Alemanha dos anos 70

Uma viagem no tempo e no espaço, repleta de experiências e peripécias de um casal recém-casado num país diferente em tudo: idioma, costumes, etnias, comida, vestuário, economia, política, etc.

Relatos de fatos ocorridos, acrescidos de bom humor, fantasia, ironia, tudo de forma simples e  elucidativa.
Conheça lugares, termos alemães, comidas típicas, costumes exóticos, etc.
Certamente, a leitura dos textos servirá para enriquecer um pouco a cultura e conhecimento dos leitores.
A coleção poderá contar com a colaboração de autores convidados.

CONTEÚDO

Edição 2024

Edição 2023

Há 50 anos . . .

Este capítulo introdutório é comemorativo ao Jubileu de Ouro da minha primeira viagem internacional, com destino à Alemanha, denominada na época República Federal da Alemanha (Bundesrepublik Deutschland). Mais comumente era conhecida como Alemanha Ocidental.

Após nos casarmos em meados de 1971 em Londrina, Neusa e eu passamos a lua de mel em Campos do Jordão, numa semana das mais frias que experimentamos. Daí, a importância do aconchego debaixo das cobertas em nossa alcova nupcial. Dalí, fomos direto morar na casa administrativa da antiga Estação de Pesquisas Florestais de Santo Antônio da Platina, da Universidade Federal do Paraná (UFPR), da qual fui responsável até o final daquele ano. No período, fiz viagens semanais até Curitiba, de camioneta, por estrada de terra até Jaguariaíva e daí, por asfalto até a Capital. Com a finalidade de lecionar aulas nas segundas-feiras e retornar durante a noite para a Estação. Foram algumas as vezes que tive que desenterrar as rodas da camioneta encalhada no barro de terra roxa do nordeste do PR. Desde então, viagens frequentes por terra, ar e mar foram as tônicas que impregnaram toda a minha vida, até hoje.

Figura 1: Mapa do Estado do Paraná, que mostra o trecho de mais de 400 km percorridos semanalmente, ida e volta, de Santo Antônio da Platina a Curitiba.

Em 1972 iniciou-se um projeto de cooperação entre a UFPR e a Universidade de Freiburg, da Alemanha. Fui convidado a fazer parte do grupo designado a realizar o doutoramento naquele país. Foram poucos meses para todo o preparo de uma aventura acadêmica, que para a época pode ser considerada bastante arrojada. Eu estava com 25 anos de idade e a Neusa, 22. O estudo do alemão foi rápido e rasteiro, de apenas três meses.

Graças à ajuda mútua, entre mim e os contrapartes alemães, que tinham vindo também como aventureiros de primeira viagem, fomos iniciados no idioma, costumes, alimentação, assuntos atinentes à Engenharia Florestal, entre outros aspectos importantes para minimizar o impacto na chegada ao novo Velho Mundo.

Foi no mês de abril de 1973, exatamente há 50 anos que, ansiosos e ao mesmo tempo, temerosos, fomos para Londrina, onde nos despedimos dos parentes de ambas as famílias. De lá, o primeiro destino foi o aeroporto de Viracopos, em Campinas. O atual aeroporto de Guarulhos só foi construído 12 anos mais tarde.

Quando chegamos ao aeroporto do Galeão, no Rio de Janeiro já era noite. O voo para a Alemanha estava previsto para sair bem tarde. Aqui aconteceu a primeira surpresa memorável. Acho que o controle de lotação de passageiros e peso total do avião não tinha sido eficaz. Assim, toda a bagagem, que já tinha sido embarcada, teve que ser retirada e enfileirada no pátio, ao lado da aeronave. Os passageiros tiveram que ser pesados, um a um e depois disso, cada um teve que se dirigir ao local onde estavam as malas e identificar as suas, para então, embarcar no avião. Parece coisa de cinema… A nossa mala era uma única, de pequenas dimensões, pois não tínhamos muita roupa. Para as condições climáticas vindouras, não adiantava mesmo levar roupa brasileira.

Refletindo, o mundo era mais eco simpático. Mesmo tomando banho diariamente, usava-se a mesma roupa dois dias seguidos. Comparado com os costumes modernos, consumia-se metade da água, detergente, energia, homens-hora de serviço, vida útil de equipamentos como lavadora, ferro de passar, etc. Metade de dinheiro para nova roupa, homens-hora para a aquisição, combustível, dinheiro para estacionamento, e assim por diante.

Figura 2: Avião Boeing 707, o mesmo tipo narrado nesta história. De quatro motores e cabine estreita, com capacidade de 166 passageiros.

O avião era um Boeing 707, um quadrimotor de cabine estreita, um dos mais seguros fabricados até hoje. A empresa era a VARIG. O trajeto com esta aeronave foi: Rio de Janeiro, Recife, Dakar, Frankfurt.

Sendo o meu primeiro voo, tudo era novidade: a escada para acesso, a longa caminhada pelo corredor central, estreito e ladeado por duas fileiras de três poltronas. Estou descrevendo a classe econômica.

A gentileza dos comissários de bordo, na época, ainda denominadas de aeromoças, marcou a minha preferência por certas mordomias. Jantar servido, com direito a sobremesa e oferta de produtos sem impostos, como cigarros e cosméticos. Hora de descansar. Não havia a telinha para assistir filmes, como nas aeronaves modernas. O que me marcou foi o teto que, quando as luzes se apagaram, ficou visível uma imagem do céu noturno, com inúmeras luzinhas simulando estrelas brilhando no fundo azul escuro.

Quando isso aconteceu, já havíamos deixado o continente sul-americano e estávamos em pleno Oceano Atlântico rumando em direção ao norte da África. A única parada foi em Dakar, capital do Senegal, o ponto mais ocidental do continente.

Era de madrugada. Saindo de um ambiente condicionado, talvez uns 22ºC, o impacto do calor seco que senti ao chegar à porta do avião para descer, de uma temperatura de talvez uns 40ºC, foi inédito e inesquecível. Anos depois, em Manaus, Imperatriz e Cuiabá relembrei com nostalgia aquele primeiro momento. A parada foi rápida, apenas o suficiente para “tirar água do joelho”, comer alguma coisa estranha e olhar algumas pequenas lojas.

Figura 3: Mapa onde é mostrada a rota da viagem desta história: Londrina-Campinas-Rio de Janeiro-Recife-Dakar-Frankfurt, cruzando a linha do equador e escala em Dakar.

Era de manhã quando chegamos ao nosso destino final, aeroporto de Frankfurt. Outro impacto, totalmente diferente do imediatamente anterior: acesso do avião até o saguão por finger ou ponte telescópica, sem grande diferença entre as temperaturas. Após os trâmites de imigração, o deslumbre do tamanho do aeroporto, iluminação, beleza e modernidade das lojas e outras facilidades. A primeira providência foi a troca de traveller checks por dinheiro, no caso, marco alemão, ainda no aeroporto. 

Frankfurt é talvez um dos poucos ou único, a ter um terminal ferroviário de metrô dentro do próprio aeroporto. Aproveitamos para adquirir passagens até a cidade de Freiburg im Breisgau, nosso próximo destino final.

Apfelsaft

O nosso segundo destino final era a cidade de Freiburg im Breisgau, sul da Alemanha, próximo das divisas com a Suíça e França.

Esta viagem foi feita em trem. Era a primeira vez que eu andava de trem, como no caso do avião.

As passagens já tinham sido compradas no aeroporto de Frankfurt. Quando lá desembarcamos, fomos recepcionados por Martin Weissinger, um dos jovens pesquisadores alemães que havíamos conhecido em Curitiba quando o convênio UFPR-Freiburg iniciou, um ano antes. Foi um dos pesquisadores com o qual havíamos consolidado uma boa amizade, a qual permaneceu viva e cultivada até mesmo após a nossa ida para o norte da Alemanha, em Hamburg, nosso terceiro e último destino final.

Figura 1: Trecho da primeira viagem de trem na Alemanha, de Frankfurt a Freiburg, capital da Floresta Negra (Schwarzwald).

Graças à ajuda de Martin não nos sentimos estranhos naquele novo Velho Mundo. Entre outras orientações, ele nos auxiliou na troca de dinheiro e aquisição dos bilhetes de trem. Além disso, acompanhou-nos neste segundo trecho da viagem. Morando em Freiburg, ele havia ido até Frankfurt com a intenção de nos recepcionar. 

Então, sentíamos como se estivéssemos em nossa segunda lua de mel, com direito a guia e tudo o mais. Aliás, eu sempre comento que nós desfrutamos da mais longa lua de mel que qualquer casal poderia curtir. Foram três anos e meio vivendo a dois na Europa, deleitando-se com as facilidades e ambientes de primeiro mundo. Apenas com a única preocupação de estudar e pesquisar para o doutoramento e com direito a bolsa de estudo do DAAD (Deutscher Akademischer Austauschdienst – Serviço Alemão de Intercâmbio Acadêmico), recebendo em marco alemão.

A euforia e a despreocupação por estarmos bem acompanhados propiciaram uma tranquilidade tal que nem sentimos a viagem de quase 300 km, com apenas uma parada em Karlsruhe, já no estado de Baden-Wurttemberg. Boa conversa, paisagens deslumbrantes e comida e bebida a bordo! Sendo para mim uma viagem inaugural de trem, tudo era novidade. Até o carrinho de venda de alimentos levou-me à lembrança da recente viagem de avião. Aqui aconteceu o primeiro e inesquecível deslumbre gastronômico.

Ao pedirmos as bebidas, Martin sugeriu o suco de maçã, conhecido naquele país como Apselsaft. Certamente, por ter sido a primeira vez que sentia o gosto de um suco de maçã, o sabor agridoce daquela bebida ficou na minha memória para sempre, como o melhor. Todos me conhecem como abstêmio para bebida alcoólica.

Figura 2: Ilustração do primeiro suco Apfelsaft, degustado durante a viagem de trem.

Assim, nenhuma outra bebida ou suco de fruta compara-se à lembrança daquele primeiro gole do Apfelsaft ingerido naquela viagem de trem. Não me recordo da marca. Lembro-me que era contido numa pequena garrafa de vidro. Era do tipo centrifugado, transparente. Posteriormente, experimentei o do tipo não centrifugado e não gostei. Outras inúmeras marcas também. Nenhuma outra origem igualou-se àquela.

Por isso mesmo, destaco este capítulo da nossa história, intitulando-o com o nome daquela bebida do mundo dos sucos de frutas que eternizei na memória.

Figura 3: Nubentes na chegada ao Bahnhof (estação ferroviária) de Freiburg.
Abril de 1973.

Era início da tarde quando chegamos ao destino final daquela viagem. Foi uma inesquecível lembrança do início de nossa aventura acadêmica europeia.

A truta fresca do Kolpinghaus

O tratamento vip não ficou só na viagem acompanhada desde o aeroporto de Frankfurt até a estação ferroviária de Freiburg.

Na estação, estava a nossa espera o saudoso professor Dr. Gerhard Speidel, então chefe do Departamento de Economia e Ordenamento Florestal da Universidade “Albert Ludwig” de Freiburg.

Nós já conhecíamos o Dr. Speidel mesmo antes do convênio de Freiburg. Ele fazia parte da equipe de peritos da FAO (Food and Agricultural Organization – Organização para a Alimentação e Agricultura, órgão das Nações Unidas) que, nos idos de 1961, deu início a antiga Escola de Florestas da UFPR (onde me graduei, em 1969). Foi o meu professor de Economia e Ordenamento Florestal e cultivamos uma boa amizade familiar desde então.

Foi o meu primeiro deslumbre acadêmico ser recepcionado por uma personalidade que, já na época, era uma reconhecida e respeitada autoridade na área da Engenharia Florestal em nível internacional. Ao nível pessoal e familiar, o Dr. Speidel e sua esposa eram pessoas do mais fino trato, gentis e cordiais e os nossos encontros foram sempre simpáticos e em português. Volta e meia, entremeavam-se termos alemães, importantes para o nosso aprendizado.

Dirigindo o seu fusca azul marinho, conversível, mesmo com sua mão direita lesionada durante a guerra, ele nos conduziu para o nosso primeiro abrigo em terras alemãs. Fomos hospedados no hotel “Kolpinghaus”, no centro da pequena cidade de Freiburg. Construído em estilo alemão, com a cobertura em ângulo agudo para minimizar o acúmulo de neve, era muito confortável, com quartos bem dimensionados. O nosso quarto ficava no segundo piso, de cuja janela era possível ver uma pequena parte da cidade, principalmente do telhado das construções.

Figura 1: Vista do telhado dos prédios da Universidade de Freiburg. No horizonte, o Rio Reno que divisa com a França. 1973.

Da janela do nosso quarto vem à lembrança a primeira impressão indelevelmente armazenada na memória: a visão branca e o cheiro da neve acumulada do lado de fora da abertura, logo ao despertar. Em plena primavera, no mês de abril, a neve ainda persistia firme nos telhados e nas ruas e calçadas. 

Igualmente, nas montanhas e florestas o branco ainda predominava a paisagem. Nos anos seguintes, experimentei outras sensações do mesmo fenômeno atmosférico, em outras localidades. O som único, característico da pisada na neve acumulada, ficou gravado eternamente na memória auditiva. Dois anos depois, em 1975, assisti em Hamburg ao filme “Dersu Uzala”, de Akira Kurosawa. Numa das cenas mais dramáticas, o ator título percorre sobre a neve na floresta, produzindo aquele som característico que imediatamente me levou à própria experiência em andanças nas florestas nevadas do norte da Alemanha.

Figura 2: No morro Schlossberg com vista para as montanhas nevadas da Floresta Negra.1973
Figura 3: Montanha nevada da Floresta Negra.

Naqueles primeiros dias freiburguenses, experimentamos uma inesquecível aventura gastronômica. O hotel “Kolpinghaus” tinha um restaurante, chique e aconchegante, o qual nos despertou a curiosidade em provar a sua comida. Foi numa das primeiras noites que marcamos o nosso debute naquele ambiente. Logo na entrada do salão, despertou-nos a atenção, a decoração do local com um grande aquário num nicho relativamente discreto. Mesmo assim, tive a curiosidade de contar a pequena quantidade de peixes que ali estavam abrigados. Sendo a nossa iniciação na gastronomia local, escolhemos um prato de truta com amêndoas. Pedido feito, demora condizente com a escolha. Valeu a pena a espera, pois a truta estava especialmente saborosa, com amêndoas semi-tostadas e fartamente regada com manteiga derretida. Peixe degustado, paga a conta, hora de sair para descansar o estômago satisfeito numa cama aconchegante.

Eis que na entrada, agora saída daquela sala de comensais, resolvo olhar uma vez mais os peixes nadando no aquário. Notei que a população havia diminuído. Como eu não conhecia a espécie nadante, perguntei a um dos funcionários. Tratava-se de trutas das montanhas da Floresta Negra. Concluí que o frescor da truta degustada era devido ela ter sido “pescada” daquele aquário imediatamente após termos feito o nosso pedido no restaurante!

A sensação de remorso daquela aventura gastronômica pode ser comparada a de quando você senta no balcão de um kaiten (sashimi servido em esteira rolante) bem próximo do sushi-man!

 

Figura 4: Uma ideia do prato de truta fresca do hotel.

Tempos de Freiburg

Parte 1: Os preparativos da viagem à Alemanha

Carlos B. Reissmann*

No Brasil da década de 70 vivia-se o “milagre brasileiro”, talvez até sem se dar conta disso de forma concreta. No entanto, no exterior, o Brasil chamava a atenção por um crescimento nunca antes registrado a ponto de surpreender a geopolítica internacional.

Em um trecho do editorial de ROETT (1976), pode-se ler: ”a coalizão entre oficiais militares e tecnocratas civis mudaram a imagem prevalente de gigante adormecido ou de um Edem Tropical”. 

Independentemente da opinião dos vários analistas sociais e econômicos da época, no meio acadêmico o foco era o jovem curso de Engenharia Florestal em ritmo acelerado de crescimento. Bem ali, na Rua Bom Jesus 650, em Curitiba. Os docentes brasileiros trabalhavam em uníssono com os professores e pesquisadores do Convênio de Freiburg com total desprendimento e idealismo. O Convênio de Freiburg fora recém assinado em outubro de 1970 e realizado entre a Universidade Federal do Paraná e a Universidade Albert Ludwig de Freiburg i. Br. – Alemanha, (MACEDO, 1982). Eu nem ambicionava um curso na Alemanha de tão inatingível que me parecia. Era como se um grande muro, como aqueles da era medieval impedisse qualquer ideia para além de minhas fronteiras.

Abriam-se frentes de pesquisa em várias áreas da Silvicultura, Manejo, Inventário Florestal, Tecnologia e Anatomia da Madeira, interagindo com profissionais que vieram de uma longa tradição no setor florestal, investigando desde o plantio até o pleno beneficiamento da madeira.

Eu atuava diretamente como contraparte do Dr. Ernst E. Hildebrand, que era da área de Química do Solo e Nutrição Florestal. Uma área nova para mim, mas que me entusiasmava muito.

Nessa época eu ainda realizava minha dissertação de mestrado, orientado pelo Prof. Dr. Winfried E. H. Blum, que coordenava o Convênio na época. Por ocasião de uma coleta de material acompanhou-nos o Prof. Heinz Zöttl, professor e Diretor do Instituto de Solos e Nutrição Florestal da Universidade Albert Ludwig de Freiburg.

Mais tarde, o Prof. Blum me antecipou que o Prof. Zöttl me aceitaria como doutorando no seu Instituto, em Freiburg. Recomendou que eu me preparasse nesse sentido.  Estava de posse da escada para transpor o muro imaginário da impensada Alemanha.

Defendida a dissertação em dezembro de 1976, já me preparava, coletando solos e acículas (folhas em forma de agulhas), em povoamentos de Pinus taeda e P. elliottii, situados entre Telêmaco Borba-PR e Passo Fundo-RS.

Alemanha! Liliane (minha esposa) e eu faríamos o caminho inverso de nossos antepassados europeus na travessia do Atlântico.

Em 08 de outubro de 1977 decolava de Curitiba com ela, nossa filha Renata de ano e meio e nosso filho Carlos Rodolfo de três meses de idade. Outro casal, Jorge e Nazareth, também com dois filhos pequenos, viajavam conosco com o mesmo propósito.

Voamos num lindo 707 da Lufthansa, via Dakar. Quando pousamos avistei um solo vermelho como os nossos Latossolos do norte do Paraná e uma densa vegetação de capim elefante. Nem parecia que havia atravessado o Atlântico. Quase me sentindo em casa pensei:

Gondwana, Pangéia! Fui tomado pela sensação de constatar com meus próprios olhos a teoria de Alfred Wegener, formulada no início do século XX sobre a deriva continental.

Estávamos acomodados nas últimas poltronas da classe econômica. Bem perto dos banheiros e da cozinha onde preparávamos as mamadeiras das crianças sem muito transtorno. Foi divertido, emocionante e até assustador em determinado momento, quando fomos surpreendidos por uma forte sacudida pela turbulência. Durante a viagem, um grupo de argentinos cantava vez por outra intercalando o choro e a gritaria de nossas crianças impacientes.

Grande dia, deixávamos o ensolarado Brasil para trás e mergulhávamos no outubro já cinzento de Frankfurt e a “sopa de névoa” de Freiburg como descrito por meu orientador Prof. Zöttl, que foi nos buscar no aeroporto. Também nos recepcionando estavam alguns colegas brasileiros precursores para nos “escoltarem” até Freiburg. Em nosso apê, haviam providenciado um oportuno rancho, pois aos domingos estava tudo fechado, exceto bares e restaurantes.
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Macedo,J.H.P. Uma Década de Convênio com Freilburg – RELATOS – Curitiba. José Henrique Pedrosa Macedo (ed), 1982. 54 p.
Roett R. Brazil in the Seventies. (Foreign policy: 1) (AEI studies: 132). Riordan Roett (Ed.),Johns Hopkins School of Advanced International Studies – Washington D. C. 1976. 131 p.

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Carlos Bruno Reissmann, nascido em Porto União – SC, em 1945. É Engenheiro  Florestal pela UFPR. Realizou o doutorado na Albert Ludwig Universität de Freiburg i. Br.- Alemanha e Pós-doutorado na Michigan State University – EUA.  Publicou três livros, sendo um em destaque, A Fada do Mangue, adaptação para uma linguagem infanto-juvenil de resultante de projeto científico em questões ambientais. Da sua produção científica ainda constam 108 artigos em periódicos e 10 capítulos de livros.

Tempos de Freiburg

Parte 2: Finalmente residentes em Freiburg

Carlos B. Reissmann*

Para nossa instalação efetiva havia várias questões de caráter administrativo a serem resolvidas, tais como inscrição na universidade, abertura de contas bancárias, contrato de aluguel, compra de utensílios domésticos, etc. Tudo foi resolvido sob a tutela do atencioso José Geraldo Carneiro meu ex professor e saudoso bom amigo.    

Recém chegados, estranhamos o horário de bondes e trens, pois era difícil crer que 13h37min por exemplo, fosse um horário plenamente obedecido. O que depois se confirmava, salvo raríssimas exceções. Impressionava também, a estrita obediência aos sinais de trânsito, tanto de motoristas quanto de pedestres.

O sotaque da região era muito diferente daquele que eu trazia de casa, o alemão falado na Alta Saxônia, criando alguns embaraços na hora de pedir informações.

Logo eu iniciaria meus estudos no Instituto de Solos e Nutrição Florestal da Universidade Albert Ludwig (Figura 1). A Universidade foi fundada em 1457 e inaugurada em 1460. Quarenta anos antes de Cabral aportar na costa brasileira.

Figura 1: Ilustração da Universidade Albert Ludwig de Freiburg i. Br. em 1911.

A ilustração da Figura 1 consta do álbum fotográfico e histórico da universidade de acordo com Rudolph-Werner Dreier, publicado em 1991. O Instituto de Solos e Nutrição de Plantas está destacado em branco. Funciona até hoje no mesmo local, na Bertoldstrasse 17, onde modernos bondes circulam atualmente.

Os edifícios da Universidade estão associados aos Jesuítas, cuja ordem ali se instalou em 1620 e construiu o grande colégio de então.

Agora eu havia transposto meu imaginário muro. Não tão imaginário assim, pois dele ainda restavam os portais Martinstor, construído por volta de 1202 e o Schwabentor (Fig. 2), sendo este último mais recente, construído em torno de 1250.

Figura 2:  Ilustração da Schwabentor, por Ernst Hildebrand 1992

A pintura da Figura 2 é uma reprodução artística em aquarela, de um dos portais remanescentes. Obra do meu saudoso amigo e contraparte Ernst.

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Carlos Bruno Reissmann, nascido em Porto União – SC, em 1945. É Engenheiro  Florestal pela UFPR. Realizou o doutorado na Albert Ludwig Universität de Freiburg i. Br.- Alemanha e Pós-doutorado na Michigan State University – EUA.  Publicou três livros, sendo um em destaque, A Fada do Mangue, adaptação para uma linguagem infanto-juvenil de resultante de projeto científico em questões ambientais. Da sua produção científica ainda constam 108 artigos em periódicos e 10 capítulos de livros.

Tempos de Freiburg

Parte 3: O dia a dia em Freiburg

Carlos B. Reissmann*

Uma coisa bastante agradável no Instituto era a hora do intervalo dos trabalhos. Reuniam-se todos numa sala em torno de uma grande mesa, desde o diretor do Instituto, secretária, doutorandos, técnicos e laboratoristas (Fig. 3). Ali, discutia-se abertamente o andamento dos trabalhos, celebravam-se aniversários com bolo e café, bons resultados das pesquisas eram brindados com vinho branco diluído com água gaseificada. Às vezes, compartilhavam-se problemas de família também. Além disso, havia o dia do “Betriebsausflug” ou passeio institucional para algum parque ou local aprazível, realizado no horário do expediente com o objetivo de manter o bom convívio do grupo.

Figura 3:  Reunião de fim de ano, último dia antes do natal de 1979. Da esquerda para direita, Prof. Zöttl, Sra. Schlenker a laboratorista, uma doutoranda e eu.

Havia vários brasileiros da UFPR, entre bolsistas do DAAD, do CNPq ou da Fundação Humboldt, estudando em diferentes áreas de conhecimento. Como integrantes do Convênio de Freiburg éramos em sete doutorandos ao todo. Morávamos no mesmo núcleo residencial na Ferdinand WeissStrasse., 96 no bairro Sthülinger.

Encontravamo-nos mais amiúde e normalmente nos reuníamos às sextas-feiras à noite para confraternizar. Com revezamento alternado, um dos conjuges era designado para cuidar dos filhos pequenos que ficavam em casa.

Outras oportunidades nas quais nos reuníamos eram os aniversários, tanto das crianças quanto dos adultos (Fig. 4 e Fig 5).

Figura 4: Crianças reunidas à mesa de festa, no segundo aniversário de Carlos Rodolfo diante do bolo.

Figura 5: Comemoração do aniversário de Carlos Rodolfo (Agosto 1979), com os amigos reunidos em nossa sacada. À esquerda vemos Dietrich Burger, pesquisador e professor do Convênio de Freiburg e padrinho do Rodolfo.

Nesta sacada do apartamento a Liliane teve uma experiência inusitada. Num dia de inverno com bastante sol não atentou para o fato de a temperatura estar abaixo de zero. Estendeu ali algumas toalhas para secar e quando as foi recolher estavam duras como tábuas.

Essas reuniões com os amigos nos ajudavam a renovar as energias e desabafar a respeito das dificuldades ou algum inconveniente, buscando um ombro amigo. Como é de se esperar, o trabalho de doutorado exigia muito empenho em biblioteca, laboratório, seminários e/ou em casa de vegetação.

Nem tudo eram flores. Eu tive muita dificuldade ao usar uma casa de vegetação que estava ocupada por uma coleção de orquídeas do professor de fisiologia vegetal, aos cuidados de uma laboratorista. Foi preciso muita diplomacia (leia-se jeitinho), para compartilhar com meus experimentos. Suponho que ela temia que meu experimento pudesse contaminar e adoecer as orquídeas.

Na apresentação de um seminário, com meus primeiros resultados aconteceu um fato bastante curioso. O crescimento rápido de nossos plantios florestais não era do conhecimento de todos os pesquisadores alemães. Quando apresentei dados de crescimento de um sítio de Pinus taeda com altura dominante de 16 metros aos oito anos de idade, um assistente levantou e, pedindo licença, corrigiu meu número oito na lousa acrescentando um zero, 80 portanto. Não acreditara que o pinus pudesse crescer 2 metros em altura por ano. Na opinião dele eu certamente errara. Precisei corrigi-lo e apaguei o zero e o Prof. Zöttl teve que intervir para convencê-lo em definitivo.

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Carlos Bruno Reissmann, nascido em Porto União – SC, em 1945. É Engenheiro  Florestal pela UFPR. Realizou o doutorado na Albert Ludwig Universität de Freiburg i. Br.- Alemanha e Pós-doutorado na Michigan State University – EUA.  Publicou três livros, sendo um em destaque, A Fada do Mangue, adaptação para uma linguagem infanto-juvenil de resultante de projeto científico em questões ambientais. Da sua produção científica ainda constam 108 artigos em periódicos e 10 capítulos de livros.

Tempos de Freiburg

Parte final: Percalços e amenidades

Carlos B. Reissmann*

Dentre o grupo de brasileiros nos ajudávamos mutuamente e trocávamos informações importantes, sem nunca esquecer da nossa universidade e do nosso amado Brasil.

Durante os passeios pela encantadora Floresta Negra ou aos lagos belíssimos como o Titisee (Fig. 6), lembrávamos saudosos da Serra do Mar e do nosso litoral paranaense.

Figura 6: Liliane com nossos filhos Renata e Rodolfo junto ao Lago Titisee, primavera de 1978.

Liliane completaria os estudos de alemão no Instituto Goethe oferecido às esposas dos doutorandos. Nosso filho mais novo ficava sob os cuidados de uma brasileira, esposa de um doutorando vizinho, enquanto Renata frequentava o jardim de infância. 

Foi nesse período no Goethe Institut que Liliane conheceu esposas de imigrantes portugueses. Por vezes, os encontrávamos nos parques. Como estavam na Alemanha há mais tempo, nos ajudavam com compras de produtos que normalmente não se encontrava nos mercados alemães, tais como o saboroso café colombiano, feijão preto e, inclusive o bacalhau salgado. Eles mantinham uma pequena cozinha comunitária, “ligeiramente clandestina”, nos fundos de uma oficina mecânica onde nos confraternizamos e almoçamos juntos alguns domingos.

Certa vez, Liliane, eu e as crianças e mais dois casais, fomos até Hamburg visitar o Dr. Hanz Georg Richter que já havia retornado à Alemanha. Ele foi meu mentor numa bolsa de iniciação científica em 1970. Suspeito que esse estágio pode ter sido o primeiro degrau de minha escada imaginária.  Jorgo, como era conhecido entre nós, recebeu-nos em seu jardim e depois na casa, no seu canto alemão envidraçado, com refrescos, cerveja e uma torta de ruibarbo que ele mesmo fizera. Nem todos apreciaram a torta, mas foi um final de tarde maravilhoso com muitas celebrações e lembranças maravilhosas junto com sua família.

Em qualquer lugar do mundo nos shoppings, supermercados ou lojas há sempre um cestão de ofertas com alguns produtos, colocados em algum ponto estratégico do estabelecimento.

Numa dessas ocasiões, passando pela seção de roupas, chamou-me a atenção um grande cesto cheio de pijaminhas para crianças, tipo macacão, com estampas coloridas em formato de corações, onde várias mamães disputavam o produto em oferta. Entrei na disputa procurando os corações verde-amarelos e azul-brancos em referência à bandeira do Brasil. Meu empenho na busca dessas duas cores chamou a atenção da gerente, que veio me questionar pelo alvoroço que eu causava. Ao dizer que buscava as cores da nossa bandeira, não acreditou que eu fosse brasileiro, a ponto de eu ter que apresentar os documentos como bolsista do DAAD. Disse-me que achava que no Brasil só existissem pessoas morenas, ficando muito impressionada quando lhe falei sobre as várias origens étnicas que convivem no nosso país, muitas delas vindas da Europa.

Tendo que ampliar meus conhecimentos sobre química analítica, fui tomar algumas aulas na Faculdade de Farmácia, que oferecia tal curso no semestre de inverno. Estacionei na rua em frente ao prédio e deixei o carro sob uma garoa gélida. Quando retornei ao veículo, um Ford Escort amarelo, havia um bilhete preso sob o limpador de para-brisas. Lia-se o seguinte: desculpe, abalroei e danifiquei o seu carro na lateral devido a derrapagem no glatteis (gelo liso traduzindo literalmente). Deixo meu telefone e da minha seguradora, por favor, entre em contato.

É um acontecimento muito comum, quando uma fina camada de gelo cobre a superfície do solo gelado. Às vezes, é difícil andar e permanecer em pé, direcionar ou frear o carro. De início me assustei e não sabia muito bem como proceder, apesar de estar estacionado regularmente e ainda dentro do prazo.

Falei com um colega do instituto, que fez toda a intermediação e agendamos uma visita e inspeção pela seguradora. Dois de meus colegas brasileiros deram uma olhada e me disseram que os amassados poderiam ser facilmente consertados por eles mesmos em nossa garagem. Uma boa cera em cima, polimento e o carro ficaria como novo. Orientaram-me no sentido de optar pela indenização em espécie em vez de consertá-lo em uma oficina indicada pela seguradora. 

E assim foi feito. Meus amigos funileiros deixaram o meu “carango” quase novo novamente.

Como há tempos eu vinha namorando uma Nikon, que tenho até hoje, apliquei toda a indenização na compra da câmera e ainda deu para comprar uma objetiva zoom de 200 mm da Vivitar! Tudo graças à amizade e ao jeitinho brasileiro.

Antes de retornar ao Brasil, vendi o fordinho ainda bastante apresentável a uma laboratorista do instituto. Ela me escreveu um ano depois que, numa noite de bebedeira, o marido errou uma ponte e caiu na valeta. Dessa vez não tinha conserto para o carro, mas o marido estava bem.

Saudades de um bom tempo de aprendizado e companheirismo.

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Carlos Bruno Reissmann, nascido em Porto União – SC, em 1945. É Engenheiro Florestal pela UFPR. Realizou o doutorado na Albert Ludwig Universität de Freiburg i. Br.- Alemanha e Pós-doutorado na Michigan State University – EUA.  Publicou três livros, sendo um em destaque, A Fada do Mangue, adaptação para uma linguagem infanto-juvenil de resultante de projeto científico em questões ambientais. Da sua produção científica ainda constam 108 artigos em periódicos e 10 capítulos de livros.

Eintopf

Os primeiros seis meses na Alemanha passamos em Freiburg com a finalidade precípua de estudar o alemão. Frequentei o Instituto Goethe durante todo o tempo. Minha esposa tomou aulas naquela instituição nos últimos três meses, tudo pago pelo DAAD. Na primeira metade do tempo na localidade, a Neusa realizava autoestudo de alemão e tomava algumas aulas gratuitas na Universidade.

O nosso dia a dia era constituído por aulas na parte toda da manhã, almoçar e perambular pela cidade no restante do dia. As tarefas e estudo do idioma eram realizadas à noite. Como eu sempre gostei de gibi, comprava as historietas de Walt Disney em alemão, do Pato Donald, Mickey etc. De muitas estórias, eu já conhecia o texto em português e assim, era fácil entender os diálogos em alemão. Certamente, isso ajudou bastante o meu aprendizado do idioma.

 Foi nos passeios à tarde que tivemos a oportunidade de conhecer cada canto da cidade, principalmente os centros comerciais e instituições turísticas como museus e igrejas.

Catedral Münster de Freiburg, 1973
Na torre da Münster, 1973

Em finais de semana e feriados, aproveitávamos para conhecer algures por fora dos limites urbanos. Tais aventuras incluíam viagens para outras localidades do estado de Baden-Württemberg e de países vizinhos como Suíça e França.

Mapa do sul da Alemanha, na divisa dos três países.
Em Schaffhausen, com amigos alemães, 1974
Carnaval de rua na Basiléia, 1974

Na maior parte das vezes, almoçávamos no Mensa, denominação geral dada aos restaurantes universitários (R.U.) na Alemanha. Havia um central, bem ao lado da Universidade, talvez o mais frequentado. Um outro, localizava-se num Campus mais ao nordeste do centro. A nossa preferência era pelo Mensa central, pois ficava perto de tudo: do Goethe e do apartamento onde morávamos.

O maior atrativo, sem dúvida, era o preço da alimentação. Pelo equivalente a uns R$ 5,00 de hoje, tinha-se uma refeição de qualidade aceitável e preparada com a supervisão de profissionais, para garantir a constituição nutricional adequada para uma clientela majoritariamente de jovens. A base de carboidratos dos alemães é a batata (Kartoffel), presença obrigatória similar ao arroz do brasileiro. As proteínas animais eram constituídas por ovos e carne suína. Carne bovina era um artigo de luxo.

Uma vez por semana era servido o Eintopf.

Um prato típico alemão, com constituição nutricional completa: proteína, carboidrato e vitaminas, apresentado no formato de um ensopado. Prato único da refeição. No caso do Mensa, à exceção da salsicha, todos os demais ingredientes eram cozidos juntos e depois passados num processador para formar uma espécie de vitamina salgada.

Ideia de como era o “Eintopf-Submarino”. Aquarela sobre papel, 2023.

Enfileirávamo-nos para pagar e receber um prato de Eintopf: prato fundo com o ensopado e uma grande salsicha mergulhada. Chamávamos de “O submarino”!

De sobra, havia uma sobremesa de Apfelmus.

A luminária colorida de Freiburg

A nossa morada durante meio ano em Freiburg foi um quarto num prédio administrado para alunos do Instituto Goethe, também patrocinado pelo DAAD. Situava-se do outro lado da estação ferroviária central (Hauptbahnhof) que alcançávamos através de um viaduto para carros e pessoas. Praticamente, era um outro bairro da urbe, bem movimentado com uma importante igreja com duas torres em estilo gótico, comércio e residências. O centro ficava do lado oposto do viaduto, onde estavam o Goethe, a Universidade, o Mensa e o comércio mais movimentado.

Caminhando para o Instituto Goethe com o casal Hosokawa, 1973.
Montanhas Vogesen na França vistas da janela do apartamento. Detalhe de trem estacionado. 1973.

Ao largo da catedral Münster (Münsterplatz), no ponto central de Freiburg, havia diversos edifícios antigos, dentre os quais, a histórica Loja de Departamentos (Historisches Kaufhaus). Trata-se de um dos monumentos mais importantes da cidade, destacando-se pelo colorido vermelho vivo de sua fachada, exibindo uma arquitetura belíssima e única. Funcionou ali a primeira loja de departamentos, atualmente um centro de informação para turistas. É também na Münsterplatz que ocorre a feira livre aos sábados, onde se pode comprar alimentos, flores e artesanatos. Há dias que é quase impossível andar livremente por ali. Certamente, é a oportunidade para rever os amigos e colocar a conversa em dia.

Kaufhaus de Freiburg, 1973.
Feira livre na Münsterplatz, 1973.

O limite urbano leste de Freiburg determina o início da formação florestal conhecida como Floresta Negra (Schwarzwald). A formação mais próxima é denominada Morro do Castelo (Schlossberg), que pode ser alcançada a pé e por meio de um teleférico. É o ponto turístico mais elevado, de onde se pode ver toda a cidade e o seu prolongamento para o leste até o sopé da Floresta Negra. Do centro, o caminho é feito por um longo viaduto que atravessa belos jardins e rodovias.

Pela primeira vez eu percebi a importância da tecnologia de engenharia na construção de pontes e viadutos. Estávamos a caminho para o Schlossberg e parei no meio do viaduto, apoiando-me em seu beiral para apreciar o movimento de pessoas e carros por baixo. A sensação que senti, do balançar do viaduto causado por vácuo produzido pelos carros em alta velocidade, foi algo inesquecível. Deduzi, então, que a flexibilidade da obra arquitetônica era devido ao aço utilizado na construção. Além de um certo temor, senti também uma espécie de náusea. Esta mesma sensação eu experimentei, anos mais tarde, em tremores de terra que presenciei no Japão e no México.

Vista geral da passarela para Schlossberg, 1973.
Sobre a passarela do Schlossberg, 1973.

No prédio onde morávamos tinha só um banheiro geral por andar, para servir ao moradores. Era um espaço bem amplo, com setor para o lavatório e vaso sanitário e um setor para o banho, com cortina. Tudo num único aposento. Se alguém estava tomando banho, era preciso segurar a vontade de urinar por um bom tempo.

O nosso quarto era amplo, estimo de uns 20 m², com espaço para duas camas, que juntávamos para formar uma cama de casal, armários e um nicho com mesa e cadeira para múltiplos usos: estudar e comer. As janelas eram igualmente amplas, com vidro duplo e duas formas de abrir: lateralmente e inclinadamente. Perfeitamente isolada ao som e a temperatura. Destas janelas, tínhamos uma visão para todo o espaço da estação ferroviária, com inúmeros trilhos por onde transitavam e manobravam as composições. Na linha do horizonte avistámos as montanhas da formação Vogesen (Vosges em francês) na vizinha França.

Na frente do prédio, com bolsista brasileiro, médico. 1973.
Neusa na janela, 1973.

No canto ao lado da janela havia prateleiras e apoiador, também para múltiplo uso. A iluminação do quarto era uma única lâmpada central de teto. Foi para melhorar as condições de luminosidade que a engenhosidade e criatividade foram acionadas. Surgiu daí a luminária colorida, confeccionada com papel canson e recortes de papéis coloridos. Tesoura, cola, barbante, peças elétricas, muita imaginação e mais paciência foram os ingredientes para a concretização de uma necessidade. O efeito decorativo impactante compensou as horas de labuta.

Ninguém mais tinha uma luminária colorida como aquela.

A luminária colorida de Freiburg, 1973.

Quatro estações em meio ano

Chegamos em Freiburg no mês de abril de 1973. Período que deveria ser meado da primavera. Contudo, encontramos neve nas ruas e telhados das casas por toda a cidade. As montanhas da Floresta Negra ainda exibiam quantidade significante da neve, que já estava se gelificando.

Quando deixamos Freiburg para Hamburgo, localidade no extremo norte da Alemanha, onde eu deveria realizar o meu doutoramento, era meado de setembro, época que marca o início do outono.

Então, no curto período de seis meses, pudemos presenciar e experimentar as diferenças climáticas e paisagísticas das quatro estações do ano em sua plenitude.

Irei discorrer, mais em imagens do que texto, a inédita experiência vivida descrita acima.

Lembram-se da primeira viagem de trem descrita no Capítulo 2, quando fomos acompanhados por Martin Weissinger? Este jovem atuou por curto período em Curitiba,  como membro da equipe de Freiburg. Após retornar ao seu país, fixou residência na cidade de Tübingen, também no estado de Baden-Württemberg, onde se tornou professor para escolas de nível secundário, deixando de atuar profissionalmente como Engenheiro Florestal. Numa das viagens que fazíamos anualmente ao sul da Alemanha, tivemos a oportunidade de visitá-lo em sua residência, onde fomos convidados a pernoitar. Naquela ocasião, conhecemos os seus pais adotivos, ele médico reconhecido na cidade e ela, dona de casa e professora. Nesta visita, ocorrida no início da primavera de 1975, ao chegarmos na casa de Martin, fomos surpreendidos com um enorme ramo fresco de Fagus sylvatica, árvore da mesma família do carvalho europeu, tendo como receptáculo uma grande garrafa com água no meio da sala. Com suas folhas primaveris de um verde-claro e exalando seu aroma típico, foi um primeiro impacto da gentileza demonstrada pelo amigo. Esta atmosfera foi o prenúncio de uma tranquila noite a dois (para nós, recém-casados, o período de Alemanha foi uma prolongada lua de mel, pois havíamos planejado não ter descendentes, por enquanto). Ele tinha ido pernoitar na casa de um amigo. Quando acordamos, já com o dia amanhecido, Martin havia retornado e preparado um delicioso café da manhã. Incidentes acontecem e ao nos servirmos de uma geleia, notamos ela estar com pequenos tufos de mofo na superfície. Ele percebeu, desculpou-se e mais que depressa retirou os tufos mofados com uma colher, descartando-os. Assim feito, ofereceu-nos novamente dizendo que agora estava limpo. Gesto simples de uma pessoa simples.

Martin Weissinger foi o nosso cicerone nos primeiros tempos. Ele havia adquirido um novo carro, um fusca (na Alemanha da época, chamado de Käfer – besouro e adorado pelas crianças). O modelo era o mais recente, de faróis traseiros redondos e avantajados, destacando-se na arquitetura do veículo. Anos mais tarde, tal modelo foi introduzido no Brasil e recebeu o cognome de “Fafá” (o porquê, é óbvio, alusivo à cantora). Foi com este fusca que visitamos diversos lugares nos arredores de Freiburg e da Floresta Negra.

Dia de sol no inverno de Freiburg, com Martin Weissinger e casal Hosokawa, 1973.
Dia nevoso de inverno na Floresta Negra, 1973.

A primavera é a estação mais desejada em todo o planeta, pois prenuncia o término de um período de temperaturas baixas e, no caso do hemisfério norte, dos dias longos e sombrios do inverno. É a época de deixar o aconchego do interior das casas e sair para desfrutar da luz, cores e perfumes da estação, quando a maioria das plantas desabrocham suas flores.

Freiburg também é uma cidade com grandes áreas verdes e inúmeros parques e jardins.

O Stadtpark (Parque da cidade), jardim central, é um nicho especialmente aprazível na primavera, onde as famílias desfrutam da beleza e tranquilidade propiciado pela natureza.

Primavera ensolarada no Stadtpark, 1973.
Outro recanto primaveril no Stadtpark, 1973.
Piquenique primaveril na Floresta Negra. 1973.

 

Fora dos limites urbanos, a primavera é igualmente deslumbrante com suas cores e atmosfera agradável. Esse tipo de ambiente pudemos desfrutar durante os passeios pelos arredores da Floresta Negra.

O verão é o desejo sequencial à primavera. Temperaturas mais quentes e dias muito mais longos. Não é sem propósito que o período de férias escolares mais longo é justamente fixado para o verão, em todo o planeta. Dessa forma, os passeios diurnos podem ser prolongados para até mais tarde, podendo chegar a ter luz do dia até as 21 horas. Muitos de nossos passeios pela cidade foram realizados nesta estação.

Havia um lago formado artificialmente denominado Baggersee (lagoa dragada), atualmente conhecida como Seepark de Freiburg, onde os banhistas aproveitavam dos dias quentes de verão. Dizia-se que havia um nicho especial para nudistas. Nunca confirmamos. Mas, considerando o desprendimento do alemão para assuntos sobre a mostra do corpo a público, acho bem plausível tal afirmação.

Torre Martinstor no verão, 1973.
Baggersee no verão, 1973.

O outono marca o reinício de um próximo período e o amadurecimento dos frutos das flores desabrochadas na primavera e disseminadas durante o verão. É o retorno paulatino aos dias mais curtos, a temperatura mais amena e a mudança das cores das folhas e sequencialmente sua queda, deixando as árvores somente com seus ramos desnudos. É a época de maior atividade laboral em todos os setores. Para os passeios ao ar livre é um deslumbre a passagem do colorido diversificado das folhas.

Final de outono na Floresta Negra, 1973.
Torre Schwabentor num dia de outono, 1973.
Passeio de outono ao largo do Rio Dreisam, 1973.

E assim, chegamos ao final desta aventura quatriestacional vividas no período de morada em Freiburg.

Herzklopfbeschwerden - Tributo à Thomas Mann

O idioma alemão pode ser considerado um dos mais difíceis que existe. Por ser uma língua declinada, a formação das sentenças é complicada. Para tal, necessita-se conhecer o gênero dos substantivos, o que demanda a harmonia entre o predicado e o objeto. Por outro lado, a leitura e pronúncia, com exceção de algumas poucas peculiaridades, é mais fácil do que as línguas de origem anglo-saxãs. É o caso para os que falam os idiomas de origem latina: lê-se como está escrito, não importando se conhece o termo ou não.

Os substantivos compostos, salvo melhor juízo, são formados integralmente por substantivos. Difere dos do português, que se compõe de um substantivo mais um predicado verbal. Neste caso, a criação de palavras compostas é relativamente fácil, pois quase sempre, são termos pequenos de duas partes. Guarda-livros, saca-rolhas, bate-papo, são alguns exemplos.

Por sua vez, no caso do alemão, é possível a criação de palavras com incontáveis partes, sendo cada uma destas, um substantivo.

Thomas Mann foi um escritor alemão (1875-1955), laureado com o Prêmio Nobel de Literatura. É considerado um dos maiores romancistas do século passado. O seu primeiro livro e o mais famoso, foi publicado quando tinha 25 anos de idade, sob o título “Os Buddenbrooks”.

Desenvolto em criar palavras para descrever seus romances, à Thomas Mann é creditada, se não a mais longa, uma das mais quilométricas palavras já escritas: Köchinnensonntagsnachmitagsausgehenvergnügen.

É composta por Köchinnen (cozinheiras); Sonntag (domingo); Nachmitag (tarde, parte do dia); Ausgehen (saída, passeio) e Vergnügen (prazer, alegria). O significado em português poderia ser: “A alegria das cozinheiras em seu passeio nas tardes de domingo”.

Na minha visão, Köchinnensonntagsnachmitagsausgehenvergnügen pode ser considerado o mais curto micro conto já escrito. Na verdade, eu chamaria de pico conto ou uni conto, pois podemos visualizar uma história completa numa única palavra.

Quando morávamos em Freiburg, tivemos oportunidade de fazer alguns amigos alemães dentre aqueles que frequentavam o Mensa. Um dos expedientes semanais era, após o almoço, fazer uma caminhada até a loja de café próximo à torre Martinstor.

Numa destas caminhadas, eu criei uma palavra nova em alemão. Mas, antes vou atrever a criar uma hoje: Wochenseduschoskaffeesnachtisch. Seu significado aproximado seria “Sobremesa semanal no Café Eduscho”. Apenas para exemplificar com que facilidade é possível gerar novas palavras em alemão.

Volto para aquele dia fatídico. No caminho para o café, eu senti um certo desconforto na região toráxica. Não era uma dor. A palpitação estava mais acelerada que o normal. Isso causava aquele desconforto. Para descrever o sintoma aos amigos alemães, não titubeei em descrever tudo numa só palavra: Herzklopfbeschwerden. É claro que os amigos gastaram alguns segundos para entender o que eu queria dizer, pois o termo era totalmente desconhecido, não constante em nenhum dicionário germânico. Porém, devido à lógica da construção ortográfica: Herz (coração); Klopf (batida, pulsação) e Beschwerden (reclamação, desconforto), eles entenderam de pronto o meu falar. O significado em português poderia ser: “Desconforto causado pelo batimento anormal do coração”.

Os sintomas que eu sentia logo se dissiparam e não precisei de uma assistência médica.

Acho que daria para escrever um livro em alemão, integralmente composto só com palavrões.

Castelo de Hohenzollern - Duas visitas, duas histórias

Os que moram no Novo Mundo não estão acostumados com a presença de castelos. Por outro lado, no Velho Mundo, ou melhor dizendo, na Europa em geral, no Oriente Médio e na Ásia, praticamente a cada esquina depara-se com uma edificação, que fora no princípio, a morada de um imperador ou similares. Tais edifícios, geralmente, tem o formato de um castelo medieval, rebuscado de portais, torres, pontes levadiças etc.

Na Alemanha existem inúmeros castelos, a maioria deles localizados em morros ou montanhas, estratégias concebidas para dificultar o acesso aos inimigos. Outros, encontram-se nas encostas dos vales dos maiores rios. Exemplos destes são os castelos situados ao longo do vale do Reno e do Danúbio.

Dois dos castelos mais conhecidos, são o Castelo de Neuschwanstein na Baviera e o Castelo de Hohenzollern em Baden-Württemberg, em plena Floresta Negra. O primeiro foi construído a mando do Rei Luís II e sua construção durou cerca de 18 anos. Não obstante a tudo, o próprio rei nunca pode morar no castelo. Morreu considerado insano.

Castelo de Neuschwanstein, 1975.
Castelo de Hohenzollern, 1975.

O nome do Castelo de Hohenzollern advém de sua localização no monte de mesma denominação. Residiram ali os condes suábios por volta do século XI. A família Hohenzollern assumiu o poder por volta do século XVI e é proprietária até os dias atuais. O castelo original foi destruído e reconstruído inúmeras vezes. A sua presente forma data do ano de 1850. Passou por reformas devido às guerras.

Minha esposa e eu visitamos o Castelo de Hohenzollern pela primeira vez em 1975, numa das viagens de retorno à Freiburg para rever os colegas brasileiros. À semelhança do Monte Fuji do Japão, aqui também é possível o acesso com veículo até um certo ponto da elevação. Daí em diante, é só a pé. Existe estrada de acesso permitido apenas para membros da família e para serviços. A escalada pode ser feita por caminhos em curva de nível, assim como, por escadarias mais íngremes, por onde se corta caminho.

A escolha pelo caminho mais curto não foi acertada. Estávamos ainda no início da escalada, quando a Neusa se sentiu incomodada com fortes dores. Aguardamos um pouco, mas a dor não amainou.

Decisão: retornar para a base e aguardar descansando no carro.

Execução: carregar a esposa nas costas, como fazem os asiáticos. Ainda bem que ela era um peso leve. Em todo caso, como eu nunca fui um atleta, considerei um ato hercúleo aquela empreitada. Mas, o orgulho de macho sobrepujou a cara de sofrimento pela carga nas costas.

Auxílio: eis que, um senhor aparece para nos socorrer.

            – Posso ajudar em algo?

            – Não se preocupe. Eu posso aguentar.

            – O que aconteceu? Ela caiu e se machucou?

            – Não. Apenas está sentindo muita dor. Mas não se preocupe.

            – Você não vai conseguir chegar aonde quer. Aguarde aqui que eu pego o meu carro que está logo ali.

Tivemos a sorte de ter recebido aquela providencial ajuda. Chegados ao estacionamento, agradecemos ao senhor samaritano e fomos descansar no carro. Como ele era uma pessoa ligada à família Hohenzollern, orientou-nos a um procedimento não convencional, mas que poderia ser usado naquela ocasião. Assim, passada a dor, subimos com o nosso carro por uma estrada particular e conseguimos estacionar bem mais perto da entrada do castelo. Sorte é preciso ter.

Neusa, antes do ocorrido, 1975.
Após o ocorrido, visitando o castelo, 1975.

A minha segunda visita ao Castelo de Hohenzollern foi em 2009, 34 anos depois daquela aventura de levantamento de peso.

Eu compunha uma missão profissional acompanhando dois docentes da UNICENTRO, com o objetivo de estabelecer um intercâmbio com a Universidade de Rottenburg am Necker. Numa folga do trabalho, fomos visitar o castelo que era bem próximo.

Visitar um local passados mais de 30 anos foi para mim uma experiência inusitada, como se estivesse viajando no tempo. Dessa vez, havia um grande estacionamento bem mais próximo do monumento. Então, a curta escalada até o castelo foi vencida facilmente, mesmo com mais idade.

Neusa no portal, em 1975.
Aldo e Takao, no portal, em 2009.
À direita, Prof. Aldo Bona, na época Reitor da UNICENTRO e atualmente Secretário de Ciência e Tecnologia do Estado do PR; no centro, Prof. Afonso Figueiredo, na época, Diretor do Setor de Ciências Agrárias da UNICENTRO; à esquerda, Prof. Mario T. Inoue, na época, Pró-Reitor de Pesquisa e Pós-Graduação da UNICENTRO. 2009.
Takao em 1975.
Takao em 2009. O castelo continua o mesmo, mas a barriga e os meus cabelos...

As construções antigas, principalmente os castelos, encerram em suas paredes as vibrações de histórias dramáticas, aventureiras, criminosas e até eróticas, que levam os visitantes a viajarem no tempo e, para os mais sensíveis, compartilhar das sensações gravadas nas escadarias, calabouços, celas e alcovas.

É um aprendizado fabuloso e delicioso.

Wholtorf: a morada na cobertura

Após residir por seis meses em Freiburg, mudamos para Hamburg, onde eu tinha o objetivo de concluir os estudos para o doutoramento na Universidade. Fomos morar numa pequena vila nos arredores da grande Hamburg denominada Wholtorf. Ficava bastante próximo de Reinbek, uma cidade um pouco maior, na qual se localizava o Castelo de Reinbek, sede do Instituto Federal de Pesquisas Florestais e da Madeira. Este será um tema para uma futura crônica.

Em Wholtorf, residimos numa das melhores casas do vilarejo. De construção tradicional e ampla, numa parte morava a dona da casa, Frau Wahrnholz e em outra, a família de um dos filhos. A nossa morada era o sótão da primeira parte. Completa, com quitinete, sala de estar, quarto de dormir, sacada e uma verdadeira casa de banho. Com direito a um lavatório no corredor, o qual nunca usamos.

Num país onde o banho é um procedimento não muito diário, o nosso banheiro é digno de uma descrição mais aprimorada. Calculo que tinha uns 15 a 18 metros quadrados, com banheira, ducha e, pasmem, uma balança! Das que usam peso e contrapeso para medir, semelhante à das antigas que existiam em mercearias para pesar sacos de cereais.

No início, a Frau Wahrnholz chegou a perguntar o porquê de a gente tomar banho todo dia. Logo ela se acostumou com a nossa rotina.

A nossa quitinete completa, 1973.
A impressionante balança, 1973.

O nosso pequeno castelo por três anos era bonito, confortável e suficientemente amplo para um casal. Usávamos bem a sacada. Certa vez, reunimos amigos brasileiros e fizemos ali um churrasco. Mais tarde, a dona da casa nos questionou se estávamos querendo incendiar a morada. Inocência estúpida de recém adolescentes, cuja preocupação de momento era o prazer de churrasquear.

Vista geral da casa, 1973.
Neusa na sacada, 1973.
Tarde de outono no jardim, 1973.

A sala de estar era o local mais frequentado. Ali ouvíamos música, líamos, fazíamos gravações, trabalhávamos em fotos para registro de nossa vida e, principalmente, eu ocupava a mesa onde tinha a máquina de escrever portátil “Olivetti” que havia levado comigo e a usava para datilografar a tese. O procedimento de recorta e cola usado nos atuais computadores era uma execução ao pé da letra: recortar com tesoura a parte interessada e colar com cola arábica no local desejado. O texto original de um trabalho era uma verdadeira colcha de retalhos.

Vista da sala, 1973.
Prazer da leitura, 1973.
Estúdio de gravações, 1973.

A casa era muito bem iluminada e arejada. Na sala havia acesso o para a pequena sacada. Na quitinete havia uma janela inclinada para arejamento e iluminação natural. O banheiro era iluminado por duas pequenas janelas. No quarto de dormir havia uma grande janela em semicírculo, através da qual tínhamos visão para todo o jardim. Ali ficava estacionado o nosso fusca branco. Dali avistávamos também toda a parte frontal do imóvel, como a grande porteira de entrada e a rua belamente arborizada que saia diretamente do terreno.

Janela do quarto após a nevasca, 1974.
O nosso fusca alemão, 1974.
O portão da casa, 1974.

A nossa vida na Alemanha foi uma lua de mel prolongada, em que a única preocupação era o estudo. Tudo foi custeado pelo governo alemão, por meio de uma bolsa de estudo. O salário da universidade eu continuei a receber, inclusive férias e décimo terceiro. Nesse período, não tivemos descendência, embora tentássemos engravidar antes de retornar ao Brasil.

A busca de um terrorista

Jane S. Carneiro*

Quem conhece a Alemanha sabe como os alemães são severos em muitos aspectos da vida quotidiana.

No mês de dezembro de 1976, meu marido, meu filho de três meses e eu fomos morar em Freiburg im Breisgau, na região da Floresta Negra.

Meu esposo havia estudado o alemão e podia comunicar-se bem na Universidade, onde se encontrava para fazer seu Doutorado. Eu havia apenas terminado no Brasil, a Faculdade de Ciências Naturais e Biologia e mal tive tempo de me aproximar deste idioma, que difere de outros pelas suas declinações. Meu filho era muito pequeno e tomava quase todo meu tempo. Eu era como um marinheiro de primeira viagem!

Mesmo sendo difícil, meu propósito, com o tempo, seria estudar o idioma alemão, pois me parecia muito interessante. Após organizar tudo no novo ambiente, comecei a dar os primeiros passos, entorno da vizinhança. Passeava com nosso bebê em seu carrinho, sempre nas proximidades de casa pois, pensava que iria sobreviver tranquila com meu inglês ou francês, naquele país.

Não estava ainda familiarizada com o transporte coletivo, o Strassenbahn, um bonde em trilhos que percorria toda a cidade. Isso porque, meu marido sempre me acompanhava nas compras de supermercados, ida ao centro da cidade e passeios. Tudo feito em nosso pequeno carro, um fusca branco de 1966 e que chamávamos, carinhosamente, de “Fritz”!

Ainda me lembro dele! E sinto saudade daquele tempo!

Eu sabia apenas falar umas poucas palavras em alemão, que aprendi logo na minha chegada, tais como: bom dia, boa tarde e boa noite! Ah! Aprendi logo a dizer a palavra obrigada!   

Esse era todo o meu vocabulário naquele idioma!

À medida em que o tempo passava, senti a necessidade de aprender esta língua de imediato, pois nem o inglês nem o francês estavam me ajudando, como eu havia pensado anteriormente! Mas, mesmo assim, criei coragem e resolvi sair sozinha, com um dicionário na bolsa, para passear com meu filho no centro de Freiburg. Senti que era valente para fazer esta saída!!!

De onde morávamos, para se ir ao centro da cidade, era necessário tomar o Strassenbahn. A ida foi tranquila, sem ter de falar nada, somente subir e descer do bonde!

Ah, pensei: tenho coragem e desejo voltar outras vezes, para andar naquele bonde onde havia lugares específicos, na parte da frente do trem, reservados aos carrinhos de bebês e para as mamães.  Não havia aquele meio de transporte tão moderno no sul do Brasil, no Rio Grande do Sul, local onde vivíamos antes. Tudo muito organizado! Que beleza a meus olhos!

Desejei morar ali por longo tempo, para desfrutar da bela paisagem que a Floresta Negra nos propiciava.

Certo dia, resolvi voltar para casa no horário em que muitos estudantes retornavam a seus lares e o Strassenbahn estava cheio. Mas, eu sabia que o lugar do carrinho de bebê e da mamãe tinham preferência e estes espaços ficavam localizados na parte da frente do bonde. Lá fui eu, toda feliz, por ter realizado minha primeira viagem sozinha, por minha conta e sem ter de abrir a boca!

Diz o ditado: alegria de pobre dura pouco.  Eu resolvi olhar para o condutor e vi que estava parando o bonde, a pedido de alguém que eu não consegui identificar e que estava fora do local de embarque dos passageiros. Então, olhei para a parte traseira do bonde e vi que entraram três policiais, de uniforme verde escuro, armas pesadas e fisionomias bem fechadas. Naquele momento, pensei que estavam pedindo carona ao motorista do trem, como se faz no meu país!

Mas, ao mesmo tempo, veio à minha mente a pergunta do porquê de estarem entrando pela traseira em vez de ser pela frente do bonde, onde havia menos pessoas. Continuei a olhar com precaução, porém, disfarçando minha preocupação. Observei que os policiais revistavam os estudantes, pedindo documentos de identificação e lhes mostravam uma foto. Eles estavam mesmo muito sérios, falando alto e repreendendo a alguns dos estudantes da Universidade. Entretanto, eu não entendia o que falavam. Então, em inglês, perguntei à pessoa sentada ao meu lado (uma jovem que entrou na parada da Universidade e me pareceu simpática) o que estava se passando, na expectativa de que ela me compreendesse e pudesse me responder!

Viva, ela falava inglês!!!

Neste momento, resolvi já ir tirando meu passaporte da bolsa, para adiantar quando chegassem até nós duas, senão eu ficaria muito nervosa. Pensei comigo mesma – Estarei pronta para a abordagem quando chegarem aqui!

Para minha enorme surpresa, quando abri minha bolsa onde havia duas fraldas do pequeno, duas mamadeiras (uma com leite e outra com suco de laranja), chupeta sobressalente, etc…etc…, mas nada de achar o passaporte!!! Onde estava meu passaporte? Tirei tudo da bolsa para revisar, colocando com pressa no meu colo, mas nada de achá-lo ou algum documento que me identificasse.

Meu Deus, não o coloquei na bolsa!! Estava tão centrada em colocar as coisas do meu bebê na bolsa, para não ter de me preocupar na rua, que me esqueci do meu passaporte!!

E agora? Será que iriam me prender? Comecei a suar frio!! Olhei para o carrinho do meu filho Christian e vi que ele estava, tranquilamente, dormindo. Em seguida, observei que os policiais empurravam os estudantes que estavam em pé, sempre com as caras de “gorilas” com fome!!

Pareciam muito grosseiros e não iriam aceitar que eu, uma jovem estrangeira, sem experiência no exterior, estivesse andando sem documentos de identificação no país deles!

Minha cabeça se encheu de inúmeros questionamentos e fiquei, realmente, paralisada de medo! Eu tinha 24 anos na época do ocorrido e não falava alemão! Só poderia dizer “boa tarde” e “obrigada” para estes “senhores” tão gentis!!!

Graças a Deus, consegui virar o pescoço para trás, apesar do medo que invadiu meu corpo e vi que havia começado uma confusão, um grande tumulto e, em seguida, ouvi gritos de algumas estudantes, gente chorando, com medo e…. eu ficando cada vez mais gelada!!! Comecei a rezar, pois, era a única coisa que eu podia fazer naquele momento!

A vizinha de lado me disse, baixo e com firmeza, que ninguém podia sair do bonde. Eles procuravam um terrorista que se meteu no meio dos estudantes e alguém dedurou que ele entrou junto aos universitários. Justo naquele Strassenbahn onde eu e meu bebê estávamos!!

Meu Deus, logo no bonde onde eu entrei toda feliz!! Eita, que situação!

Mas, eu teria de manter a calma a todo custo, senão seria pior pra mim. Buscavam um terrorista e não uma mãe despreparada, com um filho de poucos meses! E já estavam chegando perto de onde eu estava sentada!

Por minha sorte, próximo da fileira onde eu me encontrava, os policiais o acharam, disfarçado com um gorro, e o prenderam. O terrorista saiu do bonde algemado, com o trio de policiais em sua volta. Enquanto alguns estudantes batiam palmas, eles mantinham os seus semblantes fechados

Que alívio eu senti na minha alma!!!

Enfim, o bonde partiu para seu destino. Duas paradas depois deste evento, eu desci mais tranquila do susto, entretanto, meu coração ainda palpitava forte. E meu filho continuava dormindo tranquilo, apesar do barulho dentro do bonde ocorrido naquela viagem.

Depois daquela aventura, pedi a meu esposo que me inscrevesse em um curso de alemão na Universidade. Assim, pude me tranquilizar e aprendi a viver melhor na Alemanha, país com tantas belezas naturais!

Tenho como lição, nunca mais sair sem revisar meus documentos de identificação. Seja em qualquer país onde eu estiver, ando sempre com uma pochete com tudo que é necessário dentro e, sempre atada à minha cintura.

Esta foi uma das minhas estórias na bela Alemanha…

Danke Freiburg!
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Jane Silveira Carneiro
Graduação: Ciências Biológicas (RS) 1976; Mestrado: (Brasília) 1984; Doutorado, pós-doutorado: (Roma-Itália) 1996,1997;
Diretora Nacional do projeto FAO-PNUD-IBAMA;
Diretora Pesquisas, Pesquisadora IBAMA(Brasília) 2001/2010).
Aposentada, reside em Denver, USA  

Nos idos da década de 70, com a Alemanha dividida em República Federal da Alemanha (BRD), com a capital Bonn, e República Democrática Alemã (DDR), com a capital Berlim, a cidade de Hamburg era a segunda maior, depois desta última. Berlim continuava, como uma ilha pertencendo à BRD dentro do território da DDR. Em outro capítulo irei descrever esta cidade com mais detalhes.

Hamburg é uma cidade-estado, ou seja, o estado de Hamburg é um dos componentes da federação alemã. Sendo um estado, é a única cidade e capital ao mesmo tempo.

Localizada no estuário do rio Elba, abriga o segundo maior porto da Europa e um dos mais importantes ao nível internacional. É aqui que se localiza a sede da Hapag-Lloyd, uma das maiores empresas de transporte do mundo, cujo nome vemos nos contêineres transportados em caminhões pelo Brasil afora.

Abriga a Universidade de Hamburg, uma instituição de excelência desde 2019. Na década de 70, já era considerada uma das melhores da BRD, que oferecia a formação florestal, juntamente com a de Freiburg, a de Göttingen e a de Munique

Porto de Hamburg no inverno de 1973
Prédio da Universidade de Hamburg, 1973.

Sendo um dos maiores centros industriais e comerciais do mundo, não seria novidade que importantes empresas e governos tivessem suas sedes nesta capital.

Os mais conhecidos dos brasileiros eram o Banco do Brasil e o Consulado Brasileiro. Não sendo cliente, nunca frequentei aquele banco. No Consulado, tivemos que comparecer algumas vezes, por necessidade de renovação de passaporte e justificativa perante a justiça eleitoral, obrigatoriedade arcaica que perdura desde o tempo dos “coronéis”.

Centro de Hamburg, com a sede do Banco do Brasil, 1974.
Consulado Brasileiro, com um cafeeiro no jardim. O fusca, não me lembro se era o meu. 1974.

Nós cultivávamos amizade com inúmeros brasileiros que moravam em Hamburg, dentre solteiros e os com família, residentes ou temporários, como nós. Alguns importantes, outros nem tanto. Os encontros eram relativamente frequentes, quase sempre por ocasião de aniversários ou outro tipo de comemoração.

Em Wohltorf, tivemos oportunidade de receber alguns amigos para conversar e assar uma carne na sacada. Dentre eles, recebemos um pequeno grupo de amizades comuns com o pianista Marco Antonio de Almeida, a quem conhecíamos desde a juventude, em Londrina. Ele estava se especializando na universidade e, posteriormente fez o doutoramento. Permanece lá até a atualidade, onde exerce o cargo de professor catedrático na Universidade de Hamburg.

Em nossa casa em Wolhtorf. No centro, o ainda jovem Marco Antonio de Almeida. 1974.

Uma das melhores lembranças do tempo de Hamburg, sem dúvida, foram os carnavais brasileiros. O consulado promovia anualmente a festa na época do Carnaval, na qual pudemos participar por dois anos seguidos, fantasiados.

Fantasia de palhaços, premiada no Carnaval de Hamburg, 1974.
Neguinhos, fantasia premiada no Carnaval de Hamburg, 1975.

A preocupação da época era apenas ser um bom doutorando. De resto, era tudo festa, viagens, divertimentos.

Tempos que não voltam mais, até segunda ordem.

Um príncipe no Castelo de Reinbek

Inicialmente, eu ia de metrô para o Instituto, situado em Reinbek, a apenas uma estação de Wohltorf. Naquele trecho do meio de transporte, que ia de Aumühle até Hamburg, o metrô era de superfície. Aumühle é a última vila, um pouco maior do que Wohltorf, com estrutura de pequena cidade. Ali residia o meu orientador, o Professor Eberhard Brunig, junto com a esposa e duas filhas.

Logo em seguida, comprei um fusca usado, com o qual rodamos por alguns países e por quase toda a Alemanha. O meu orientador, muito pão-duro, ia de Aumühle até Reinbek de bicicleta. Mesmo debaixo de chuva. Quando nevava, ia com o seu Mini Cooper (carro do Mr. Bean), na época, ainda de fabricação britânica. Quase tudo relacionado a ele tinha algo de britânico. Penso que era devido ao fato de ele ter trabalhado por mais de uma década na Malásia, ainda sob tutela do Reino Unido. Dentre os pesquisadores, pejorativamente, chamavam-no de “O Tigre de Bornéu”, como também “Ever-Hard Brunig”. Já dá para se ter uma ideia do seu caráter.

O Instituto onde estudei era sediado no Castelo de Reinbek.

Foi ali que passei os quase três anos para estudar e desenvolver a pesquisa relativa à tese. O departamento ao qual pertenci, ocupava um dos anexos do castelo, onde fui alojado, inicialmente, no sótão. Não me sentindo à vontade, sozinho num ambiente medieval, pedi um outro local. Fui para a edificação principal do castelo, numa sala ao lado da biblioteca.
Alérgico a coisas velhas, principalmente livros, pedi uma outra mudança. Retornei ao anexo, desta vez num amplo espaço multiuso no piso térreo.
Ali trabalhavam outras pessoas do Instituto, ficava a sala do meu orientador e a sala do meu coorientador. Este último era filho de uma brasileira, com o qual tive um bom relacionamento e uma ótima orientação. Foi nesta sala que ocupei uma mesa, onde desenvolvi a tese de doutorado, num primórdio de computador pessoal. Este será tema de uma futura crônica.

Fachada do Castelo de Reinbek, 1975.
Outono no Castelo de Reinbek, 1975.

Os trabalhos de laboratório relativos à minha tese foram, na maioria, desenvolvidos num outro anexo do Castelo. Ali havia câmara escura para cultivo preliminar de plantas e determinação de clorofila e outras medidas. Para o cultivo definitivo das plantas de cedro, a espécie que estudei, foi usada uma casa de vegetação moderna e muito ampla localizada em outra cidade, Lohbrügge. Para lá, estava sendo transferida, aos poucos, toda a estrutura do Instituto sediada em Reinbek.

Uns seis meses antes do término do meu trabalho, participei dos preparativos e execução da mudança definitiva de tudo que havia no Castelo de Reinbek para o novo local. Tudo novo, moderno e amplo.

Anexo do Castelo, 1975.
Casa de vegetação em Lohbrügge, 1975.
Nova sede do Instituto, 1976.
Lohbrügge nos anos 1976.

Nesse novo castelo moderno, eu finalizei meu trabalho em laboratórios, centro de computação, biblioteca e escritório, durante os últimos meses antes da defesa do doutorado e retorno ao Brasil.

Eu considero que fui um príncipe de dois castelos.

Horror na tela, temor na estrada

Wohltorf é uma vilazinha de interior, tipicamente residencial para quem trabalha em Hamburgo, Bergedorf, Reinbek e Lohbrügge, cidades satélites à primeira. Existem poucas casas em grandes terrenos, todos bem arborizados. O comércio local é ínfimo, apenas para atender necessidades emergenciais de secos e molhados.

O vídeo cassete surgiu no início dos anos 70. Durante a nossa estada na Alemanha, os filmes de cinema gravados em VHS existiam em algumas poucas locadoras e a disponibilidade de títulos era ridiculamente baixa. Assim, para assistir a um filme, tínhamos que nos deslocar até Hamburgo, onde havia inúmeras casas de espetáculos, incluindo uma que exibia filmes de arte. Foi ali que vimos “Tarzoon”, uma animação erótica engraçadíssima, do clássico de Edgar Rice Burroughs.

Foi numa dessas empreitadas cinematográficas, que fomos assistir ao filme “O exorcista”, com Linda Blair. Foi estreado nos Estados Unidos em dezembro de 1973. A estreia na Alemanha foi no começo de 1974. Como a procura era grande, deixamos passar algumas semanas para comprar os ingressos com calma.

A sessão para a qual conseguimos os ingressos, era a das 20 horas, num cinema bem frequentado do centro de Hamburgo. A sala estava lotada. Felizmente, os ingressos eram vendidos com lugar marcado e assim não houve problema. Neste cinema, havia uma pequena sala nos fundos, isolada com uma grande vidraça, para uso de fumantes. Isso foi em tempos em que a fumação em público era livre em quase todos os estabelecimentos.  

A obra cinematográfica mencionada é considerada um dos clássicos dentre os filmes de suspense. Foi um grande sucesso de bilheteria e a artista Linda Blair ficou conhecida pela sua interpretação da personagem principal.

O filme é bastante tenso, do princípio ao fim. As cenas em que mostram a menina tomada pelo demônio são horripilantes, principalmente aquela em que ela gira a cabeça totalmente para o lado das costas. A cor verde de seu vômito, que tinge a batina do padre exorcista, foi algo nojento e gosmento, quase difícil de se ficar olhando. A combinação certa, de imagens com trilha sonora assustadora, foi a receita para o seu sucesso.

Na saída, todos os espectadores saíram de mansinho, sem comentários, entreolhando cada um para o vizinho para ver se não estava com o pescoço virado. Foi com a tensão desta atmosfera que ganhamos o caminho noturno para casa.

O trecho de uns 20 Km até Wohltorf foi vencido a muito custo, com o coração e a mente apreensivos, ainda impregnados pelas horrendas impressões do filme. O nosso fusquinha ia que ia se contorcendo a cada curva da estrada e rezávamos para não encontrar algum fantasma sem pernas da menina do filme.

Felizmente, chegamos sãos e salvos em nossa casa.

Mas, durante muito tempo, as imagens da menina assombravam-nos sempre ao sair à noite, seja a pé ou de carro.

Berlim: retidos na fronteira

Na década de 70, Berlim era uma cidade da BRD dentro da DDR. Esdruxulismo de uma política internacional que dividia o mundo entre o capitalismo e o comunismo.

Dentre as famílias de curitibanos que estudaram na Alemanha, a do José Henrique Pedrosa-Macedo foi e continua sendo, com a qual mantemos uma verdadeira amizade e companheirismo. Pedrosa é professor de Entomologia e estava em Freiburg para o seu doutoramento como bolsista do DAAD.

Numa das visitas à Hamburg com que a família Pedrosa nos brindou, aproveitamos o ensejo para esticar um pulo até Berlim, atravessando a Alemanha Oriental. Partindo de onde estávamos, era uma viagem de uns 290 Km quase em linha reta em direção à sudeste. A divisa ficava bem próxima, pela qual era feita a imigração temporária de passagem.

Mapa das duas Alemanhas na década de 70.

No mapa, Hamburg está demarcada com círculo em preto; Berlim em círculo branco. O trajeto está demarcado em azul tracejado.

A caravana era composta por dois carros Volkswagem: a Variant, do Pedrosa e o nosso Fusca.

Até a divisa, a viagem foi bem tranquila, com uma parada para as necessidades e beliscar algum petisco.

A família Pedrosa era, além dele, a sua esposa Arlete, a filha primogênita Sônia e os filhos Henrique e Ricardo.

Para melhor distribuir os passageiros pelos veículos, o filho mais novo, Ricardo, estava em nosso carro.

A chegarmos na divisa, tivemos que passar pela imigração. Por estar conosco, para efeito de vistoria e burocracia da alfândega, o Ricardo foi considerado membro do grupo do fusca. Como ele tem os olhos um pouco amendoados, acharam que seria o nosso filho. Mas, os dados de seu passaporte não combinavam com tal premissa. Aí, é que a coisa pegou.

Fomos “convidados” a descer do carro, os três, e encaminhados para interrogatório e esclarecimentos dentro do edifício da imigração. O Ricardo devia estar com uns cinco ou seis anos de idade e não tinha como explicar alguma coisa. Ainda mais, tudo em alemão!

Até esclarecermos que não se tratava de nosso filho e sim, da família que estava a nossa frente na Variant, tivemos que desenrolar a língua para nos fazer entender. Pensaram que éramos traficantes de menores!

Acho que se passaram uns 30 minutos de intensa tensão. Imaginem, em países estrangeiros, adentrando de um capitalista para um comunista, carregando um menor com passaporte diferente dos do casal do fusca, que portavam passaportes brasileiros, mas com cara de asiáticos, em plena era da guerra fria. Parece até uma cena de filme de intriga e suspense internacional.

Finalmente liberados, seguimos nossa rota com destino à Berlim!

Sem antes, dar uma de caipiras. Erramos o caminho e estávamos indo para mais adentro da Alemanha Oriental. Percebida a gafe, demos mais outra de caipiras e aplicamos o jeitinho brasileiro: cruzamos o canteiro central que separava as vias de ida e volta, deixando atrás a marca dos pneus sinalizando a nossa mancada (para não usar um termo mais forte).

Para adentrar Berlim, mais uma imigração. Só que desta vez foi tranquilo, pois estávamos adentrando um país que já conhecíamos de nossa morada.

Daí para frente, foi uma maravilhosa viagem turística, em que tivemos a oportunidade de conhecer a capital em suas duas faces, pois o muro dividia a cidade ao meio. O contraste entre os dois mundos parece até proposital, com o lado oriental totalmente abandonado como estava no tempo da segunda guerra mundial.

Em Berlim ocidental, o único edifício que foi deixado, parcialmente destruído durante a guerra, foi a Igreja da Memória Kaiser Wilhelm. Como o codinome quer dizer, é o símbolo do horror e destruição que advém com a guerra. Ao seu lado, foi erigida uma moderna igreja para contrastar o antigo e o moderno.

Uma das visitas mais proveitosas foi ao Museu de Berlim (Neues Museum), onde se encontra o busto de Nefertiti, a rainha do Egito. É considerado como a Monalisa de Berlim. Igualmente impressionante foi a visita ao Palácio Charlottenburg, onde estão as tumbas da família Hohenzollern.

Igreja da Memória, Berlim, 1975
Busto de Nefertiti, Neues Museum, Berlim, 1975.
Na divisa, com o Portão de Brandenburg ao fundo. No centro, o pretenso nosso “filho”, Ricardo, a Arlete, parte do Henrique e o braço esquerdo da Sônia, à direita da foto. 1975.

Durante todo o tempo de nossa viagem à Berlim, estávamos acompanhados pela família Pedrosa. O desfrutar de imagens, sensações e sons é mais proveitoso e divertido, quando é compartilhado com pessoas amigas. Seja simplesmente passeando pelas ruas ou visitando algum monumento, lá estavam os Pedrosas dividindo as experiências conosco.

Arlete, Ricardo, Neusa e Henrique, 1975
José Henrique, cabeça do Ricardo, Henrique, Neusa, Sônia e Arlete, no Monumento à Mãe Russa. 1975.

Mesmo considerando as peripécias do início da viagem, esta foi uma das mais divertidas e proveitosas que realizamos durante o nosso tempo na Alemanha.

Recordações eternas que materializo minimamente nesta escrita.

Baviera: entre castelos e albergues

Viajar pela Alemanha, é difícil não dar uma paradinha em algum castelo medieval pelo caminho. Muitos deles, ainda em formato original, não destruídos durante as guerras. Outros, que foram completamente reconstruídos, mantendo a sua arquitetura de início.

Na região da Baviera, o que chama atenção são o castelo de Neuschwanstein, já mencionado em outro capítulo, e o Palácio de Nymphenburg, nas proximidades de Munique.

Este palácio, em estilo barroco, data do século XVII e foi residência de verão dos governantes da Baviera. É considerado o Versalhes da Baviera, pelo seu formato, tamanho e exuberância de seu interior, mostrando toda a pompa das épocas passadas. As salas lembram bastante os inúmeros aposentos do Palácio de Versalhes, localizado nos arredores de Paris.

Jardim e prédio principal do Palácio de Nymphenburg em Munique, 1975.

A escultura de Vênus nos jardins é uma obra que se realça pela beleza e harmonia de seus traços. Salvo melhor juízo, mais tarde, ela deve ter sido transferida para decorar algum outro lugar, igualmente importante.

Corredor que replica o de Versalhes. 1975
Escultura de Vênus no chafariz. 1975.

Em algumas de nossas andanças pela Europa, tivemos a oportunidade de pernoitar em alojamentos de Albergues da Juventude. Além de considerar o atrativo valor das diárias, talvez o fascínio em conhecer outros lugares diferentes de hotel, tenha sido o fator decisivo naquelas empreitadas. Adicionalmente, a facilidade de contato e procedimentos de reserva eram bem mais ágeis do que as tradicionais hospedarias.

O maior atrativo dos albergues, sem dúvida, era o seu assentamento. Na maioria dos casos, eram assentados em castelos e palácios.

Um desses albergues estratégicos, localizava-se no Castelo de Nuremberg. Talvez tenha sido o primeiro que experimentávamos. Nestes alojamentos, não existem aposentos para casal. E a separação entre ala feminina e ala masculina era levada a sério. Meio século atrás!

Dormimos como príncipe e princesa no Castelo de Nuremberg, contudo, em aposentos separados!

Um detalhe importante neste tipo de alojamento, é o compromisso em ajudar na condução dos afazeres, tais como, servir as mesas, lavar a louça entre outros. Ali que eu aprendi a secar os panos de prato úmidos, nos aquecedores de ambiente e ir usando-os conforme fossem secando.

A experiência vivida num albergue na cidade de Munique vale a pena contar. A hospedaria tinha o formato semelhante a um hotel, com recepção e check-in. Ao dar a entrada, solicitamos um quarto de casal. A recepcionista explicou que rapazes e moças devem dormir em quarto separados. Levou algum tempo de diálogo para convencer que nós éramos casados e podíamos, assim, dormir num mesmo quarto. Também, com as carinhas de adolescentes que tínhamos, isso era de se esperar. Em outras tantas ocasiões, tivemos outros atropelos, até para convencer de que éramos maiores de idade.

Este é o Castelo de Nuremberg, onde pernoitamos num Albergue da Juventude, em aposentos separados. 1975.

Andando pelos corredores e, principalmente na passagem após a ponte levadiça da entrada, parece que tudo nos levava aos tempos dos cavaleiros medievais com suas armaduras de ferro e espadas pesadas. É possível sentir as vibrações nas paredes e, para os mais sensíveis, ouvir o som dos cascos e grilhões.

Bremen: terra dos contos de Grimm

A segunda maior metrópole do norte da Alemanha, depois de Hamburgo, é Bremen.

Sede da cerveja Beck’s, dos músicos de Bremen e da estátua de Roland.

Roland foi um líder militar sob o comando de Carlos Magno (~800dC) e considerado um herói burguês, no âmbito do comércio e da justiça. Em inúmeras cidades do mundo estão erigidas estátuas deste paladino. Existe uma réplica da estátua de Roland de Bremen no jardim da praça defronte a estação rodoviária de Rolândia, cidade localizada no norte do Paraná. O nome da cidade deve-se à colonização alemã do município.

Estátua de Roland, em Bremen. 1974.

Jacob e Wilhelm Grimm eram irmãos que viveram na Alemanha entre os séculos XVIII e XIX. Ficaram conhecidos por seus contos infantis, dentre os quais, cito: Chapeuzinho Vermelho, A Bela Adormecida, A Gata Borralheira, Branca de Neve e os Sete Anões, Rapunzel e Os Músicos de Bremen, todos muito bem conhecidos.

Os contos de Grimm retratam as circunstâncias políticas, econômicas e sociais de sua época, num formato e linguagem disfarçada em personagens criadas, às vezes, de animais.

Em “Os músicos de Bremen”, são um burro, um cão, um gato e um galo que, após serem maltratados, resolvem fugir e mudar-se para Bremen. Na verdade, nunca chegaram a tal cidade. No meio do caminho, envolvem-se com ladrões e acabam derrotando-os e apossando de seus bens e seu alojamento.

Simbolizados, quem maltrata os animais são os senhores feudais, que submetiam seus empregados a um regime de servidão, retratados na forma dos animais. A cidade de Bremen espelha a liberdade pois, desde há muito, formava a liga hanseática das cidades livres, onde o comércio não era influenciado pela oligarquia dos feudos.

Devido a que, na fábula, os animais nunca alcançaram Bremen, esta cidade erigiu um monumento em homenagem aos heróis, que se encontra no centro da metrópole.

Os animais de “Os músicos de Bremen”. 1974

Aproveitando o ensejo da última percorrida pelas cidades do norte da Alemanha, descreverei mais uma urbe.

Lübeck é uma das importantes cidades do norte. Possui um dos maiores portos alemães e é reconhecida como Patrimônio Histórico da Humanidade, devido à sua arquitetura sui generis da era medieval. É também a capital do marzipan, uma iguaria doce confeitada com amêndoas, mundialmente conhecida.

Esta perspectiva ilustrava uma nota de marco alemão. 1974
Lübeck, uma cidade medieval. 1974.

Esta é a penúltima postagem sobre as experiências vividas na Alemanha.

Após a próxima postagem, iniciarei os relatos sobre outras cidades europeias.

 

Minha experiência com TI na Alemanha

Antes de sair para a Alemanha, eu viajei por todo o estado do Paraná, coletando sementes de cedro em florestas remanescentes da região da araucária, na Serra do Mar, na região de Foz do Iguaçu e na região de Londrina. Perfaziam a matéria prima para a confecção de uma tese de doutorado.

Felizmente, as sementes chegaram intactas e pude produzir as mudas em casa de vegetação. Acompanhei o crescimento e desenvolvimento delas, medindo mensalmente os parâmetros necessários à interpretação do comportamento morfológico e fisiológico das plantas.

As medidas foram anotadas em caderno e, mais tarde, digitadas e gravadas em fita cassete.

Eu ainda ocupava um espaço no anexo do Castelo de Reinbek, quando me foi disponibilizada uma calculadora de mesa, novinha em folha, para usar nos cálculos da tese. Era uma máquina da Compucorp, modelo 325 Scientist. Um primórdio de computador, que tive a oportunidade de domar e dominar para satisfazer minhas essenciais necessidades de cálculos estatísticos mais complicados. Tudo isso era preciso para validar os dados coletados durante a pesquisa em laboratório e casa de vegetação.

Imagem obtida na internet da máquina que utilizei analisar os dados da tese.

Eu tinha aprendido a programar calculadoras de mão HP no Brasil, que usavam uma linguagem básica e intuitiva de programação. Assim sendo, trabalhar com uma máquina maior e mais completa, foi um atrativo desafiador que abracei de pronto.

Levei algum tempo para dominar a linguagem de programação da máquina, bastante similar ao conhecimento que eu tinha desde o Brasil. O que atrasava o processamento dos dados era o ritual dos procedimentos.

Antes de efetuar qualquer cálculo, após ligar a máquina, era necessário carregar o sistema operacional (S.O.) para a calculadora, que irei chamar de CPU. O S.O. ficava gravado numa fita cassete. Quando se desligava a CPU, perdia-se tudo e era preciso recomeçar outra vez.

Em seguida, era preciso instruir a CPU sobre o processamento, equivalente ao programa computacional propriamente dito, o software de hoje. Este, precisava ser desenvolvido para cada necessidade, pois não existia uma biblioteca de software. Esse foi o meu árduo trabalho para escrever o programa na linguagem que a máquina entendia. Todos os cálculos envolvendo médias, análise da variância, testes de significância e testes de comparação entre médias, tudo foi minuciosamente transcrito para fitas cassete e testado exaustivamente durante alguns meses.

Testados e aprovados os softwares, era o momento de transcrever os dados coletados e anotados em cadernos para as fitas cassete.

A cada análise de dado, o procedimento era o mesmo:

1 – Ligar a máquina

2 – Carregar o sistema operacional (fita cassete)

3 – Carregar o software (fita cassete)

4 –   Carregar os dados a serem analisados (fita cassete)

5 – Apertar a tecla ENTER

A partir daí, a máquina começava a calcular. Dependendo da quantidade de dados e da complexidade da análise, podia levar vários minutos.

Quando terminava de calcular, a máquina imprimia os resultados, de acordo com o programado no software. Impressão usando fita de tinta e rolo de papel. Impressão mecânica, similar as antigas calculadoras matriciais. No momento em que a máquina começava a impressão, o barulho incomodava a todos no escritório.

Na fase final da tese, a impressão dos resultados saia aos metros de papel ridiculamente estreito.

Este treinamento foi a base para o meu autoaprendizado em programação de computador. Desde aquela época, nunca mais parei de aprender e programar, em alguns casos, até profissionalmente. Atualmente, programo para administração de banco de dados e desenvolvimento de websites. Faço incursões em hardware, pois tenho conhecimento de eletrônica.

Estudo de doutorado serve para isso também.

A partir da próxima semana, serão postadas as experiências vividas em outros países da Europa.