AFRICA

Esta é uma coleção de crônicas baseada em fatos ocorridos durante as atividades no Projeto de Desenvolvimento da Província do Niassa, Moçambique, no período entre 1980 e 1982.

São narrativas pitorescas de situações vividas no campo e na cidade, mostrando as características do povo e os costumes moçambicanos de pós revolução, depois de longos anos como colônia portuguesa. 

Como o subtítulo diz, serão entremeados textos com imagens, sempre que possível, para ilustrar as aventuras africanas.

É inevitável a abordagem profissional nos contos, o que considero ser didática e aditiva ao conhecimento geral.

Está previsto um total de 22 capítulos, a serem publicados semanalmente.

CONTEÚDO

Marcando território no Cabo da Boa Esperança

Um dos objetivos mais importantes dos europeus da idade média era descobrir o caminho marítimo para a Índia, de onde vinham as especiarias tão apreciadas até hoje, em nível mundial, como o gengibre, a pimenta do reino, o cravo da índia, açafrão, entre outras. O caminho por terra teria que seguir a rota das especiarias, monopolizado pelos árabes e centralizado em Veneza, o que encarecia os produtos. Os portugueses eram os únicos com poder para empreender as descobertas por mar.

Foi com a premissa de descobrir a rota almejada, por motivos dúbios, a frota capitaneada por Pedro Álvares Cabral acabou aportando em novas terras, pensando que havia chegado à Índia. Fala-se de motivos dúbios, porque o português Bartolomeu Dias já havia chegado, em 1488, à península do extremo sul do continente africano, denominando o ponto como Cabo das Tormentas, mais tarde, rebatizado como Cabo da Boa Esperança. Dez anos depois, outro lusitano, Vasco da Gama, foi o primeiro navegador a contornar o Cabo da Boa Esperança, navegando pelos dois oceanos: do Atlântico para o Índico. A frota de Cabral descobriu o Brasil um ano depois do feito de Vasco da Gama.

Histórias à parte, um acontecimento digno de registro, é a minha visita ao Cabo da Boa Esperança, especificamente, ao monumento que marca a aventura de Bartolomeu Dias. Este monumento está edificado no ponto setentrional da África do Sul, na Cidade do Cabo.

Cidade do Cabo, África do Sul. 1980.
Caminho para o extremo sul da África. 1980.
Encontro do Oceano Atlântico com o Oceano Índico. 1980.
Monumento à Bartolomeu Dias, África do Sul. 1980.
Montanha da Mesa, Cidade do Cabo. 1980.
Marcando território no Cabo da Boa Esperança. 1980.

Há um ditado popular que retrata muito bem o comportamento do brasileiro (no caso, os homens que mijam em pé) que diz:

Quando um brasileiro mija, todos mijam

O colóquio no Ministério da Agricultura

Encontrar-se com autoridades é um dos expedientes a que se está sujeito quando se atua em projetos internacionais. Em minhas andanças pelo mundo, tive que participar em alguns desses expedientes. Entre encontros com Presidentes e Ministros de Estado, o que marcou minha memória foi o evento acontecido na sala do Ministro da Agricultura de Moçambique.

Como acontece no Brasil, por vezes, a espera para o início do encontro com qualquer autoridade pode demorar mais que o previsto. Já havíamos passado pelo filtro do chefe de gabinete e estávamos alojados com certo conforto na sala ministerial. Entre conversa séria, conversa fiada e piadas, rolou um assunto nada convencional para um ambiente daqueles.

Não me lembro quem começou o tema sobre o centro de equilíbrio do ser humano. Como todos sabem, todo e qualquer corpo ou objeto está sujeito a ação da gravidade da Terra. Trocando em miúdos, tudo que é mais pesado que o ar deve ficar preso ao chão. Existe um ponto chamado centro de gravidade. Nos humanos, localiza-se próximo aos quadris, aproximadamente a 55% da altura, a partir chão. Dependendo do movimento do corpo, este ponto pode se deslocar para manter o seu equilíbrio. É só se lembrar do brinquedo conhecido como “João Bobo”, que sempre retorna ao seu ponto inicial de equilíbrio.

A conversa foi desenrolando até chegar no assunto sobre onde fica o centro de gravidade quando estamos agachados. Existem pessoas que não conseguem ficar agachadas com a planta inteira dos pés no chão. Ao tentar fazê-lo, acabam se desequilibrando e tendem a cair, geralmente para trás, de bunda. Outras, conseguem o intento de maneira fácil e podem ficar longo tempo agachados, sem se cansar. Conversa vai, conversa vem, passando pelo tema de como as pessoas do primeiro tipo fariam cocô no mato.

Para dinamizar o colóquio, é claro que passamos para a fase da experimentação e demonstração da capacidade de cada um dos presentes em executar a façanha recém discutida. Dentro no nosso grupo, havia representantes dos dois tipos: os que não conseguiam ficar agachados sem cair e os que dominavam o seu centro de gravidade para não cair. Eu sou daqueles que consegue fazer cocô no mato sem se lambuzar.

Estávamos precisamente nesta fase da demonstração, quando adentra a sala o Ministro da Agricultura. Após o choque inicial, já levantados e perfilados, fomos cumprimentados um a um pela autoridade.

Na saída, após as tratativas oficiais e comerciais, penso ter ouvido o Ministro cochichar no ouvido de seu assessor:

~ O que estavam os brasileiros cooperantes a “fazeire” em meu gabinete, heim?

~ Será que estavam ensaiando a “cagaire”?

Aprendemos que, o colóquio deve ser compatível com o ambiente em que estamos, para evitar mal entendimentos.

A viagem no avião moçambicano

O fundo de cena das estórias desta coleção é o período em que trabalhei num projeto de desenvolvimento florestal entre os dois governos: brasileiro e moçambicano. Foi entre 1980 a 1982, sob a égide da FUPEF, a Fundação de Pesquisas Florestais, vinculada à UFPR.

Participaram diversos professores da Escola de Florestas, assim como alguns Engenheiros e Técnicos Florestais e estudantes. Viajávamos para o exterior durante os períodos de férias escolares. Devo ter participado de umas oito excursões durante os dois anos em que atuei no projeto.

O objetivo era a implantação de uma área de investigação de campo na Província do Niassa, especificamente no município de Marrupa, sede do nosso projeto. Niassa é a província ao extremo noroeste de Moçambique, na divisa com o Malawi e a Tanzânia.

Província do Niassa em destaque, com a indicação de Marrupa. As viagens eram feitas por avião, de Maputo à Pemba. Depois, seguia-se por terra até a sede do projeto.

As viagens para Moçambique iam do Brasil até a Johannesburg na África do Sul, com a antiga Varig. De lá, seguia-se com a empresa moçambicana LAM até Maputo.

Na primeira incursão, tomamos mais alguns dias para explorar a África do Sul, conhecendo as cidades do Cabo, Johannesburg e Stellenbosch.

 Em Stellenbosch, tivemos a oportunidade de visitar a famosa Faculdade de Florestas local.

Parte da equipe: a partir da esquerda, Prof. Hosokawa, Prof. Stohr (in memoriam), Prof. Soares, Engenheiros Jason, Mansur e Neif, Prof. Tomaselli e Prof. Rosot. Faculdade de Florestas de Stellenbosch, 1980.

Nas primeiras viagens da capital para Pemba tudo correu bem. A maioria dos pilotos da LAM eram brasileiros e esbanjavam a sua perícia em dirigir uma aeronave. A partida na pista era de deixar a gente grudada no banco pelo efeito do rápido deslocamento em relação ao chão. No ar, parecia que estavam dirigindo um carro, desviando-se das nuvens, uma vez para a direita e em seguida para a esquerda, com as asas do avião quase perpendiculares à terra. Para quem gosta de emoção, era um prato cheio, da decolagem até atingir a altitude de cruzeiro.

Uma única vez, tivemos que adiar a viagem.

Depois da decolagem, já em boa altitude, percebemos que o avião começou a retornar ao ponto de partida. Logo em seguida, o piloto avisa que o a máquina estava com uma pane num dos motores e que era necessário retornar à base. Daquele instante até o pouso foram apenas poucos minutos, que pareceram uma eternidade. Um completo silêncio tomou conta do compartimento dos passageiros. Dava para ouvir a respiração e as batidas do coração. Ninguém soltou um pio até o avião pousar. E não decolou mais. Viagem adiada.

Também, não era para menos. Em situação análoga, o procedimento de aviso é que estariam retornando devido a um pequeno problema de comunicação.

A sinceridade daquele piloto foi algo digno de registro.

Johannesgurg e Stellenbosch

A porta de entrada da África do Sul para quem vem do Brasil, é Johannesburg, considerada uma cidade global e centro econômico e administrativo do país, com mais de 8 milhões de habitantes.

Na época em que a conheci, o problema racial estava em seu auge. A cidade tinha os prédios no centro, rodeada de favelas e construções pobres a perder de vista. Uma minoria branca, rica e culta, dominava uma maioria negra, pobre e analfabeta.

A segregação atingia igualmente outras minorias, como os asiáticos. Banheiros públicos eram separados para os brancos e os outros (negros e asiáticos), da mesma forma que as praias, restaurantes, transportes públicos etc.

Certa vez, tive que usar um banheiro público. Ao chegar, fiquei na dúvida: não sou negro, mas também não sou branco. Qual banheiro usar? Escolhi o dos outros para não causar algum transtorno. Escolha mal feita. A limpeza estava muito a desejar, com um mal cheiro estonteante.

O mais chocante ficava por conta das pequenas lojas, do tipo de uma única porta, para o comércio de pequenos bens, como bebidas, revistas e afins. Em todos os estabelecimentos havia uma grade protetora, daquelas que se vê em prisões, para o atendimento ao comprador.  

O voo do Brasil chegava à noite em Johannesburg. O voo para Maputo era na manhã do dia seguinte. Assim, pernoitávamos no aeroporto. Ali, todos os estabelecimentos eram da mesma maneira, segregacionistas. Foi uma das experiências marcantes e indesejáveis de minha vida. No retorno, era ainda pior. Após o avião moçambicano pousar, antes do desembarque, entravam funcionárias do aeroporto e pulverizavam a cabine inteira da aeronave com algum tipo de desinfectante, para dissipar o cheiro ou alguma coisa contaminante. Era o fim da picada.

Imagem da periferia de Johannesburg. 1980.
Imagem da periferia de Johannesburg. 1980.

Stellenbosch é uma cidade de tamanho médio situada a 50 Km da cidade do Cabo. É a mais antiga colonização europeia na África. Visitamos a escola de florestas em nossa primeira viagem. A região é vinícola, de onde provém os melhores vinhos conhecidos do país. Os vinhedos são localizados nos vales, rodeados por cadeias de montanhas com vegetação rasteira.

Soubemos que, certa vez, alguém teve a brilhante ideia de reflorestar os morros das encostas com espécies madeireiras. É sabido que as árvores absorvem muito da água do solo pela sua transpiração.

Com o passar do tempo, os produtores de uva notaram queda na produção. Detectou-se que o fornecimento de umidade do solo havia decaído, ao ponto de prejudicar o vinhedo. O rebaixamento do lençol freático nos vales era oriundo da alta taxa de absorção da água pelas árvores plantadas nas encostas. Solução: cortar as árvores. Porque, a economia vinícola era mais interessante que a produção de madeira.

Vivendo e aprendendo.

Maputo

Nome um pouco estranho, quase um impropério.

É a atual denominação para a capital de Moçambique. Antes da revolução de 1975, sob o domínio português, era conhecida como Lourenço Marques. O país tornou-se independente de Portugal em 25 de junho de 1975, após dez anos de lutas internas revolucionárias sob a égide da Frente de Libertação de Moçambique, comandada por Eduardo Mondlane. A Universidade que leva o seu nome mantém convênio de cooperação com a UFPR desde 1980.

Dentre algumas estórias ouvidas, imediatamente após a independência, quase a totalidade dos 250 mil portugueses que viviam em Moçambique saíram do país. Tiveram apenas um dia para tal façanha. Muitos foram expulsos pelo novo governo, outros fugiram de medo.

Ao passearmos por Maputo para um primeiro reconhecimento, deparamos com uma enormidade de edifícios abandonados e ocupados pelos nativos. Outros, em metade de sua construção, habitados por moçambicanos que não tinham como executar o seu término.

Vista parcial de Maputo, em 1980. Muitos dos edifícios estavam inacabados.

Chegamos a primeira vez em 1980. Cinco anos apenas de um novo país independente, sob regime totalitário, presidido por Samora Machel, mão direita e amante secreto da esposa de Mondlane durante a luta pela independência.

País independente. Início de uma contra revolução. Nesta nova guerra civil, o país ficou praticamente dividido em três partes: o sul, incluindo a capital, onde ficava o governo; a parte central, dominada pela guerrilha e uma pequena parte ao norte, incluindo a Província do Niassa, que permanecia sob o domínio do novo governo. Assim, nossas viagens, incluindo o transporte de bens como veículos, ferramentas e alimentos, eram feitas por via aérea até Pemba ou Nampula. E dali, em veículo por terra.

Na região tomada pela guerrilha havia estradas e linhas de ferro. Mas, o trajeto era impossível de ser seguido pois corria-se o risco de assalto e pilhagem.

Numa das paradas estratégicas durante a transferência para a área de trabalho do projeto. 1980.

Abaixo, segue o texto preparado pelo Prof. Roberto Tuyoshi Hosokawa, a meu pedido.

Na nossa época, o Presidente era Samora Machel sucessor do revolucionário Eduardo Mondlane. Depois, foi Joachin Chissano, que por sinal foi nosso aluno de Economia Rural na Universidade Mondlane. A universidade recuperamos do escombro da revolução, com apoio das Nações Unidas.

Joaquin teve uma acessão rápida quando Samora morreu num acidente aéreo. Ele teve apoio do Prof. Kittner, cooperante da DDR, que o enviou para Alemanha Oriental estudar Armazenagem e Transporte de produtos primários agrícolas: castanha de caju e produtos florestais.

Quando voltou, foi nomeado Ministro de Transporte apoiado pelo partido FRELIMO e Samora.

O nosso projeto MADEMO – MADEBRAS rendeu dividendos de cooperação universitária para a UFPR até hoje.”

A loja franca

Na década de 80 não existiam muitas opções de hospedagem em Maputo. O hotel designado para a nossa equipe era o Hotel Moçambicano. Talvez fosse o segundo melhor da cidade. Tinha até uma piscina nos fundos. Nem tão limpa, mas dava para se refrescar com uns mergulhos. Eu não me lembro se cheguei a entrar naquela grande bacia.

Eu não sou muito chegado a água. Na praia, eu só fico na areia, sob a proteção do guarda-sol. Se entro no mar, só se for por poucos minutos. Logo, começam a aparecer manchas avermelhadas em todo o meu corpo. Não coça, não dói. Mas, as vermelhidões incomodam quando se olha. Certamente, é algum tipo de alergia. À água salgada ou aos seus componentes. Acontece também quando entro em piscina. Talvez ao cloro ou algum componente desconhecido. Não testei ficar mais tempo debaixo do chuveiro, para comprovar que a minha alergia é à água. Já haviam me dado o apelido de “sugismundo”.

A rotina no hotel era acordar e comer o pequeno almoço, como se denomina o café da manhã em língua lusitana. Simples, onde a proteína era representada por um carapau. Para aqueles não acostumados ao termo, carapau é um peixe marítimo, do tipo da sardinha, porém, um pouco maior.

Após o café, saíamos para algum compromisso oficial ou para dar uma volta pela urbe. Embora de dimensões grandes, não havia muito o que ver ou fazer naquela capital.

Quando necessário, passávamos pela loja franca, assim denominado um estabelecimento grande, quase um supermercado. Na realidade, era uma loja duty free no centro da cidade. No sentido estrito da palavra, pois as transações eram feitas exclusivamente em Dólar ou Rand (moeda da África do Sul, chamada pelos nativos de Randes). Existem cidades que tem tais lojas fora dos aeroportos, tais como em Ciudad del Este, no Paraguai.

A nossa ida à loja franca era para adquirir cigarros, alguma bebida e, principalmente, alimentos não perecíveis. Destes, fazíamos o estoque necessário para o nosso consumo durante as semanas em que ficávamos no norte, em Marrupa.

Os nativos, quando arranjavam algum dólar ou rande, advindo de alguma transação dúbia com os seus meticais (Metical é a moeda moçambicana, que alguns ainda chamavam de escudos, moeda corrente antes da revolução), igualmente frequentavam a loja para comprar comida.

Mister se faz mencionar aqui, que comida sempre foi e será o bem mais fundamental de qualquer animal, incluindo o homem. A pobreza do país era bem visível em Maputo, onde as lojas portentosas ostentavam alguns pouquíssimos objetos, sejam calçados, roupas ou outro bem. Ninguém comprando. Os restaurantes, mantendo a tradição do tempo dos portugueses, montavam diariamente as mesas nas calçadas, sob as marquises dos prédios, à guisa do atendimento de supostos e eventuais clientes. Estes, ficaram horas sentados às mesas, simplesmente tomando chá gurué (um tipo de chá preto, produzido e muito consumido no país) ou água (de torneira mesmo, pois engarrafada não existia).

Os estabelecimentos de alimentos só ofereciam produtos básicos, como farinha, sal e açúcar.

Foi a primeira vez que experimentei a sensação de uma verdadeira impotência: ter dinheiro no bolso, mas não ter o que comer.

É simplesmente, desesperador.

Artesanato

Após a incursão até a loja franca e um rápido passeio pela cidade, retornávamos para o almoço no Moçambicano.

Este hotel era a nossa residência quando em Maputo: dormíamos, descansávamos, era o nosso home-office da época e, sobretudo tomávamos as nossas refeições.

O cardápio do almoço e janta não era muito variado. A proteína ficava por conta da entrada de salada e carapau. Em seguida, a sopa de legumes. Havia uma folha larga, que não consegui identificar do que era. No prato principal, arroz, feijão, batatas, alguns vegetais. Adicionalmente, vinha alguma carne, bovina ou suína ou frango, quase sempre grelhada.

Acho que depois do estágio em Moçambique, adquiri o hábito de ser um cara de pau por consumir muito carapau, diariamente, três vezes ao dia.

O momento mais esperado ficava por conta do café a ser servido após as refeições principais. Dirigíamo-nos ao salão, ao lado do lobby do hotel. O desfrutar dos momentos paradisíacos naquele lugar começava pela atmosfera do ambiente, com aquele cheirinho gostoso de café de qualidade. Como este era o único produto de consumo, não havia necessidade de fazer o pedido. Éramos servidos automaticamente, conforme a chegada. O importante era o ritual do cafeteiro. Para descartar o pó usado nos filtros, ele abria uma gaveta existente abaixo da mesa da cafeteira, estrategicamente forrada com lâminas grossas de madeira. O pó era retirado dos filtros na porrada, batendo-os violentamente na borda da gaveta, que já se apresentada desgastada de tanto receber as “filtradas”. Preenchia com novo pó para a próxima leva, ajustava e apertava os botões respectivos. Quando precisava a mistura com leite, punha a caneca com o líquido sob a mangueira metálica de onde saía o vapor barulhento para aquecer. Depois, era só deliciar o saboroso café.

Se o plano era sair para compras, um dos destinos mais movimentados era o mercado de artesanato existente no centro, não distante do nosso hotel.

No mercado, livre para o comércio em geral, o que predominava eram os objetos para adorno em casas, cortados e esculpidos manualmente. A matéria prima básica era a madeira oriunda de pau preto (pau de ébano – Diospyros ebenum, árvore nativa, da família das ebenáceas). Lembram-se da música de Paul McCartney, Ebony and Ivory? A que faz uma apologia sobre as peças de seu piano, construído com teclas brancas de marfim – presa de elefante, e teclas pretas com pau de ébano.

Outra madeira bastante utilizada no artesanato era a oriunda do pau de sândalo – Spirostachys africana, da família das euforbiáceas (mamonas), igualmente uma árvore nativa moçambicana. Esta madeira, mantém permanentemente um agradável odor de sua essência, que lembra o perfume do sândalo.

Outro produto usado no artesanato moçambicano é o marfim, oriundo das presas dos elefantes.

Alternativa para disfarçar o marfim, que já na época, era proibida a caça ao elefante para obtenção das presas, eram as dos javalis, espécie de porco do mato, bastante comum nas savanas africanas. Além de servir como alimento, as presas eram utilizadas para artefatos decorativos menores, bem parecidos com os confeccionados com o verdadeiro marfim.

É importante frisar que as obras artísticas eram pagas com o nosso precioso dólar, o qual os nativos conheciam como divisas. Assim, com o dinheiro obtido das vendas, os artistas podiam comprar alimentos na loja franca.

As nossas esposas e nossas casas receberam alguns de tais objetos artesanais.

Estivemos no estrito sentido, no país de origem de Ebony and Ivory. Uma das melhores inspirações sobre igualdade entre os humanos.

Encontro com o sentinela em Maputo

Quando estávamos em Maputo, ou na chegada ou no retorno para o Brasil, ficávamos alguns dias livres para resolver assuntos oficiais do projeto junto ao Ministério da Agricultura, na Universidade “Eduardo Mondlane”, no Consulado do Brasil ou com alguma outra autoridade ou contato sobre assuntos florestais.

Aconteceu numa daquelas empreitadas, que não conseguimos concluir nossa tarefa durante a luz do dia.

Já havia anoitecido e ainda tínhamos mais uma visita a fazer, à alguma autoridade de algum órgão oficial do Ministério.

Como o agendamento havia sido feito, consideramos que poderíamos concluir a última incumbência do dia.

Em Maputo, não dispúnhamos de veículo próprio, todos exportados para Marrupa. Dependendo da agenda, podíamos contar com o transporte por veículo do respectivo órgão. Em outros casos, tínhamos que andar, mesmo. Existia transporte público por ônibus, denominados machimbombo na língua macua, um dos inúmeros dialetos nativos de Moçambique. Não me lembro de ter tomado algum.

Acho que estávamos em três pessoas da equipe neste dia.

Assim que chegamos no endereço indicado, fomos nos apresentar à vigilância que estava dentro de sua cabine, na calçada, ao lado do portão de entrada da casa almejada.

            – Estamos aqui para falar com o Senhor Jonatão.

Naquela hora da noite, com um mínimo de iluminação deficiente das luzes da calçada, certamente a nossa abordagem despertou indagações.

O vigia foi tomado de surpresa. Levantou-se rapidamente de sua cadeira, ainda dentro da cabine, dizendo.

            – Afastem-se! Para trás!

Não estávamos entendendo a situação.

Ao o que, ele pega a sua carabina e sai da cabine.

Nós continuávamos ali, ao lado de sua casinha.

Com a carabina empunhada no ombro, diz mais uma vez.

            – Afastem-se! Para trás!

Continuávamos a não entender a situação. Em todo caso, obedecemos a clama e nos afastamos um pouco.

            – Pois bem. O que estaires a procurar?

            – Gostaríamos de falar com o Senhor Jonatão. Temos um agendamento com ele.

            – O Sr. Jonatão não se encontra. Saieu com a família para compras.

            – Ah! Obrigado. Vamos agendar para outro dia, então.

Saímos o mais rápido possível e ganhamos o caminho de volta ao nosso hotel.

No caminho, o diálogo ficou por conta de entender o comportamento do vigia.

Demorou um pouco até percebermos que, tanto de dentro da cabine, como quando saiu dela com a carabina no ombro, ao vigia não havia distância mínima para empunhar o rifle em caso de necessidade.

Daí, a sua insistência em ordenar que nos afastássemos. Era para criar o espaço livre para a movimentação e manipulação da arma.

Emoções de safari africano!

A bolacha moçambicana

Roberto Tuyoshi Hosokawa

Agora me lembrei de outra.

As crianças que não tinham parte das pernas.

A mídia inglesa comentava que eram vítimas de terem pisado granada bolacha ( um pequeno artefato explosivo em forma de bolacha, que os guerrilheiros as deixavam armadas durante a sua fuga). A granada ficava escondida debaixo das folhas na savana e, segundo a mídia, as crianças as acionavam ao pisarem.

A coisa explodia e a Cruz Vermelha era obrigada a amputar a perna da vítima para salvar sua vida.

Pois bem. Uma vez perguntei à respeito ao Mamoru Nakagawa, funcionário da ONU  a serviço em Moçambique. Mamoru, era refugiado da perseguição do Pinochet, governo pós Allende. É um nissei chileno que conheci em Santiago de Chile, que foi chefe da CORA –  Corporación de la Reforma Agraria durante a época de Allende.

Ele disse que não era nada daquilo veiculado nas notícias.  As crianças são espertas.  Sabem onde estão as bolachinhas explosivas. A mídia inglesa distorcia os fatos para enaltecer a presença da Princesa Diana em sua missão humanitária. 

Na realidade, as crianças são vítimas de cobra MAMBA. O veneno de Mamba é fatal porque não existe soro antiofídico específico. Para salvar a vida da criança, era necessário amputar para impedir a progressão da gangrena até a morte. A mamba africana é temida porque ela ataca para se defender. É cega e orienta-se pelo olfato e temperatura da vítima. 

Assim disse o Mamoru, hoje aposentado da ONU.

Está aí mais um evento digno de ser relatado como aventura africana dos participantes do projeto MADEMO-MADEBRAS-FUPEF.

Família passeando em Maputo

Dois dos participantes do projeto tiveram a coragem e ousadia de levar suas famílias para Moçambique.

Eu levei a Neusa e o meu primogênito Gustavo, que estava com pouco mais de dois anos de idade.

O Adi Sfredo, engenheiro do projeto, havia levado igualmente a esposa e o filho, em idade equivalente à do Gustavo.

Assim, os dois meninos tornaram-se bons amigos e companheiros, numa terra desconhecida e inóspita.

Todos éramos hospedes do hotel Moçambicano. Acredito que a piscina era o local mais frequentado pelas famílias. Na cidade, não havia o que ver ou fazer.

Segundo minha esposa, a primeira vez que saiu para dar uma volta, de repente, percebeu a quantidade de pessoas negras a sua volta. Ficou tão impressionada, que retornou imediatamente ao hotel. Não que fossem hostis. Era puro deslumbre de estar num local onde o aspecto das pessoas era incomum. Para a época, percepção aceitável.

As mães e os filhos, Gustavo e Rafael, passeando no centro de Maputo. 1981.
Parada para ver e brincar com macacos selvagens e livres nos parques. 1981.
Um jantar em família, por encomenda. Hotel Moçambicano, 1981.

Viagem à Ilha da Fantasia

Destino sonhado pelos moçambicanos da classe média alta: passear na Ilha da Inhaca.

Esta ilha localiza-se na baía de Maputo, distante a uma hora de voo com avionete, termo usado pelos nativos para designar o monomotor que fazia o trajeto da capital para a ilha. Na época, era o único meio de se chegar ao paraíso.

Lembram-se do seriado de TV “A Ilha da Fantasia”, com Ricardo Montalban? Foi filmado na Ásia, com algumas tomadas no México. Quando lá, visitamos o luxuoso hotel onde foram feitas algumas das filmagens.

Gran Plaza Hotel, Acapulco, México. 2011.

Ao se chegar à Ilha da Inhaca, o transporte até o hotel era feito numa carreta puxada por trator. Na carreta, havia cadeiras soltas e os passageiros tinham que se segurar e segurar as cadeiras para não cair. Um pouco parecido com o filme, onde os visitantes eram recepcionados e transferidos em automóveis de luxo. O trajeto até o hotel durava pouco, talvez uns 30 minutos após muitos sacolejos e esforço para se manter dentro da carreta.

O hotel não parecia nada com o que conhecíamos de Maputo. Era um monumento imponente, com varandas intermináveis, jardins babilônicos, lobby de cair o queixo e aposentos dos sonhos.

O melhor de tudo era, é claro, a comida. Lembrei-me bem do seriado de TV: servido no jardim, em mesas enormes e muito bem decoradas, com flores e outros ornamentos para acompanhar as fartas refeições: de manhã, no almoço e na tarde. A comida era internacional para atender ao gosto de todos, especialmente dos turistas. Muito bem preparada e servida, com os atendentes postados ao nosso lado, para qualquer pedido.

Para o entretenimento, havia os mais diversos tipos: salão de jogos, bilhar, brinquedoteca, várias piscinas para atender todas as idades, salão de massagens, sauna entre outros divertimentos.

Os passeios podiam ser feitos a pé por toda a ilha, com praias lindíssimas, dignas de filme.

Gustavo e Rafael brincando na praia da Ilha da Inhaca, Moçambique. 1981.
Neusa e Gustavo no hotel da Ilha da Inhaca, Moçambique. 1981.

Podemos dizer que já fomos à Ilha da Fantasia.

Mesmo que seja em pequena escala.

A viagem até Marrupa

Para a execução do projeto, diversos bens foram exportados para Moçambique, como 5 jipes Toyota de cabine estendida, inúmeras ferramentas de trabalho de campo, como facões, enxadas, picaretas, entre outras, diversos equipamentos de laboratório, como estufas, geladeiras, microscópios, lupas, entre outros e duas toneladas de alimentos não perecíveis como conservas em latas, bebidas diversas, leite em pó, café etc.

Tudo transportado por navio até o porto de Maputo e depois seguindo ao porto de Pemba, pelo Canal de Moçambique.

Após a liberação dos veículos, formou-se uma caravana de jipes e caminhões para o transporte até Marrupa, a sede do projeto. Um trajeto de uns 300 Km por estrada apenas parcialmente pavimentada, passando por diversos rios. A província do Niassa tem uma topografia pouco acidentada e assim, não houve grandes dificuldades.

Como sou bom de cama, ou seja, durmo em qualquer situação e a qualquer hora, ia no banco de trás do jipe, entre dois colegas. Estes impediam que eu caísse pelos sacolejos do veículo em trechos com buracos.

Situações de verdadeiro safari no trecho para se chegar à Marrupa. 1980.
Parada estratégica. No rádio, o Engenheiro Mansur. Depois, Professores Soares, Rosot e Tomaselli. Os demais, técnicos moçambicanos do projeto. 1980.
Quando o trecho era bom, a pausa para a parada era mais demorada e desfrutadora. 1980.

A pausa na savana africana

A vegetação de Moçambique é predominantemente a savana arbustiva até arbórea. É a vegetação semelhante ao cerrado brasileiro, que cobre a maior parte do Brasil central. Não existem árvores de grandes dimensões e geralmente seus troncos são bastantes retorcidos, com muita galhada. A casca é grossa para resistir ao fogo nos incêndios que ocorrem espontaneamente com frequência.

Em época chuvosa, a folhagem aparece rapidamente e cobre toda a vegetação, dando a aparência de uma floresta. Na estiagem, as folhas caem e o que se vê é aquela imagem desértica com a vegetação completamente seca, enxergando-se dezenas de metros floresta adentro.

Portanto, durante as nossas incursões para o interior, em viagem de jipe, a paisagem quase não mudava, mostrando a monotonia da savana. Dependendo da região, era possível encontrar formações de morros, quase sempre isolados e distanciados entre si. Estes acidentes geográficos são conhecidos como inselbergs, originário do alemão, que significa “montanhas-ilhas”.

Um exemplo de inselberg com cobertura florestal. Província do Niassa, 1980.

A monotonia da paisagem era quebrada quando encontrávamos alguns montes no meio da estrada. Grandes, de quase um metro de diâmetro por 30 cm de altura. Chegando mais de perto, descobrimos que se tratavam de bosta de elefante. Daí, ficávamos atentos para ver se conseguíamos avistar algum mastodonte.

Fora isso, as viagens eram bem tranquilas, em estradas de topografia plana, com poucos acidentes geográficos.

Estrada onde se podia encontrar bosta de elefante. 1980.
Imagem típica da savana africana em época chuvosa, com a vegetação em sua exuberância do verde. 1980.

Volta e meia, fazíamos paradas estratégicas para as necessidades.

Tudo tinha que ser feito ali, no ato e no fato, no meio da floresta, seja em época de chuvas, seja em época de estiagem, não importa.

Aconteceu numa das viagens para o interior, em época da seca em que a vegetação estava inteiramente desfolhada.

Adentrei a savana com o intuito de fazer o serviço completo, número um e dois.

Lá estava eu de cócoras, absorto em meus pensamentos ao mesmo tempo em que apreciava a monotonia da vegetação muito rala, quase transparente. Aproveitava para irrigar com muita ureia o solo ressequido e adubá-lo com o meu cocô.

De repente, ao olhar para o lado direito, veio-me à mente a cena de um filme que havia assistido na juventude. O protagonista estava em situação análoga à minha. Quando olha para o seu lado direito, vê um esqueleto humano inteiro, agachado na mesma posição que a sua. Lembra-se, então, que estava em plena região de nativos hostis e de formigas mortíferas e canibais. Com certeza, aquele esqueleto era o que sobrara do indivíduo atacado violentamente pelos insetos.

Ainda bem que eu vi apenas a paisagem vegetal, nenhum esqueleto!  

A sede do projeto em Marrupa

A sede do nosso projeto de cooperação ocupou a segunda melhor casa da cidade de Marrupa. A melhor, era a do administrador do município.

O terreno era grande, ocupado pela casa principal. Ali ficavam os dormitórios, único banheiro e uma grande sala multiuso.

A casa que serviu como sede do projeto, na vila de Marrupa. 1980.

Com o início do projeto, foram construídas outras facilidades, como o Laboratório de Pesquisa, em alvenaria e o refeitório, com estrutura em tronco de madeira e cobertura de palha. A cozinha ficava fora, com fogão à lenha e cobertura de palha. No terreno, havia também uma latrina, isolada num dos cantos, próximo ao gerador de energia elétrica por óleo diesel. A latrina era para o uso dos técnicos nativos do projeto.

Havia um português, remanescente aliado do governo revolucionário, que atuava como contraparte oficial. As instruções emanadas de Maputo eram repassadas por ele. Era o administrador da sede, com influência marcante na administração de Marrupa.

O refeitório do projeto e o laboratório de pesquisa, ainda em construção. 1980.
Laboratório no início do projeto, em 1981.
Interior do Laboratório. À direita, o falecido Prof. Carneiro e o nosso técnico florestal. À mesa, o Eng. Mansur. 1981.
Ensinando como herborizar. 1981.
Ensinando a produzir mudas. 1981.

Plantações experimentais

A minha incumbência no projeto ficou por conta dos assuntos de Silvicultura.

A ideia era mostrar a viabilidade técnica e econômica de plantios de espécies madeireiras nativas. Havia um elenco de meia dúzia de espécies moçambicanas com possibilidades de uso em reflorestamentos com fins para produzir madeira.

O pau-preto é de longe uma das mais preciosas madeiras de Moçambique. De crescimento muito lento, o seu cerne é formado por lenho de cor preta, usado em artesanato. Pau-rosa, pau-ferro, n’muoco e sândalo são igualmente madeiras apreciadas. Outra frente de pesquisa era estudar a viabilidade de implantar espécies exóticas de rápido crescimento como os pinus e eucaliptos, com finalidade de produção de madeira para energia e uso em massa.

Numa sociedade comunista não existe a propriedade de terras. O governo pode usar e abusar quando bem entender. Assim, próximo da sede e à beira de um riacho, foi estabelecida a área de pesquisa de campo, incluindo viveiro para produção de mudas e horta para consumo próprio.

O preparo do terreno foi fácil devido a existir pouca vegetação arbórea a ser erradicada. Assim, o plantio das mudas iniciou-se de imediato, logo após serem produzidas no viveiro.

Área experimental do projeto em 1980.
Plantio de N’muoco, num experimento de espaçamento. 1980.
Plantio de Pau-preto, num experimento denominado grupos densos. 1980.
Plantio de Pinus em espaçamento tradicional de reflorestamento. 1980.
Indicação do experimento com espécies moçambicanas. 1980.

Com o passar dos meses, percebeu-se nitidamente o comportamento das espécies estudadas.

As espécies moçambicanas mostraram adaptação para plantio a céu aberto, comprovando a viabilidade para reflorestamentos. No entanto, como se esperava, o crescimento era bastante lento.

As espécies usadas globalmente em plantios comerciais, como os eucaliptos e pinus, demonstraram adaptação e bom crescimento.

Por curiosidade, havíamos levado sementes de algumas de nossas espécies nativas do Sul do Brasil, como a araucária, a bracatinga e o guapuruvu, que são bastantes usadas comercialmente em nosso país.

Plantio experimental de Bracatinga, após um ano. 1981.
Plantio experimental de eucalipto, após um ano. 1981.
Plantio experimental de Guapuruvú, após um ano. 1981.

As espécies brasileiras introduzidas mostraram um excelente crescimento inicial. No entanto, não resistiram ao ataque severo de formigas cortadeiras, um tipo de cupim. Na foto com o guapuruvú, é possível ver um pequeno morro no meio do terreno. Na realidade, trata-se de um formigueiro de cupim. Os animais trabalhavam no subterrâneo, consumindo as raízes. Assim, as mudas pareciam verdejantes na superfície, mas estavam morrendo pelas raízes.

O estudo e a pesquisa são essenciais para demonstrar que nem tudo parece como na realidade é.