foto: M.T. Inoue, 2012.
É inverno em Irati e também em muitos outros lugares, mas, é aqui que o sol desponta lá pelas bandas do trevo de acesso à cidade e se põe atrás do Morro das Antenas, como é popularmente, conhecido o lugar onde estão situadas as antenas de telecomunicações. Daqui, desta janela indiscreta, eu vejo a Santa na Colina Nossa Senhora das Graças, a Torre da Igreja de São Miguel, o casario, e, principalmente, a alegria da chegada, ou a tristeza da partida, de quem embarca e desembarca na rodoviária, sob os olhares indiscretos, desta janela indiscreta.
Sofá verde
Rosanna Rita Silva*
Na antiga sede da Faculdade de Educação, Ciências e Letras de Irati, uma das precursoras da UNICENTRO, havia somente uma sala de professores. Éramos poucos e cabíamos todos em um único espaço.
Naquele aposento, os móveis estavam dispostos para diversas atividades, tais como atender alunos, guardar materiais, tomar um chá ou um cafezinho. Havia um armário onde ficavam as caixas de giz e apagadores que eram utilizados nas salas de aula.
A função essencial do espaço era a de possibilitar os encontros entre docentes que aconteciam antes das aulas, ou durante os intervalos entre uma e outra. Havia ali uma grande mesa no centro, assim como cadeiras, armários e uma mesinha onde ficavam as garrafas de café e chá.
E havia um sofá!
O sofá era verde claro, de couro ou outro material similar. Só sei que brilhava e ficava do lado esquerdo da porta. Lado esquerdo de quem entrava na sala.
Naquele sofá é que se aguardava a chegada de algum colega e assim começava uma conversa que era, muitas vezes, interrompida pelo momento de ir para a sala de aula. Na sequência, vinha outro docente e mais uma conversa continuava. Não raro podíamos começar um assunto com alguns colegas em um momento e a interação seguia com revezamento entre nós ou reencontro adiante, naquela mesma noite, em uma sequência quase interminável e, muitas vezes, caótica, cujo diálogo em curso podia ser (e era) constantemente modificado.
Certo dia, uma professora ironicamente nomeou o sofá como “banco da Praça da Alegria”, remetendo ao antigo programa humorístico de televisão com o mesmo nome.
O sofá verde, banco da praça, foi abrigo e testemunha de grandes discussões acadêmicas, conselhos úteis e inúteis, fofocas, encontros e desencontros amorosos, articulações políticas internas e muita conversa jogada fora.
Com a mudança para o novo Campus da universidade, não sei aonde foi parar o sofá verde claro brilhante. Uma coisa certa é que ele sabe mais da UNICENTRO do que muitos de nós.
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Professora da UNICENTRO
Membro da Academia de Letras, Artes e Ciências do Centro-Sul do Paraná
Acesso ao currículo na Plataforma Lattes: http://lattes.cnpq.br/1261349232859571